Em arrumações no computador, encontro este pequeno artigo que escrevi em 2007 no Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa. Deve ter uma ou outra gralha, mais um ou outr oerro, porque não é a versão final, a que resultou da revisão sempre atenta da Sandra Monteiro. Mas segue assim mesmo, provando que a escrita pode ser tratada ao pontapé. It goes like this:
QUANDO A ESQUERDA VAI À BOLA
Quando há poucos meses atrás Maria José Morgado apareceu em cena, a muitos sorriu uma pequena luz ao fundo do túnel por onde observavam o famigerado “futebol português”. “Agora é que é”. “Os tipos estão tramados”. “Vai ser uma limpeza”. “Ou vai ou racha”. Embora tenha preferido um comedido “pode ser que seja desta”, também me reconheci numa tal onda de entusiasmo.
Entretanto confesso que um certo “afã justicialista” que rodeia – suponho que com desconforto para a magistrada – o célebre processo do “apito dourado” suscita reticências. E quando se ouve ao longe o rumor de um desejo – “Morgardo deveria era correr para Presidente…” – temo que um dia paire sobre a esquerda portuguesa a tentação de “justicializar” a crítica política, algo que se passou em Itália, do fenómeno Di Pietro a um certo tipo de campanha dirigida contra Berlusconi.
Por cá, a substituição da “política” pela “justiça” teve um seu primeiro ensaio, creio, nas últimas eleições autárquicas. Veja-se a facilidade com que na esquerda partidária – mas já veremos o que isso possa ser – se privilegiou uma “crítica moral” sobre a corrupção em prejuízo de uma crítica política sobre o poder. Respondendo à corrupção mais com apelos à “justiça” e menos com um debate sobre a organização do poder – levantando por exemplo a hipótese do orçamento participativo – a esquerda partidária encontrou nos “autarcas-arguidos” um catalisador moral que, por exemplo, embalou – não foi só isso, é certo – a campanha de José Sá Fernandes.
Ora o que agora temo é que a obsessão com a tripla autarquias-futebol-corrupção deixe para depois o essencial. E o essencial é o quê? O essencial é o debate da política. No caso, o debate da política desportiva que, sob o ímpeto justicialista que rodeia Morgado, tem ficado uma vez mais adiado.
Socialistas, Comunistas e Bloquistas
Cabe então perguntar que proposta tem a esquerda partidária a apresentar em torno do futebol. O que sucede na esquerda partidária quando lhe aparece uma bola à frente do caminho? Vamos por partes, três partes.
A esquerda socialista tem-se dado melhor do que bem com o “futebol português”. Jorge Sampaio, ainda autarca em Lisboa, deu um passo de gigante na política de cedência de terrenos camarários aos principais clubes. José Sócrates guarda como grande feito do seu mandato de ministro no governo Guterres o facto de ter trazido o Euro 2004 para Portugal. Alberto Martins ainda hoje parece abatido pelo facto de Mota Amaral lhe ter marcado falta na Assembleia da República quando foi ver o “seu” F.C.Porto jogar a Sevilha. Manuel Alegre, depois de ter sido um excelente líder de claque durante o Euro 2004, foi o candidato à presidência da República que reuniu os melhores apoios no meio futebolístico profissional. (E está certo, a sua campanha foi provavelmente aquela em que mais se gritou “Portugal, Portugal”). Esperar uma política desportiva – não uma política desportiva socialista, não uma política desportiva de esquerda, não uma política desportiva democrática, mas simplesmente uma política desportiva – do governo PS é legítimo mas é uma legitimidade que convém exercer sentado.
A esquerda comunista é diferente. Para melhor. É certo que Jerónimo de Sousa não deixou de oportunamente realizar um almoço da sua campanha presidencial em pleno Estádio da Luz e de aí receber um cumprimento benfiquista de Luís Filipe Vieira, cumprimento que se repetiu com a oportuna visita deste à Festa do Avante!, visita realizada a convite da direcção do PCP. É certo que o PCP apoiou a realização do progressista (?!?) Euro 2004 em Portugal. Mas, porque ligada a um património de reflexão histórico em torno do desporto e das suas estruturas sociais, e sobretudo porque ligada ao associativismo e às colectividades locais, na esquerda comunista ainda se proclama a necessidade de uma política desportiva em Portugal que seja capaz de – usemos o belo do jargão – cumprir Abril.
Por fim cabe interrogar a esquerda bloquista. Por certo ela não está disposta a ceder aos interesses do “futebol português”. O que é um mínimo que os outros não cumprem. Mas um mínimo, lá está, é só um mínimo: uma condição não suficiente para uma política desportiva de esquerda. A esquerda bloquista, tal como muitos intelectuais, tem na crítica do futebol um opiáceo que lhe permite alienar-se das vidas comuns e que reproduz uma visão intelectualizada da cultura da qual se excluem os lazeres proletários. Se falasse de uma política para o futebol com a mesma seriedade com que fala de uma política para o teatro, não se apresentaria como “O voto que não vai em futebóis”, um voto despudoradamente elitista que é incapaz de perceber que há mais do que uma maneira de dançar o futebol.
Jogos de Poder
Entretanto, quem não ficou lá atrás sentado à espera da política desportiva do governo socialista tem motivos para não desesperar. Há direcção e há energia para dar a volta ao texto.
A direcção será a que tentar inverter três tendências entre si correlativas: tantos benefícios para as empresas clubísticas e tão poucos apoios aos pequenos grupos associativos; tanta gente a ver desporto e tão pouca gente a praticar desporto; tanta mordomia face ao futebol e tamanho desprezo pelas restantes modalidades (excepto o golfe e o Paris-Dakar, claro está).
Quanto à energia, ela está dispersa mas está. No campo do poder local há todo um leque de experiências por resgatar, da transformação a la PREC de lagoas de latifúndio em piscina comunitária (ainda os fundos europeus estavam longe de inventar esse oásis neo-realista que são as piscinas municipais alentejanas) até aos recentemente extintos Jogos Desportivos da Cidade de Lisboa. No campo dos direitos, juristas como José Manuel Meirim ou João Leal Amado têm mantido um combate tenaz contra o “estado de excepção” que impera no mercado de trabalho desportivo, onde ao trabalhador não é permitido escolher o seu destino, tenha 16 anos e jogue no Sacavenense ou tenha 25 anos e jogue no Sporting. Nas escolas existem vários professores de educação física que vão reabrindo a possibilidade de uma nova cultura desportiva, que fure entre o atraso de vida do sacrifício ginástico e o avanço de mercado do negócio futebolístico. Até no jornalismo desportivo haverá quem ainda tente meter um pau na engrenagem. Se queremos mudar o resultado do jogo, é reunindo estas pontas soltas que devemos começar. Alguém avança com data, hora e local?
16/07/10
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