A estupidez sociológica e a canalhice política do nacionalismo, que tanto nas suas formas mais doutrinárias como nos seus modos mais banais, da direita à esquerda e do telejornal à academia, não parou de acumular força nestes últimos tempos, essa estupidez e essa canalhice, dizia, dificilmente se revelam melhor do que nesta altura do ano. O actual estado do cavaquismo é, talvez, o que melhor representa uma e outra coisa. Se os intelectuais cavaquistas por um lado criticam o excesso de consumismo dos portugueses e repetem a lenga-lenga de que não se pode gastar o que não se tem (o que é tão verdade como só poder ser vendido o que se compra), por outro bajulam todas as iniciativas da caridadezinha e choram lágrimas (não me importa se de corcodilo se de passarinho) pela fome e pela pobreza que alastram.
E, já agora, em relação à crítica a esta onda de caridade que invade as agendas cavaquistas e as reportanges lamechas dos telejornais (de pronto compensadas por um austero comentário especialista de uns especialistas que são especialistas na especialidade de dizer que consumimos excessivamente), convém dizer que não se trata, aqui, neste post, de simplesmente contrapor elogios à superioridade (técnica e moral) da solidariedade do Estado providência. Não é por isso que julgo ser importante denegrir a piedade da Igreja ou das para-igrejas que por aí andam. Importa denegrir essa piedade religiosa porque ela procura substituir a fábrica de solidariedade do governo estatal por um cuidado artesanal com as almazinhas dos pobrezinhos, por certo, embora essa seja, sobretudo, uma preocupação dos nossos amigos dos Ladrões de Bicicletas, parece-me. Preocupação a que sou sensível mas que não esgota tudo o que há para fazer (e acho que os ladrões estarão de acordo a este respeito).
Mas antes de avançarmos, diga-se que não pretendo extremar a dita crítica a ponto de simplesmente entendê-la como hipocrisia e fenómeno do oculto. E não o pretendo não só porque não censuro as boas vontades dos activistas religiosos - para que saibam, aprendi a meter revistas em envelopes num centro paroquial e toda a gente sabe que um militante comunista precisa de saber meter revistas em envelopes - como porque todo e qualquer modo de governo paternalista não deixa, também ele, de reflectir o próprio poder de quem assim é governado. Um livrinho do senhor E.P.Thompson, que a Antígona traduziu há não muito tempo, é elucidativo a esse respeito. Por que importa então denegir a coisa? Para mostrar que há outros caminhos.
Da politização do conceito de sociedade-providência do Boaventura Sousa Santos à tradição cooperativista e mutualista, passando pela experiência conselhista ou pela história dos centros sociais, há muita coisa que faz caminho enquanto atacamos a piedade da Igreja e defendemos a solidariedade do Estado. Ou seja, trate-se de dar de comer a uns quantos, como faz a Igreja, de dar de comer e de ensinar a pescar a muitos, como pretende o Estado-providência, mas, antes de mais, de construir, já hoje, uma comunidade política de iguais (que só pode ser também uma comunidade económica de iguais). Nada menos simples, nada mais urgente.
E urgente será, então, começar a pensar no seguinte. Que luta contra a economia que temos é esta que dispensa (por dificuldades óbvias mas também por inércias silenciadas) os próprios desempregados? Ou que discurso de esquerda é este que, quando se trata de falar do rendimento garantido, se limita a dizer que as pessoas estão necessitadas, anulando de uma vez, em nome da solidariedadezinha social, a função simultaneamente económica e política de tal rendimento? E que conversa é a nossa que quando vemos confrontos políticos nas ruas de Atenas ou de Londres ou de Roma ou de Maputo nos limitamos a falar do desespero de quem se revolta e só depois tomamos (quando tomamos) partido? Nem pobrezinhos, nem necessitadoszinhos, nem desesperadinhos; nada dessas marginalizações, exotizações, precariedadezinhas; mas sim pessoas comuns que lutem. Imaginemo-las que vamos ver que já existem.
23/12/10
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2 comentários:
A estupidez sociológica?
anónimo, tem razão; também podia ter escrito esperteza sociológica, que vai dar ao mesmo...
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