12/12/10

O neo-conservadorismo ataca a Wikileaks

O Gabriel Silva já respondeu, de modo certeiro, a este post do José Manuel Fernandes (JMF), ao qual o Miguel Madeira já aludiu. O Gabriel Silva parece não perceber porque é que o JMF se opõe à divulgação sistemática de documentos confidenciais (seja pela Wikileaks, seja por qualquer outra organização, ou indivíduo), e ficou tão perturbado por descobrir que Julien Assange é da opinião que vivemos sob o jugo de governos autoritários. Talvez o Gabriel Silva entendesse melhor a posição do JMF, se procurasse saber quem foi Leo Strauss e Irving Kristol, de quem JMF é discípulo. O neo-conservadorismo assenta nas ideias desenvolvidas por Leo Strauss, subsequentemente defendidas por Irving Kristol. Ora, um dos aspectos centrais dessa ideologia é a defesa da decepção, da manipulação contínua da população para que esta não se rebele. É, aliás, essa a razão porque JMF, ateu confesso, vê a religião, incluindo a hieraquia e rituais associados, como elemento central da sociedade. Torna-se assim mais clara a posição de JMF perante a Wikileaks: JMF teme que a divulgação sistemática de documentos confidenciais torne impossível a manutenção do mito de que vivemos em sociedades democráticas, onde os governos agem sempre dentro dos limites da Lei e em prol do bem-comum, eleitos por cidadãos na posse da informação relevante para tomarem uma decisão sobre quem querem que os represente e governe. JMF sabe que tudo isto é uma mentira, e que na realidade vivemos sob o jugo de uma conspiração de governos autoritários, ao serviço da oligarquia económico-financeira. E apoia-a. De outro modo, tomaria a mesma posição que o Gabriel Silva: essa conspiração não existe, os governos actuam legalmente e em prol do bem-comum, por isso o que há que temer perante a divulgação de documentos confidenciais?...

Entretanto, JMF já respondeu ao Gabriel Silva, tal como o Miguel Madeira refere neste post. Um dos aspectos interessantes da sua resposta é que ele finge ignorar, por decerto, dado acompanhar de perto a política nos EUA, que nos EUA várias figuras com enorme peso político têm apelado ao julgamento por traição (quando não ao seu assassinato) de Julien Assange, ao abrigo do famoso Espionage Act de 1917, criado por Woodrow Wilson para possibilitar prender todo aquele que se opusesse à participação dos EUA na Primeira Guerra Mundial. Basicamente, o Espionage Act de 1917 permite a criminalização da opinião, usualmente considerada protegida pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA. Porque é que JMF não referiu estes apelos, que devem ser tomados a sério, à prisão de Julien Assange? Suspeito que é porque concorda com eles, mas sabe que afirmar tal o desmascaria, revelando o autoritarismo que está por detrás das suas posições políticas.

Hoje, sábado, no jornal Público aparece um artigo de opinião assinado por José Pacheco Pereira (JPP), mencionado neste post da Ana Cristina Leonardo, em que JPP defende essencialmente o mesmo que JMF. E pela mesma razão, aliás mais clara no texto de JPP: as "democracias" são e têm de ser tuteladas por uma elite esclarecida, e a publicação de documentos confidenciais que o revelem corre o risco de destruir a decepção em que vivemos, derrubando o sistema político e sócio-económico vigente. O ódio que JPP tem ao que ele designa por igualitarismo é de tal modo forte que JPP não é capaz de dissimular a sua pulsão autoritária e profundamente anti-democrática, ao contrário de JMF, mais cuidadoso na definição da percepção que pretende incutir aos seus leitores.

5 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Post exemplar, meu caro Pedro.
Noutra ordem de ideias - ou noutro lado da mesma -, será interessante ter presente que o actual Papa abençoa em termos inquietantes o que para um crente sincero diriamos ser a suprema abominação: o uso da religião como dispositivo de legitimação da autoridade hierárquica. Com efeito, o pacto de estabilidade que Ratzinger propõe às oligarquias a que absurdamente chama "democraticas" passa por pôr fora de discussão as normas fundamentais da governabilidade através da sua sacralização. Não é preciso que a "lei natural" seja de origem divina (embora Ratzinger sustente que o é), basta que seja imposta enquanto limite à "democracia" e ao seu "relativismo" dialógico como se o fosse.
A contrapartida desta concordata é a extensão do papel político da Igreja e o contributo dos governantes para a nova "evangelização", entendida esta, lato sensu, como consagração acima da vontade e da acção humana e dos direitos e exercício responsável da cidadania democrática dos princípios (meta-)constitucionais da ordem global.
Fica aqui o apontamento. Mas teremos de voltar ao assunto, que bem a propósito vem.

Forte abraço para ti

mguel sp

Niet disse...

O que parece é que JMF1957 estuda muito a sério os " mestres "! Os próceres da " Filosofia da Mentira "- Schmitt e Strauss-constituiram o fundo de comércio dos Estudos Políticos da Universidade de Chicago criados por Leo Strauss nos anos 40 durante o exílio USA. Na coorte de alunos surge Allan Bloom- que tem dois livros traduzidos há muito em Portugal - que depois passa o testemunho e coopta Paul Wolfowitz, braço-direito de Rumsfeld no Pentágono, e a Perle, I. Kristol e Abram Shulsky, que funda. este último, uma espécie de bureau ideológico straussiano de apoio teórico a Cheney, o vice de GW Bush. Duas mulheres de garra tornaram-se grandes especialistas mundiais de Strauss, o idéologo das " mentiras nobres ": Sandrine Baume, da Universidade de Genebra, e Shadia Drury, da Universidade de Calgary. O famoso blogue Counterpunch.or tem um dossier vastíssimo sobre os Neo-Cons e a famigerada doutrina em torno da Teologia do Estado. Niet

Marlexis disse...

Apenas um detalhe, penso que nesta posta a palavra "decepção" é usada no sentido inglês de "deception". Ora parece-me que em português a tradução de "deception" será mais algo como "engano".
Por exemplo, no último parágrafo ficaria "(...)a publicação de documentos confidenciais que o revelem corre o risco de destruir o engano em que vivemos(...)".

De resto, parabéns pela posta.

Ana Cristina Leonardo disse...

Pessoalmente não tenho nada contra a existência de elites e acho mesmo que são indispensáveis. Ceci dit, como diria a Morgada, o problema está qd se começa a confundir elites com polícias ou a apregoar que a elite c'est moi.

PS.: E dar de barato que o pessoal das embaixadas americanas espalhado pelo mundo faz parte das elites (entendidas no sentido que PP quer dar ao termo) é alargar demasiado o conceito

Júlio Costa disse...

Para suprema raiva de José Manuel Fernandes e Cª, a não perder aqui em http://sempunhosderenda.blogspot.com/2010/12/um-republicano-americano-que-irritara-j.html
as desassombradas perguntas do republicano (sim, republicano) Ron Paul.