13/01/11

A vaga de protestos na Tunísia – de onde vem e para onde vai?


Tem-se lido e sabido pouco em Portugal acerca do que se está a passar na Tunísia (e na Argélia) desde Dezembro passado. Há quem já tenha chamado «intifada tunisina» a este movimento, despoletado por dois acontecimentos distintos: a revelação do conteúdo de alguns telegramas enviados pelo embaixador norte-americano em Tunes e relativos à corrupção do Presidente; a auto-imolação de um jovem desempregado na cidade de Sidi Bouzin . 
Neste momento, depois de várias manifestações assinaladas por confrontos entre desempregados/estudantes e polícia, membros da oposição e bloggers foram detidos, controlos impostos sobre o acesso à internet e há já algumas dezenas de mortos e desaparecidos. Um pouco como no Irão, mas sem que a CNN lhe dê tanta importância, pelas razões que se imaginam.
O texto abaixo, escrito por Christopher Alexander, um investigador que se tem ocupado sobretudo da Tunísia,  procura esclarecer o ambiente e o contexto desta revolta à luz da história tunisina recente. Foi retirado de um portal tunisino que tem vindo a acompanhar os acontecimentos numa base quotidiana, reunindo textos escritos em árabe, francês e inglês. Embora eu não esteja de acordo com tudo o que diz, parece-me um bom primeiro passo para compreender o que está acontecer, afinal de contas aqui tão perto.  Traduzi-o a pedido de uma amiga e camarada tunisina, que está naturalmente angustiada com o que se está a passar (alguns dos detidos são amigos seus) e procura divulgá-lo pelo maior número possível de pessoas, línguas e países. Sintam-se por isso à vontade para o reproduzir e divulgar da maneira que considerarem mais adequada.

A vaga de protestos na Tunísia – de onde vem e para onde vai?
Janeiro tem sido tradicionalmente o mês de todos os dramas políticos na Tunísia – uma greve geral em Janeiro de 1978; uma insurreição apoiada pela Líbia em Janeiro de 1980; motins do pão em Janeiro de 1984. Este mês, contudo, Janeiro terá dificuldades em superar Dezembro precedente. As últimas duas semanas de 2010 testemunharam a mais dramática vaga de agitação social na Tunísia desde a década de 80. O que começou pelo protesto desesperado de um jovem contra o desemprego, em Sidi Bouzid, na região Centro-Oeste da Tunísia, alastrou rapidamente a outras regiões e outros temas. Poucos dias depois da tentativa de suicídio de Mohamed Bouazizi, em frente a instalações locais do governo, estudantes, professores, advogados, jornalistas, activistas pelos direitos humanos, sindicalistas e políticos da oposição desceram às ruas em várias cidades, incluindo Tunes, para condenar as políticas económicas governamentais, a repressão das vozes críticas a a corrupção de tipo mafioso que enriqueceu vários membros da família do Presidente.

Num país conhecido pela sua estabilidade autoritária, é fácil considerar esta agitação o prenúncio de uma transformação dramática. De facto, os protestos têm vindo a subir de tom há já pelo menos dois anos. A frustração está enraizada numa longa história de crescimento económico desequilibrado. Várias organizações ajudaram a converter esta frustração em protesto colectivo. Até agora, os protestos de Dezembro provocaram uma remodelação ministerial, o afastamento de um governador e a renovação do  compromisso de criar novos empregos em regiões empobrecidas. É impossível prever se virá a provocar alterações mais dramáticas. Se o poder de Ben Ali [Presidente da Tunísia] não foi imediatamente posto em risco, os protesos sugerem pelo menos que a sua estratégia de governo está seriamente ameaçada. O poder de Ben Ali vem assentando numa hábil combinação de cooptação e repressão. Ao afirmar a sua fidelidade à democracia e aos direitos humanos no início do seu mandato, apropriou-se de forma calculada da mensagem central da oposição liberal. Simultaneamente, empregou a manipulação eleitoral, a intimidação e os favores para cooptar líderes dos partidos de governo e de organizações da sociedade civil. Os que se revelaram inacessíveis através deste tipo de ferramentas sentira a força do aparato de segurança interna, que cresceu dramaticamente ao longo da década de 90. A maioria dos tunisinos aceitou com um ligeiro descontentamento a mão pesada de Ali ao longo dos anos Noventa. Um governo autoritário foi o preço a pagar pela estabilidade que atraiu turistas e investidores. Ben Ali foi um eficaz, ainda que pouco carismático, líder tecnocrático, capaz de derrotar os islamitas, gerar crescimento e salvar o país da desestabilização que atormentou a Argélia.
Ao longo dos últimos cinco anos, contudo, a estrutura do autoritarismo de Ben Ali começou a tremer. A partir do momento em que se tornou claro que os Islamitas já não representavam uma ameaça séria, muitos tunisinisos revelaram-se menos dispostos a aceitar a mão pesada do governo. O regime perdeu também alguma da sua anterior habilidade. Os seus métodos tornaram-se menos creativos e mais abertamente brutais. O governo pareceu menos disposto a pelo menos simular um qualquer tipo de diálogo com os críticos ou com os partidos da oposição. Detenções arbitrária, controlo sobre a imprensar e o acesso à internet, ataques físicos a jornalistas e a activistas dos direitos humanos ou de partidos políticos da oposição, tornaram-se mais frequentes. Tal como as histórias de corrupção – não os habituais favoritismos e favores, mas uma criminalidade verdadeiramente mafiosa que encheu os bolsos da mulher de Ben Ali e da sua família. O crescimento do Facebook, Twitter e da blogosfera tunisina – uma boa parte da qual está sedida fora do país – tornou muito mais fácil para os tunisinos saber das últimas detenções, espancamentos ou esquemas de negócios ilícitos que envolvem a família do presidente.
Um pouco antes de terem começado os protestos de Dezembro, a Wikileaks revelou comunicações internas do Departamento de Estado dos EUA, nas quais o Embaixador norte-americano descrevia Ben Ali como envelhecido, ultrapassado e rodeado de corrupção. Devido à reputação de Ben Ali enquanto um aliado subserviente dos EUA, pareceu relevante para vários tunisinos – particularmente para os que estão politicamente empenhados e envolvidos com as redes sociais – que diplomatas americanos afirmassem sobre Ben Ali exactamente as mesmas coisas que eles vêm dizendo. Estas revelações contribuíram para um ambiente favorável a uma onda de protestos com vastos apoios.
A Tunísia assumiu a reputação da economia mais próspera do Maghreb desde que Ben Ali tomou o poder, quando um conjunto de reformas liberalizadoras abriram o país ao investimento privado e integraram-no mais profundamente na economia regional. O crescimento anual do Produto Nacionl Bruto atingiu uma média de 5%. Mas as políticas do Governo fizeram pouco para resolver preocupações antigas acerca da distribuição do crescimento pelo país. Desde o período colonial, a actividade económica na Tunísia tem-se concentrado no Norte e ao longo do litoral Este. Em praticamente todos os planos de desenvolvimento económico desde a independência, em 1956, o Governo comprometeu-se a realizar investimentos, criar emprego e melhorar o nível de vida no Centro, no Sul e no Oeste. Diminuir as disparidades regionais contribuiria para a solidariedade nacional e tornaria mais lento o ritmo do êxodo rural. Este último elemento tornou-se uma preocupação específica à media que aumentaram os protestos sociais organizados por sindicalistas, estudantes e islamitas no final da década de Setenta e início da década de Oitenta.
Os investimentos governamentais transformaram as zonas rurais no que diz respeito ao acesso a água potável, eletrificação, infra-estruturas de transportes, saúde e educação. Mas o Governo nunca conseguiu criar, no interior do país, empregos suficientes para uma população em crescimento acelerado. De facto, dois aspectos da estratégia de desenvolvimento governamental tornaram efectivamente mais difícil criar empregos. Primeiro, a estratégia de desenvolvimento da Tunísia desde o início dos anos 70 baseou-se crescentemente nas exportações e no investimento privado. Para um país pequeno, com uma base de recursos limitada e ligações estreitas à Europa, esta estratégia acentuou a aposta no turismo e em productos manufactados rudimentares (sobretudo vestuário e produtos agrícolas) para o mercado europeu. A escassez de recursos naturais, os constrangimentos climáticos e a necessidade de minimizar custos de transportes tornou mais difícil atraír para o interior um número considerável de turistas ou produtores orientados para a actividade exportadora. Consequentemente, 80% da produção nacional continua concentrado nas áreas costeiras. Apenas um quinto da produção nacional está localizado no Sudoeste e no Centro-Oeste, onde reside 40% da população.
Problemas relacionados com a educação complicam um pouco mais as coisas. O Governo tunisino recebe há muito tempo elogios pelo seu empenho na generalização do acesso ao ensino. A cultura dominante considera a formação universitária a chave para a segurança e o avanço social. Contudo, as universidades não formam jovens com preparação para uma economia que depende de empregos não-qualificados no turismo e na indústria de confecções. Este desencontro entre a educação e as expectativas, por um lado, e as realidades do mercado de trabalho, pelo outro, gera frustrações sérias para os jovens que investiram em formação universitária mas não encontram empregos correspondentes. O desafio é particularmente difícil para jovens do interior. Enquanto as estimativas do desemprego nacional oscilam entre 13% e 16% , o desemprego entre licenciados em Sidi Bouzid oscila entre 25% e 30%.
O papel dos sindicatos é um dos aspectos mais marcantes dos protestos de Dezembro. O Governo trabalhou muito, e com bastante sucesso, para domesticar a confederação sindical única tunisina (UGTT) durante a década de Noventa. Mais recentemente contudo, activistas de alguns sindicatos conseguiram assumir posições mais independentes e conflituais. Em 2008, e novamente no início de 2010, activistas sindicais organizaram protestos prolongados na bacia mineira meridional de Gafsa. Os protagonistas e as reivindicações dessas situações foram bastante semelhantes aos que pudemos observar Dezembro passado. Sindicatos do sector da Educação, dos mais independentes e agressivos no interior da UGTT, desempenharam um papel determinante na organização de desempregados, muitos deles licenciados, que protestavam contra o falhanço do Governo na criação de empregos, contra a sua corrupção e a sua recusa em encetar um diálogo sincero. Organizações dos direitos humanos, jornalistas, advogados e partidos da oposição juntaram-se então para criticar as medidas restritivas do Governo relativamente à cobertura mediática dos protestos e à detenção e tortura dos manifestantes. Desta forma, uma vasta coligação de organizações da sociedade civil estabeleceu uma ligação entre as reivindicações básicas relacionadas com a subsistência e as preocupações relativas aos direitos humanos fundamentais e ao funcionamento do Estado de Direito. Juntaram também realidades sociais quer trascendem distinções classistas e regionais – jovens desempregados em Sidi Bouzid, Menzel Bouzaien e Regueb, advogados e jornalistas em Monastir, Sfax e Tunes.
É ainda demasiado cedo para saber se estes protestos assinalam o início do fim para Ben Ali. Contudo, a actual situação política tunisina assemelha-se muito à que existia em  1975 e em 1976, o início da queda do predecessor de Ben Ali, Habib Bourghuiba. Mais uma vez, assistimos a um presidente envelhecido que parece crescentemente desfasado e cuja capacidade para cooptar e reprimir está deteriorada. Vemos ainda um sistema política ao qual faltam possíveis sucessores fortes e um mecanismo claro para os selecionar. Temos um conjunto de reivindicações económicas e políticas que beneficiam do apoio de um conjunto de organizações da sociedade civil, incluindo algumas com capacidade para mobilizar um considerável número de descontentes. A médio e longo prazo, é este o aspecto mais significativo dos protestos de Dezembro. O facto de os jovens desempregados terem saído às ruas é muito menos importante do que o facto da sua causa ter sido partilhada – e complementada – pelas organizações da sociedade civil que passaram a maior parte do período de governo de Ben Ali sob a sua alçada ou demasiado receosas para agir.
Apesar disso, importa relembrar que Bourguiba não caiu abruptamente perante um movimento de massas que reunia um alargado apoio popular. O seu governo apodreceu gradualmente durante mais de uma década. Adicionalmente, o golpe militar sem mortos de Ben Ali, e a sua governação posterior, aproveitaram largamente a desorganização da classe política tunisina. A sociedade civil da Tunísia, incluindo os partidos da oposição, é notoroamente fácil de dividir e conquistar. Se a capacidade revelada por Ben Ali para reprimir e cooperar se deteriourou, não desapareceu por completo. Com os protestos de Dezembro, a Tunísia poderá ter virado uma esquina decisiva. Contudo, nada na história do país ou na sua actual situação torna mais fácil acreditar que os protestos irão convergir rapidamente para um movimento unificado de oposição com uma mensagem clara, um líder carismático e uma base nacional de apoio. Adicionalmente, outro longo e lento deslizamento na direcção do caos poderia simplesmente criar as condições para a emergência de outro Ben Ali – outro presidente não eleito capaz de tomar o poder no topo e mudar muito pouco na base.
 Christopher Alexander


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