15/09/10

1942: regresso ao futuro


Estudantes do Porto interromperam uma sessão com Sócrates e Mariano Gago para denunciar a falta de apoio social escolar e o peso das propinas no orçamento das famílias. Os estudantes ergueram uma faixa com uma questão incómoda - «Gago, quanto pagaste de propinas?» - e denunciaram o desinvestimento do Estado na acção social escolar, o que aliás é claramente prescrito pelas medidas do PEC e foi admitido por responsáveis do ministério na AR. Mas este post não era para falar da justeza da contestação estudantil no momento actual nem para demonstrar que essa coisa do ensino gratuito – mesmo retirando as propinas – não existe nem nunca existiu. Quero só falar das declarações com que Gago tentou graciosamente apaziguar o assunto.

Demonstrando bonomia, ao contrário do senhor que tentou interromper a cerimónia dos estudantes contestatários, Mariano Gago lá disse que o valor das propinas é hoje equivalente ao que existia em Portugal em 1942, com a vantagem do rendimento per capita ter triplicado. Logo, conclui, as propinas agora são “bastante mais inofensivas do que eram no meu tempo”. Não sei se Mariano Gago, que entrou no Instituto Superior Técnico em finais dos anos sessenta, pretendeu convencer alguém que tinha mais 25 anos do que efectivamente tem ou que entrou na Universidade seis anos antes de ter nascido. O jornalista di-lo mas parece claramente um erro de circunstância. Menos inocente é a ministerial tentativa de atirar areia para os olhos do néscio, esquecendo o que foi a história do ensino universitário no país nas últimas décadas e as mudanças que este sofreu, desde logo ao nível da composição da sua população.

A pergunta dos estudantes tem sentido e a resposta do ministro é manhosa. Explico: a propina fixada em 1942 foi alvo de contestação logo a seguir – num processo no qual se destacou como dirigente estudantil Salgado Zenha – e permaneceu tímida até ao 25 de Abril. Não houve nenhum aumento significado até 1992, altura em que a questão apareceu com estrondo na ribalta. A partir daí a história é conhecida, com o regresso em força das propinas a seguir à paixão educativa de Guterres, e a letargia estudantil a fazer com que elas galopem por aí fora nos últimos anos. Hoje – não é artifício retórico – muitos estudantes deixam de estudar, ou ficam pelo 1.º ciclo, porque não têm dinheiro para as pagar. Os bancos agradecem enquanto cresce o novíssimo negócio dos empréstimos.

O que o ministro se esqueceu propositadamente de mencionar é que, em 1942, o ensino superior em Portugal era profundamente elitista. E assim continuou pelas décadas seguintes. Em meados dos anos sessenta, os estudantes no ensino superior não chegavam aos 30 mil; hoje são perto de 500 mil. E essa pequena fatia de estudantes que existia na altura, como é óbvio, era fundamentalmente oriunda da classe média-alta, pelo que o pagamento de propina não constituía em regra uma carga pesada no orçamento familiar. Além do mais, um qualquer estudante universitário à época podia facilmente dar aulas, explicações ou até ter um emprego que funcionava já como antecâmara da sua profissão futura, algo que hoje não existe de todo. Curiosamente, tenho aqui em frente um amplo inquérito aos estudantes universitários produzido pela Juventude Universitária Católica em 1967 e - entre práticas, atitudes, preocupações, gastos e condições de vida - não há uma palavra sobre as propinas. Os problemas eram outros e não eram menores; não se queira é agora impingir mais esse drama ao jovem lutador que um dia se foi.

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Miguel, falta explicar porque é que antes eram 30 mil e agora são 500 mil.Parece ter sido obra do acaso, não havendo qualquer mérito do ensino público e dos seus responsáveis.

Joana Lopes disse...

Miguel,
Duas precisões que em nada mudam o sentido geral do post.

É erro do jornalista dizer que MG afirmou ter entrado para a Fac. em 1942. Ouvi-o há pouco e disse, sim, que o Tribunal de Contas afirma que, desde 1942, o valor das propinas se mantém equivalente (não seu exactamente a quê).

O Inquérito da JUC foi feito no ano lectivo de 63-64 (embora os resultados só tenham sido publicados em 1967). Nesse ano, existiam exactamente 24.758 alunos inscritos nas três universidades (Brumas, p.73)

Miguel Cardina disse...

Sim, Joana. Quanto à primeira precisão, é óbvia. Apeteceu-me apenas brincar com a coisa. Mas a verdade é que Mariano Gago faz a relação sem mencionar efectivamente qual o seu tempo.

Quanto à segunda precisão, é verdade. O inquérito foi feito uns anos antes e publicado em 1967. Como os textos do Adérito Sedas Nunes na Análise Social (que julgo virem da mesma leva).