11/12/10

O anarquismo colectivista e uma eventual reversão ao capitalismo

Ali em baixo alguém pergunta:
Sempre tive dificuldade em entender o que fariam os anarquistas colectivistas (que penso que é onde o MM se inclui) para que a sociedade nunca mais adquirisse características capitalistas. Afinal de contas, iriam impedir o aparecimento de bancos, de instituições financeiras com características semelhantes às que temos? 
Em primeiro lugar, imagino que o comentador esteja usando "anarquismo colectivista" no sentido de "anarquismo social" (na gíria interna do "anarquismo social", "colectivismo" tem outro significado - os "colectivistas" defendem que continue a existir uma espécie de dinheiro - não necessariamente com o nome "dinheiro" - enquanto os "comunistas" defendem que os bens devem ser distribuídos gratuitamente).

A resposta (que Kropotkine já deu mais ou menos há cento e tal anos) é que, se a sociedade põe à disposição dos seus membros os meios de produção, para quem (individualmente ou em grupo) os queira utilizar, porque é que alguém haveria de aceitar trabalhar para um patrão ou um capitalista? Uma analogia do mundo real - nada impede ninguém de começar a vender na internet distribuições do Firefox (estilo preenchermos um form com o nosso número de cartão de crédito e uma ordem de pagamento e de seguida o ficheiro de instalação ser-nos mandado para o nosso e-mail); mas quem é que iria aceitar um negócio desses sabendo que facilmente se obtém uma cópia à borla?
Para haver capitalismo, a premissa de o capital ter o ciclo D-D' é necessária e suficiente, certo?
 É necessária; não sei se será suficiente (depende muito da definição de capitalismo): um carpinteiro que compre madeiras por D e depois vendas os móveis que fez por D', de acordo com muitas definições, não é um capitalista (embora possa-se argumentar que neste caso D' não é capital, mas sim que o capital é sempre D e que D' menos D é a remuneração do trabalhador).

Já agora, a repeito da minha auto-identificação: eu simpatizo com o anarquismo social numas coisas, com o anarquismo individualista noutras e com o socialismo "tradicional" ainda noutras.

7 comentários:

Anónimo disse...

Imaginemos que Cuba não é o que é, mas sim uma ilha que se rege segundo os princípios anarquistas. Cuba não tem petróleo nem muitas outras matérias-primas de que necessita para produzir. Deste modo, os colectivos, associações ou o que quiser chamar, que têm de vender a sua força do trabalho para adquirir essas matérias-primas (muitas vezes a multinacionais tipo BP), não encontrarão um paralelo no mundo ocidental com o proletário que vende a força de trabalho ao patrão (ou ao Estado)?

Ainda penso que a questão dos bancos/instituições financeiras fica por resolver. Afinal de contas, eu se for cubano posso sempre trabalhar como agente financeiro por conta própria, pegando nos aforros do Miguel e de outros trabalhadores, investindo-o no mundo democrático ocidental e devolvendo-lhe mais dinheiro do que teria se o tivesse simplesmente aforrado. E claro que nesse caso eu também poderia enriquecer sem ter de trabalhar, (se não considerarmos o trabalho intelectual de detectar bons negócios como sendo "trabalho") à boa moda capitalista. E daí nascerá uma invasão de dinheiro na ilha, empobrecendo os outros trabalhadores relativamente a mim (que aconteceu na Europa a quem não era burguês nem nobre aquando da descoberta das reservas de ouro sul-americanas).

Duvido da possibilidade do anarquismo colectivista num caso como Cuba. Uma vez encontrei inúmeras dissertações de economistas americanos acerca do mercado negro em Cuba: o mercado negro prevalecerá sempre que existir uma penúria relativa de bens, ou seja, basicamente enquanto existir capitalismo a produzir coisas de plástico que criem nos cubanos o desejo de as possuir (o problema lá é muito mais grave, em questões tão básicas como a alimentação!).

É lógico que todo o meu comentário deixa de ser válido se considerarmos o triunfo dessa tal revolução à escala planetária, mas os efeitos do mercado negro existiriam de um modo muito turbulento pelo menos numa fase inicial (e duvido que se desvanecessem com o passar do tempo...) e com isso a possibilidade de existirem instituições financeiras (e numa escala mais organizada, máfias).

Anónimo disse...

É claro que onde escrevi anarquismo colectivista queria dizer social. O anarquismo "comunista" não se aplica no comentário porque pressuponho a existência de dinheiro.

Ana Paula Fitas disse...

Carissimo,
Faço link.
Obrigado.

Niet disse...

Miguel Madeira: Possa, como anarquista social tem que ter mais umas costelas teóricas do Bakounine, meu caro, se me permite esta forma de tratamento afectuoso...O Kropotkine era mais anarco-comunista com um livro soberano, imperdível sobre a Revolução Francesa, " A grande Revolução ", que ao ler parece que, por vezes, estamos a ouvir a belíssima história de violência armada e libérrima de Palma Inácio & os seus Amigos. Discutiu violentamente com Lénine e tem uma auto-biografia que se recomenda. Niet

Miguel Madeira disse...

"Deste modo, os colectivos, associações ou o que quiser chamar, que têm de vender a sua força do trabalho para adquirir essas matérias-primas (muitas vezes a multinacionais tipo BP), não encontrarão um paralelo no mundo ocidental com o proletário que vende a força de trabalho ao patrão (ou ao Estado)?"

Boa questão.

Eu sinto-me inclinado para considerar que, desde que uma associação de trabalhadores controle as suas ferramentas de trabalho e tenha o direito de decidir como organiza o seu trabalho colectivo (p.ex., decidirem do seu horário, da divisão do trabalho entre sub-sectores, etc.) não está na mesma situação que um proletário face a um patrão.

Mas admito que é uma área cizenta (pensando bem, segundo o meu critério se calhar um trabalhador em regime de teletrabalho também não seria um proletário...)

Miguel Madeira disse...

"Ainda penso que a questão dos bancos/instituições financeiras fica por resolver. Afinal de contas, eu se for cubano posso sempre trabalhar como agente financeiro por conta própria, pegando nos aforros do Miguel e de outros trabalhadores, investindo-o no mundo democrático ocidental e devolvendo-lhe mais dinheiro do que teria se o tivesse simplesmente aforrado. E claro que nesse caso eu também poderia enriquecer sem ter de trabalhar, (se não considerarmos o trabalho intelectual de detectar bons negócios como sendo "trabalho") à boa moda capitalista. E daí nascerá uma invasão de dinheiro na ilha, empobrecendo os outros trabalhadores relativamente a mim (que aconteceu na Europa a quem não era burguês nem nobre aquando da descoberta das reservas de ouro sul-americanas)."

Essa também é uma questão interessante - a teoria anarquista tem carradas de textos tentando explicar como o capitalismo não renascerá dentro sociedade anarquista, mas não sei se alguma vez algum terá abordado a questão do capitalista vivendo de rendimentos obtidos fora da sociedade anarquista (um pouco como se em 1860 um habitante do Massachusetts possuísse escravos... no Alabama).

Miguel Madeira disse...

A respeito do mercado negro e afins, ver

I.4.12 Won't there be a tendency for capitalist enterprise to reappear in any socialist society?