Mais do que um comentador afirma, à boleia da tese dos «brandos costumes», que aquilo que se está a passar em Inglaterra, na Grécia ou em Itália dificilmente acontecerá em Portugal. O Daniel Oliveira aqui, como o Miguel Portas aqui, são a versão de Esquerda desta banalização da pacatez nacional. E nota-se aqui a emergência de um dispositivo que vem sendo recorrente.
Quando actos de protesto e conflito ilegal, envolvendo confrontos com a polícia, saqueio e destruição de propriedade ocorrem noutro país, eles são uma resposta inevitável, um gesto compreensível, um resultado incontornável da política de austeridade e assim sucessivamente. Mas quando paira sobre Lisboa o espectro do anarquismo, quando os jornais e televisões iniciam campanhas de criminalização preventiva, quando a polícia se desdobra em comunicados intimidatórios, todos esses gestos e actos se tornam irresponsáveis, disparatados, contraproducentes, desprovidos de qualquer intenção política, levados a cabo por maníacos violentos e excitados.
Este não é, note-se, um fenómeno exclusivamente português, ainda que o facto deste ser o país mais pobre e desigual da Europa Ocidental (como não se cansam de repetir) talvez justificasse que a materialização da raiva fosse ainda mais inevitável, compreensível e incontornável. Não falta quem ganhe um brilhozinho nos olhos ao falar maravilhas da insurgência zapatista mas se apresse a condenar qualquer dano cometido contra o Mc Donalds da esquina.
A propósito dos confrontos ocorridos em Roma na semana passada, por exemplo, Roberto Saviano (o autor de Gomorra) resolveu escrever uma carta aberta ao movimento estudantil italiano, onde não poupa lugares comuns e disparates. Saviano gostaria que o movimento assumisse um novo horizonte, uma nova classe política, novas ideias para uma nova Itália. E considera, naturalmente, que os confrontos de rua prejudicam esse projecto de revolução democrática e nacional, por causa de uma centena de idiotas que vestem passa -montanhas e capacetes por pura diversão irresponsável, prejudicando assim a emergência de um novo rissorgimento.
Saviano queria em Itália, como muitos querem noutros sítios, que os movimentos e conflitos sociais respeitassem o jogo da alternância e o servissem, que aceitassem expressar civilizadamente o seu descontentamento e procurassem persuadir a maioria dos italianos a preferir Fassino ou Prodi a Berlusconi. Nem falta o espantalho de uma nova «estratégia da tensão», como a que atravessou o país na década de 70, cujas responsabilidades atribui à radicalização dos movimentos e não às manobras dos serviços secretos e da extrema-direita (demonstrando, aliás , uma ingenuidade que contrasta com a forma como apresentou a Camorra enquanto parte integrante dos dispositivos de poder económico e político em Itália e não um acidente histórico). Saviano pretende movimentos sociais que funcionem à medida da alternativa de esquerda (ou da alternativa democrática, ou da alternativa civilizada) em que se esgota a sua imaginação política.
Recebeu uma bela resposta do colectivo de Hip-Hope 99 posse, que destacou justamente o facto de os argumentos e formulações de Saviano serem já velhos quando eles próprios ocupavam faculdades, no final dos anos 90.
A explosão e extensão de movimentos e conflitos à escala europeia aponta noutro sentido. Ela ameaça romper a alternância entre ciclos de governação ou, pelo menos, furtar-se à sua mecânica. Coloca em cima da mesa, não apenas uma repartição do rendimento mais favorável para os trabalhadores - que seria já problemática num momento de crise orçamental e financeira -, mas uma crítica e recusa integral deste modo de vida, desta economia como desta política, desta escola, deste urbanismo, deste mundo. Esse horizonte permanece ainda nas franjas em Inglaterra e em Itália, mas ganha forma à medida que a contestação cresce em intensidade. Na Grécia o processo é mais antigo e atingiu já uma maturidade assinalável. Nenhuma razão há para acreditar que Portugal fique fora deste ciclo de lutas sociais. É bem verdade que os brandos costumes se farão sentir, com toda a probabilidade na forma de demarcação, caricaturização, criminalização e denúncia. Nada para o qual não tenhamos sido já habituados ao longo dos últimos anos. Nada que possa travar a explosão de raiva que a burguesia portuguesa se tem ocupado a preparar.
Já notava Rosa Luxemburgo que nada parece mais improvável do que uma revolução,instantes antes de ter começado e nada parece mais inevitável do que uma revolução instantes depois de ter começado.
Até o lume mais brando cresce quando sopra o vento. E não é necessário ser metereologista para saber que o vento está a soprar.
1 comentários:
Espero que a revolução se dê o mais rapidamente possível. Mas que os alvos sejam bem escolhidos. Não é difícil: nas administrações dos bancos e dos grandes grupos económicos, no governo, nos partidos políticos, na Assembleia da República, nos jornais e nas televisões.
Em suma, uma desparasitação completa.
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