17/12/10

A apologia do segredo


É relativamente insondável o que motivou João Lopes a sair do sossego das imagens e sons para se debruçar sobre as implicações filosóficas da Wikileaks. Só agora tive tempo para ler a série de textos sobre o tema e ainda estou a tentar decifrar o que ali se pretende demonstrar. Começo pelo primeiro.

É incorrecto que nunca alguém tenha reivindicado o acesso à totalidade da informação, no que compete aos assuntos de Estado. A vontade de saber o que se decide e como se decide nos corredores do poder ocupa uma posição política relevante desde que a democracia entrou na cena histórica.

Mas a própria formulação de Lopes serve aqui para baralhar tudo, uma vez que começa por denunciar uma concepção totalitária de jornalismo - que estaria inclusivamente disposto a devassar a vida privada de qualquer um  - para depois abordar o seu impacto na esfera circunscrita do Estado. Esse tem sido, aliás, um elemento recorrente na argumentação contra o Wikileaks,  ao colocar num mesmo plano, de forma abusiva, a privacidade dos cidadãos e os assuntos de Estado. As comunicações diplomáticas dos E.U.A. não são um assunto privado e, quando abordam assuntos privados, o facto de o fazerem e os termos em que o fazem são necessariamente temas públicos. E isto dando de barato que os juízos sobre o carácter de Putin, Berlusconi ou Sarkozy são um elemento secundário no contexto da informação disponível. 

Não é fácil descortinar a quem atribui João Lopes "formas de intervenção jornalística que promovem sistematicamente uma noção pueril, e puerilmente libertária, da informação" ou o "jornalismo da totalidade" com um "imaginário de anárquico infantilismo televisivo", mas não é necessário acarinhar "a promessa de um mundo apaziguado pela sua própria transparência" para gostar, defender, lutar pela transparência. Deveria ser função do jornalismo apaziguar os seus leitores/espectadores/ouvintes? Porque é que a transparência deveria ter como principal qualidade a sua capacidade apaziguadora e não, por exemplo, a sua capacidade de questionamento e inquietação? O que é que há de tão indiscutivelmente positivo no apaziguamento?

Mas o principal alcance do raciocínio de João Lopes está integralmente contido no pressuposto de que existe um domínio específico do saber e da informação estatal. É uma admissão, tão frontal como outra qualquer, que se desistiu aqui de considerar a democracia - no seu sentido amplo de participação política universal na  decisão dos assuntos colectivos - como o fundamento da legitimidade do Estado. Já outros autores o têm feito, mas  na forma de denúncia e sendo geralmente arrumados na prateleira do radicalismo "puerilmente libertário"
Se a identidade do Estado exige que as decisões tomadas no seu âmbito escapem ao escrutínio público, então é lícito admitir que toda a política feita ao nível do Estado corresponde à manutenção das condições necessárias à governabilidade, através de formas ritualizadas de legitimação esvaziadas de qualquer relevância efectiva - uma vez que os assuntos realmente relevantes são precisamente aqueles que permanecem no domínio especificamente estatal do saber e da informação,  os cidadãos vêm-se chamados apenas a escolher entre este ou aquele conjunto de indivíduos, que disporão posteriormente da mais ampla latitude para governarem como bem entenderem. Se necessário ou conveniente, como foi o caso dos voos de prisioneiros de ou para Guantánamo, ao arrepio do respectivo enquadramento legal e com aquela típica predisposição para a mentira que costuma acompanhar o sentido de impunidade.

2 comentários:

joão viegas disse...

Desculpe, mas este é o terceiro ou quarto post em que vejo referidos os textos do João Lopes. Mas não estamos a falar do que era critico de cinema ha uns anos ? Que me lembre, os textos dele não passavam de uma impressionante colecção de pedantismos colados uns a seguir aos outros com o objectivo evidente de ocultar tudo o que, de inteligente ou mesmo simplemente perceptivel, pudesse ter a ver, de perto ou de longe, com o filme criticado. Essa avantesma agora passou a fazer autoridade ?

E' que o homem do talho aqui da frente também tem uma opinião sobre a wikileaks...

Esta tudo doido, ou quê !

Ricardo Noronha disse...

Não João. Não passou. Mas que procura fazê-lo procura. E não custa nada perder alguns minutos a desmontar uma argumentação destas.