“The Utopian Motif is suspended” é o título de uma entrevista de Leo Lowenthal sobre o futuro da “teoria crítica”, um testemunho de 1980, de que poucos, mesmo na Alemanha, se recordarão hoje.
«Perhaps [the speculative-utopian moment] is ballast. When I speak of such things, I feel a bit old and obsolete. After all, one cannot just live from utopian hopes based in never-never land, whose realization seems scarcely in the realm of the possible.»
Voltas que o Zeitgeist dá: tratava-se, nesses tempos, de fazer o luto de um certo messianismo não teológico que, central em Bloch, não teria deixado de ecoar no pensamento das principais figuras da primeira geração de Escola de Frankfurt: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Marcuse; em alternativa perfilava-se o realismo pragmático de Habermas, na esteira da sua “teoria da acção comunicativa”.
O utopismo que então se recusava como obsoleto já não era, como é óbvio, o do famigerado “socialismo utópico” de Proudhon; o que se recusava, no contexto federal alemão dos anos 70 e 80, era uma certa hesitação perante as exigências da praxis, não da praxis revolucionária, bem entendido, mas da construção de um socialismo democrático. O que se recusava era, enfim, a pretensa tibieza perante o que pode ser feito, em suma, perante o que, no âmbito do desejável, é realizável.
Hoje, ao que parece – veja-se o recentemente publicado Envisioning real utopias que o João Rodrigues tem discutido – é a própria suspensão do motivo utópico que se revela caduca. Os contextos são distintos, é certo; os projectos teóricos também, certíssimo. Em todo o caso, não deixa de ser curioso que o renascimento do espírito da utopia se dê, precisamente, sob o signo do “realizável” – o mesmo “realizável”, por mor do qual a “utopia” fora rechaçada para o passado e os seus pergaminhos lançados na pira reservada à tralha idealista considerada obsoleta.
Com ou sem utopia, um certo realismo permanece intacto.
Para uns, um tal realismo é desejável. Ele significa não esquecer que o pensamento crítico do real – para sê-lo efectiva e consequentemente – não pode prescindir da perspectiva de agir sobre ele. Cabe, portanto, conceber formas de acção concreta, ambiciosa e/mas realizável sobre o real. A perspectiva de uma transformação radical do real, para lá do capitalismo contemporâneo, abre-se – não pode senão abrir-se (?) – na realização progressiva do que é, nas margens do real, possível.
Para outros, vergar-se perante o que, de cada vez, se afigura possível arrasta uma idolatria do realizável, que, aceitando as regras do jogo do real, obstaculiza a abertura a que pretende conduzir. Para estes, o realismo é mais idealista – no seu optimismo – do que julga: ele acredita que melhoramentos cumulativos são o palco de um processo conducente a uma transformação radical do real.
Forma-se uma antinomia:
Tese: A mudança radical do real depende do acento no realizável, sem o que se verá adiada ad aeternum a sua concretização no plano do real.
Antítese: A mudança radical do real vê-se obstaculizada pelo acento no realizável, na medida em que o que é ou não possível/realizável é determinado pelas condições do real que se visa, justamente, transformar.
Bom, esta é uma aporia clássica do pensamento e da política de esquerda que, aparentemente – sublinhe-se aparentemente –, restabelece os termos da dicotomia entre reforma e revolução. Digo “aparentemente” porque me parece viável e frutífero – por razões que aflorarei mais à frente – pensar esta antinomia sem retomar os termos da famigerada oposição entre “reformistas” e “revolucionários”. E isto, sem prejuízo de fazer sentido rever os termos em que se desdobram “reforma” e “revolução” – admitindo que já ninguém (sejamos optimistas) se identifica com a versão original – ou até discutir a perspectiva de “reformas revolucionárias”.
Por outras palavras, não é preciso fazer sua a divisa “revolução ou morte” ou, simplesmente, não prescindir de equacionar o binómio reforma/revolução, para ter dúvidas acerca do acento no “realizável” – sobretudo se a este se vem juntar a noção de “utopia”.
No plano do imaginário, a ideia de uma “utopia real” (porque realizável) aproxima-se demasiado dos cenários distópicos d’O admirável mundo novo e de 1984 para não causar arrepios.
Como é evidente, não é disso que se trata para o autor de Envisioning real utopias, Erik Olin Wright, e, menos ainda para o João Rodrigues (que, de resto, considera que “a insistência na ideia de utopia é um dos detalhes criticáveis em Wright”).
No entanto, independentemente daquele livro e do quão optimistas nos consideremos, o real tende, mais do que para a utopia, para a distopia. Por outras palavras, o realismo crítico deve exercer-se contra as perspectivas realistas acerca do real.
Daí fazer também sentido desfazer-se da dicotomia entre reforma e revolução. É que esta, como se sabe, dependia de uma outra oposição – essa, sim, definitivamente caduca, em virtude do descrédito em que caíram as duas alternativas (tal como foram concebidas no séc. XIX) – entre o “socialismo utópico” e o “socialismo científico”. O determinismo do segundo, preconizado por Marx e Engels contra Proudhon, revelou-se tão utópico (irrealista) – nas certezas que alimentava acerca do futuro da revolução – como o primeiro... O prestígio da “revolução” – enquanto previsível, bem entendido, não enquanto realizável – não pode não ser afectado pela caducidade do determinismo científico que Marx e os primeiros marxistas abraçaram.
É preciso desviar-se, perdido o norte, para prosseguir. Quer dizer: hoje, a teoria já não pode limitar-se a orientar a praxis; esboroam-se as perspectivas mais optimistas acerca de um parto natural do socialismo; o real não tende para ele, mesmo se muito no real o torna exigível e necessário.
Tudo isto contamina o campo semântico do “real”, do “realismo”, do “realizável”. É que nem só o que realistamente se prevê, o que se anuncia no plano do real, o que se afigura realizável, é, de facto, realizável. Nisso, estaremos todos de acordo.
7 comentários:
Muitíssimo bom texto, caro João Pedro Cachopo!!
Gosto, do ponto de vista semantico e epistemológico, "o realismo crítico deve exercer-se contra as perspectivas realistas acerca do real.", especialmente por ser verdade!! Quando se estende a reserva do possível a "lugares direitos" para além doque seria "possível", a perspectiva do real possível é transportada para a perspectiva valorativa do campo do justo (para não parecer um lugar vazio, ex: as prestações sociais do Estado e outros mecanismos de justiça destributiva) !! Por isso a questão não deverá, na minha opinião, colocar-se na aparente antitese "real" "utopia" mas eventualmente entre "utopia" e "distopia".
Um bem haja para si,
Meus caros: Estas construções-interpretações deixam-nos prostrados e cépticos: a ordem das questões é enorme,complexa e piramidal. De que estamos a falar, de que círculo - refractado/refractante( Heisenberg)-tentamos falar e enunciar? Ora, Castoriadis elucida um pouco este trabalho de Sísifo, por muita inteligência e boa vontade que V. nisso tenham investido: " Recusamos que haja um sentido a pensar em termos de dialéctica total, de plano da Criação, de elucidação exustiva da relação entre o que se funda com o tempo e o que se funda no tempo.A história fez nascer um projecto, esse projecto tornamo-lo nosso porque nele reconhecemos as nossas mais profundas aspirações, e pensamos que a sua realização é possível. Estamos aqui, neste lugar preciso do espaço e do tempo, entre estes homens, neste horizonte.Saber que este horizonte não é o único possível não invalida que seja o nosso, o que dá figura à nossa paisagem de existência. O resto, a história total, de todo o lado e de lado nenhum, pertence a um pensamento sem horizontes, que não tem outro nome para lá do de não-pensamento ". Bom Vento! Niet
Caro Justiniano,
exacto. Sublinha o fio condutor do que escrevi: que o carácter problemático do acento no “realizável” (da insistência na ideia de que a crítica deve ser realista, devendo por isso propor “utopia reais/realizáveis”) deriva sobretudo de a tendência do real ser, intrinsecamente, distópica. Em suma, realismo crítico, só mesmo contra o realismo e os realistas...
Saudações!
Caro Niet,
Reconheço pontos de contacto entre o que escrevi e a passagem que cita de Castoriadis; numa frase, que o descrédito da dialéctica total nada infirma acerca da possível realização de um projecto histórico – de um que já não é pensável como necessário. Resta repensar sempre o “quê” e o “como” deste projecto - é o problema de como a história sobrevive às grandes narrativas – o problema que conduz por vezes à prostração e ao cepticismo. Só espero que o meu txt não contribua mais para estes – pelo menos não mais do que o próprio real exige:)
Saudações e bom vento!
olá
duas coisas :
1ª -aborrece-me que recorram a este e aquele teórico , sobretudo aos que viveram num mundo completamente diferente e não sabiam metade do que vocês já sabem , para fundamentarem as vossas ideias.
não conseguem avaliar pelas vossas cabeças? está cá tudo..a teoria é apenas uma ajudinha para focalizar.
2ª- talvez quando as mulheres possam/consigam por em práctica o que querem ( que é sempre o pequenino realizável ) sem tanto palavreado abstracto , ideológico , dogmático e florido a empatar , mas tendo em conta que sonhar abstractamente é um incentivo para a superação de nós próprios e para ir mais longe , alguma coisa de realmente bom surja do mix destas tendências.
com religiões e ideologias " espirituais" a coisa não vai lá. somos carne também.
Meus caros: No carrosel das consequências do pragmatismo incontornável em que somos obrigados em permanecer,por razões conceptuais e políticas acima de tudo,ponho em cima da mesa quatro ligeiras teses que vous pode incitar, caros interlocutores, poderem espevitar a vontade em tentar apanhar o querer de transformar o mundo e a sociedade, e ousarem condenar sem apelo nem agravo o internalismo e o anti-realismo : 1)Existem " noções transculturais de validade que estruturam a nossa cultura"(Habermas);2) " as dificuldades imputadas ao relativismo estão ligadas essencialmente a um ponto de vista epistemológico da representação; a minha estratégia para escapar às dificuldades auto-referenciais em que o ´relativista `se detém consiste em deslocar tudo da epistemologia e da metafísica para a política ", (R. Rorty); 3)" Dewey insistia justamente, tanto no plano ético como político, sobre o que os conflitos e a pluralidade das normas e dos valores comportam de historicamente irredutível ",(J.P. Cometti);4) (...)o problema reside na verdade - na concepção de uma crítica ou de uma utopia da alteridade radical - em que a ideia de melhor não pode ser dissociada da crença no melhor, sendo sempre possível pensar que o que hoje se considera tal não o será amanhã",(H.Putnam). Salut! Niet
xiiii , traduzindo o Niet : ele há malta etnocentrista , que não comprende a relatividade dos valores.
pensando eu : porque carga de água hei-de seguir valores que sairam da cabeça de pessoas iguaizinhas a mim ? afinal , ele não há Deus (Hawking dixit ), deuses ainda menos.
ou começam a execrar Poder , tanto na forma de exercido ou de o exercer , ou não saímos da cepa torta.
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