03/09/10
Double feature
por
Luis Rainha
Ontem, vi dois bons filmes pela segunda vez, de seguida: Truman Show e Hunger. Fiquei ainda mais convencido de que os nossos gostos culturais são em grande parte moldados pelos caprichos da sincronia, pelas coincidências que aproximam a fruição de alguns objectos artísticos, fazendo com que se iluminem mutuamente, dando-nos deles novas e inesperadas perspectivas.
Assim vistos, estes dois filmes até podem partilhar muito. Como um tema: corpos celebrizados pelo confinamento a que foram sujeitos. Truman Burbank é puro ecrã: criado e adoptado por uma emissora de TV, ele é o receptáculo de todas as ficções, centro de um universo artificial, com milhares de olhos electrónicos sobre ele assestados a cada segundo. Bobby Sands, o militante do IRA auto-condenado ao martírio pela fome, é carne feita política e o seu corpo a arena onde a derradeira luta eclode. Trata-se de corpos desenhados, propiciados para o espectáculo: Truman a feérica vida hiper-colorida e sobre-real que preenche os quotidianos vagos dos telespectadores – Sands a sua antítese subterrânea: sombria, dolente, agonizante. A celebração última das possibilidades escrutinadoras dos media versus a efectiva possibilidade de ocultação, dentro de uma prisão, dentro de uma luta, dentro de um corpo moribundo.
O primeiro vive num mundo hiper-feliz, povoado por bons vizinhos, picket fences e apple pie. Bobby Sands jaz numa cela de paredes cobertas pelas fezes dos seus ocupantes, numa cadeia sulcada por rios de urina, infestada de vermes e piolhos. Em última instância, Truman revolta-se contra o seu destino de marioneta aquiescente e feliz. Sands oferece-se como sacrifício no altar da sua causa, voluntário para o papel exemplar que Truman recusa. Um recebe a liberdade como prémio de consequências inesperadas, outro abraça a morte, em nome de liberdades e autonomias alheias.
Os dois filmes desvelam ao seu espectador o outro lado da trincheira que separa o corpo-exposto dos seus algozes: no filme de Peter Weir, a equipa que produz o reality show que é a vida de Truman explica-se e revela os seus mecanismos de embuste. Em Hunger, temos ocasião de descobrir como os guardas prisionais são, à sua maneira, também prisioneiros; da própria violência e do receio das constantes retaliações do IRA. O bonecreiro-mor, Margaret Tatcher, faz-se apenas ouvir, debitando, no que de outra forma seria uma meia-hora de filme quase muda, o seu desprezo pelos criminosos do IRA.
No tratamento do som jaz uma das diferenças radicais entre as duas obras: Sands é o homem que se despe da sua massa mas que ganha cada vez mais voz, mesmo que fisicamente emudecido pela fome. Hunger esteve para ser um filme mudo, tendo a ideia para os vinte minutos de diálogo entre o terrorista e o seu padre (filmado com uma câmara atipicamente estática) surgido a meio do processo criativo de Steve McQueen, por sinal um cineasta com um trajecto bem singular.
Esta é só uma das diferenças que separa um belíssimo filme – Truman Show – de uma obra-prima absoluta como Hunger. O corpo de Truman surge apenas como adereço; da ficção em que se move mas também da própria obra a que assistimos. Já em Hunger, toda a carne é mutável, utilitária e loquaz: a nudez hirsuta e quase cavernícola dos prisioneiros políticos é o emblema primeiro da sua postura de desafio face ao sistema prisional; mesmo os visitantes da cadeia usam todos os seus orifícios como meios de comunicação, ocultando mensagens e mil outros contrabandos; por fim, Sands reduz-se a um esqueleto que já perfura a sua pele, a morte com pressa de se anunciar.
Nos seus finais, ambos os filmes se revelam lacónicos, embora seguindo estratégias diversas: Sands morre em silêncio, isolado do mundo que (como ainda bem me lembro) tinha a respiração suspensa dos destinos dos grevistas. Truman também vira costas ao seu mundo, para penetrar numa porta escura. Só que esta leva-o ao lugar de fábula simpática, resgatada pelo final feliz; Sands permanece opaco e trágico para todo o sempre – já parte da história do século XX, exemplo derradeiro dos lugares fatídicos mas jubilosos a que os ideais nos podem levar.
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