O ABC da crítica, da autoria de Nuno Júdice, recentemente publicado pela D. Quixote, tem por epígrafe a seguinte frase de Antoine Compagnon:
“Como a democracia, a crítica da crítica é o menos mau dos regimes, e se não sabemos qual é o melhor, não temos dúvida de que os outros são piores.”
A bonomia e a banalidade do ponto de partida ver-se-ia resgatado se, numa tal “crítica da crítica”, o distanciamento crítico diante das práticas críticas desse os seus frutos... críticos. Não terá sido esse o caso.
Pedro Mexia (na crítica que escreveu ao livro) considera, entre outros aspectos, que o livro peca por incorrer em certas imprecisões, nomeadamente no que toca a esclarecer se o seu objecto é, ou não, a crítica portuguesa. Considerando problemas mais gerais, estaria disposto lamentar precisamente o inverso: o facto de Júdice precisar em demasia, compartimentar sempre, acentuar fronteiras, linhas de demarcação estritas entre, por exemplo, “texto criativo, “texto crítico” e “texto teórico”.
Com esta demarcação, Júdice pretende – e é legítimo – frisar a primazia do objecto (do texto) na crítica. Quer dizer, a crítica não pode substituir-se ao texto criticado, passar-lhe ao lado ou tomá-lo como mero pretexto. Daí o acento na objectividade da crítica e a ideia de que o gosto compromete a inteligência da crítica. Contudo, acentuar a ligação necessária da crítica ao texto obriga a uma meditação sobre a afinidade entre as experiências da escrita e da leitura que, sob o fio da experiência do pensamento, contribuiu para baralhar aquelas fronteiras.
A afinidade entre “autor” e “leitor/crítico” – a continuidade electiva entre as experiências da escrita e da leitura –, concebe-a Júdice, já perto do fim e meio na brincadeira, nos termos de um piquenique entre autor e crítico:
“Não vou cometer o erro idealista de pensar que alguma vez teremos um piquenique na relva de críticos e autores.” (p. 104)
Júdice admite incorrer, neste ponto, num certo idealismo, como quem reconhece pouco plausível uma perspectiva desejável. Mas engana-se.... Mesmo se depois acrescenta que é saudável evitar “promiscuidades” entre autor e crítico, o tipo de metáfora empregue enviesa, à partida, o que de pertinente haveria a dizer sobre a afinidade entre escrita e leitura.
Sejamos claros: faz todo o sentido pensar - evocando o autor, o leitor e o crítico -, a continuidade entre as experiências da escrita, da leitura e da crítica. Lamentável é que esta se veja inserida numa reflexão altamente convencional, em matéria de teoria literária, em torno das aventuras e desventuras do texto literário em vias de integração no cânone... O conformismo da abordagem revela-se, entretanto, na referências a coisas como "leis que têm a ver (...) com a percepção de um universalismo da obra" (p. 26).
Hoje, passada a moda – há já algum tempo, convenhamos, décadas, mais de um século – de cantar loas ao “curso do mundo”, a ideia de uma afinidade electiva entre as experiências da escrita, da leitura e da crítica depende de se reconhecer a negatividade – o potencial crítico, o carácter subversivo, anómalo, perturbador – da arte, da literatura, do texto.
O que Júdice não vislumbra – e não só não vislumbra, como torna difícil entender – é que, precisamente, a negatividade do texto criticado é o que a crítica desdobra positivamente. Por outras palavras: a crítica do texto amplia, expande, prodigaliza o potencial crítico desse mesmo texto.
Ou não... Quer dizer, o texto pode, simplesmente, não chegar para tanto...ou até, ser-lhe simplesmente alheio; se o texto for mau, então não é criticável, diriam os primeiros românticos. Isto é, não é criticável no sentido da “crítica de arte”, mas é sumamente criticável do ponto de vista de uma “crítica da ideologia”.
O que importa é compreender que há uma fluidez intrínseca aos espaços da crítica: “crítica de arte” (no sentido primeiro-romântico de Schlegel e Novalis que Benjamin resgatou), “crítica da ideologia”, “crítica da cultura”, “crítica literária”, etc. não têm sentidos idênticos, mas não ocupam compartimentos estanques.
Por exemplo: a “crítica literária” operará, nesse sentido, conjugando o carácter positivo da “crítica de arte” e a dimensão negativa da “crítica de ideologia”, i.e., oscilará entre o “desdobramento crítico” do potencial crítico da obra e a “desmontagem crítica” do seu eventual carácter ideológico.
Um exemplo concreto, de outra arte (pois os discursos críticos atravessam as esferas das diferentes artes), do cinema: há mais em comum entre uma crítica demolidora de Slumdog Millionaire (e como poderia ser de outro modo, neste caso particular?) e, por hipótese, O sacrifício de Tarkovsky, do que entre as críticas que sobre um e outro filmes se escrevessem. Quer dizer, o filme de Tarkovsky, a boa crítica que sobre ele se escrevesse, e a crítica demolidora a Slumdog Millionaire formam uma constelação crítica contra Slumdog Millionaire, além de contra tudo e todos os que insistem em esforçar-se ao máximo para que o mundo não deixe de ser uma coisa indecente... Fui suficientemente claro?
Trata-se de um caso extremo, como é óbvio. E cabe ao crítico – mais do que discernir uma fronteira – problematizar o objecto da crítica, na oscilação entre “crítica de arte” e “crítica de ideologia”.
O que deixa muito a desejar é - depois de, com pertinência, se dizer que “o lugar do crítico é o lugar do leitor” - afirmar:
“(...) e, aí, tentar encontrar as questões que o texto coloca a quem o lê, procurando dar-lhes uma resposta, já que a simples leitura não tem esse fim. Se, ao ler a crítica, o leitor tiver encontrado ao menos uma resposta às interrogações que cada obra coloca, o objectivo da crítica pode dar-se por satisfeito.” (pp. 17s)
Como? A crítica como um guia de respostas, posta ao serviço da “docilização” do texto, do reconhecimento do seu sentido? Não creio.
Preferiria acreditar que a crítica, a crítica literária, prolonga a negatividade do texto – que é também o seu furtar-se a ser compreendido, não só de imediato, mas duradoiramente, é o seu esquivar-se a ser integrado no que já se sabe – e, assim, amplia, expande, prodigaliza o seu potencial crítico.
Ler um texto é uma experiência escorregadia e, se não puder ir mais longe, a crítica ainda há de fazer tropeçar algumas pernas.
3 comentários:
Caro e brilhante camarada João Pedro,
aprecio e faço em boa parte minhas as excelentes razões com que argumentas neste teu post. É verdade que não tenho a certeza de que sejam inteiramente certeiras do ponto de vista polémico - ou seja, que aquele que alvejas defenda posições radicalmente contrárias. Também gostaria de dizer que, além dos caminhos que indicas, a crítica literária pode tomar outros, no fundamental solidários dos que formulas, mas tomando outros pontos de partida ou núcleos de interrogação organizadores. O que não é um reparo ao que escreves.
É sem dúvida acertado, por fim, assinalar a rarefacção do espaço crítico - tenha por objecto a literatura ou seja o que for mais - nos meios de comunicação generalistas. Mas é um problema que excede em muito o foro interno da crítica literária, embora exerça sobre ele uma influência esterilizadora decisiva.
Teremos de voltar outro dia a este assunto - se, para já, não houver ninguém que pegue no salutar desafio ao seu debate que deixas neste teu post invulgar. Mas talvez a Ana Cristina Leonardo, além do próprio Nuno, queiram ir adiantando algumas pistas.
Caloroso abraço para ti
miguel sp
Caro J.P.Cachopo: Por imperativos geográficos ainda não li o livro do Nuno Júdice sobre o ABC da Crítica. Vou encomendá-lo hoje.De qualquer modo, segundo aquilo que refere o Pedro Mexia, o meu receio de que se tratava de um opúsculo " impressionista " está posto de lado. O J.P. Cachopo também aponta subliminarmente para o " terrorismo das fronteiras "( noção ventilada por E.Prado Coelho no seu derrdeiro livro de Ensaios)ou sugere o impacto do " enigma das metáforas",sub-conceito caro a Hans Blumenberg para realçar a força da inconceptuabilidade manifesta nas análises de Júdice. Nuno Júdice tem uma obra poética admirável,de nível mundial, a que foi acrescentando textos críticos dispersos: assumiu a Crítica Literária na revista " O Tempo e o Modo ", em 1969, em companhia de Manuel Gusmão, Eduarda Dionísio,Fernando Guerreiro, entre outros.E ao longo de décadas esse trabalho para-analítico avolumou-se pela intervenção em inúmeras revistas e jornais.Prometo voltar,pois, quando receber o livro e com o proposito de abalar as " superstições formais da textualidade "(idem E.P.Coelho) que J.P.Cachopo aponta com inteligência e ousadia revolucionária no opúsculo de Nuno Júdice. Niet
Obrigado Miguel, pela leitura sempre atenta. Sim, não há dúvida de que não são radicalmente opostas ao que escrevi as posições defendidas pelo Nuno Júdice. Mas não resisti, ao ler a crítica do Pedro Mexia no Público de 03/09, a ler o livro e, entretanto, a deixar estas notas desalinhadas e polémicas – e a sacudir, também, esse tal ‘cânone’ (tenho-lhe alergia, confesso). Um assunto a discutir mais vezes, claro..
Um abraço para ti!
Caro Niet,
Ousadia revolucionária q.b., convenhamos.
Apenas um post polémico, tomando como pedra de toque a ideia de uma afinidade electiva entre escrita/leitura/crítica que extravasa os circuitos habituais da instituição literária.
Bom vento!
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