O
João Bernardo acaba de publicar um breve ensaio-manifesto excepcional no
Passa Palavra.
Começarei por citar, à laia de homenagem, alguns excertos, que qualquer mera paráfrase empobreceria:
"A adopção de uma multiplicidade de sujeitos históricos significa que a esquerda do século XXI abandonou a luta por um novo ser humano — um ser humano integral em quem deixem de ser pertinentes as divisões entre sexos e as diferenças entre as cores da pele e os formatos do nariz e dos olhos — e reforçou todo o tipo de particularismos. Superar os particularismos é uma coisa; outra coisa, muito diferente, é transformar a sociedade numa colecção de particularismos, ligados pelo mercado. Ressuscitaram-se assim as condições ideológicas para a biologização da cultura, que foi a operação distintiva do racismo e, mais especialmente, do nacional-socialismo germânico".
"A cultura europeia, hoje tão denegrida, desde há muito não existe. Foi superada pela cultura capitalista que, ao mesmo tempo que ultrapassou as tradições europeias e a sua área étnica, absorveu as culturas dos outros continentes e encetou um processo de unificação mundial. Quando a esquerda contemporânea recorre à acusação de eurocentrismo como arma polémica, não está a referir-se a uma Europa que acabou há muito. O que está realmente a fazer é a negar a aspiração a um ser humano integral e à universalização da cultura".
"Com a redução da classe trabalhadora à modalidade arcaica fica escamoteada a sua enorme ampliação e a sua plasticidade social, que corresponde à ampliação espacial dos locais de trabalho e à plasticidade que adquiriram ao integrarem os lazeres no processo formativo da força de trabalho.
Os espaços de lazer estão hoje tão vigiados como as fábricas e os escritórios. E aqueles jovens, ou já não tão jovens, que agora investem as ruas como os operários tradicionais podem ocupar as fábricas sabem, intuitiva mas certeiramente, que ambos os espaços são locais de trabalho.
Por isso se ilude aquela porção da esquerda que defende as formas artísticas mais degradadas com o argumento de que o seu consumo pelas massas lhes confere um carácter proletário. A indústria cultural capitalista tem, sem dúvida, uma vocação proletária, mas na mesma acepção em que a tem o fast-food. Não se pode lutar contra a proletarização do trabalho se se aceita a proletarização dos lazeres".
Esperando que estes excertos tenham levado o leitor a querer conhecer o texto na íntegra, há, no entanto, dois pontos que me parecem menos convincentes, e sobre os quais, em qualquer caso, o João Bernardo deveria, a meu ver, completar ou precisar as suas teses. Aqui ficam, pois, simplesmente anotados, em termos quase telegráficos, que se limitam a assinalar a importância que atribuo à sua discussão.
1. A crítica do ecologismo.
O primeiro diz respeito à crítica da esquerda ecológica. Com efeito, se as considerações do JB sobre os mitos e a ressacralização da lei natural são brilhantes e penetrantes como poucas, aplicam-se, sobretudo, à chamada ecologia profunda, e perdem pertinência se entendermos que se referem a toda e qualquer preocupação ambiental. Por duas razões principais, das quais a primeira é que, por muito catastrofismo que inquine a ideologia ecologista, a finitude dos recursos naturais e as devastações paisagísticas, que não relevam de considerações contabilizáveis, não me parece que possam ser negadas de ânimo tão leve. A segunda decorre do facto de o JB não aplicar ao investimento dos modos de consumo dominantes e à ideologia da "abundância" as considerações críticas que se justificariam e que seria lógico vê-lo formular, tanto mais que estão implícitas na parte "estética" do seu ensaio e na denúncia da degradação dos lazeres. Como não há duas sem três, outra questão se poderia pôr ainda: para criticarmos a sacralização de pretensas leis naturais e os mitos do puritanismo ecológicos, não poderemos arranjar melhor do que a concepção da natureza como simples matéria-prima inerte e exterior a uma humanidade, subjectiva e desencarnada, concebida como sua dona e senhora? Não poderemos e deveremos conceber mais paisagisticamente a emergência da dimensão subjectiva, concebê-la como um acontecimento paisagístico, uma metamorfose ontológica, que justamente não sacraliza a natureza na justa medida em que a concebe como dimensão interna de um sujeito que, sendo uma transformação sua, a transforma por sua vez, recriando as próprias condições da sua criação?
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Adenda: Por outras palavras e em suma, a concepção da realidade humana como instância e dimensão social e subjectiva de uma paisagem do real ("natureza") da qual emergiu como acontecimento metamórfico singular, e da qual é desde início parte activa e transformação criadora, conforta e reitera a ideia do JB daquilo a que poderíamos chamar a natureza histórica peculiar que a acção humana (social e subjectiva) introduz, faz ser, cria na natureza que a criou. Mas, se entendermos assim a transformação da natureza como auto-transformação paisagística ou auto-criação social-histórica continuada, teremos de assumir que a acção sobre a natureza nunca é política, social ou culturalmente neutra - o que significa que nem todas as formas ou modalidades de transformação se equivalem e que os modos da acção humana sobre a natureza são uma dimensão interna da instituição e da auto-transformação da sociedade. ]
2. O sujeito histórico universal.
A segunda grande questão a pôr ao texto do JB tem a ver com o conceito de classe trabalhadora que ele mantém como sujeito histórico universal, ou como identidade do agente da transformação revolucionária e do seu universalismo. Se a sua crítica da adopção de uma multiplicidade de sujeitos históricos (cf. o primeiro excerto aqui citado, bem como a crítica do multiculturalismo e das reivindicações identitárias que atravessa todo o seu magnífico breve ensaio-manifesto) é, sem dúvida, convincente, daí não se deduz que seja necessário fazer corresponder a uma classe ou grupo social precisos e dados de antemão o sujeito histórico da transformação revolucionária. Podemos e, a meu ver, devemos pensar antes que a construção desse sujeito é, desenvolvendo-se com ela, inseparável da transformação visada a partir, não de uma classe ou grupo universal que já o fosse antes de o ser, mas da grande maioria dos homens e mulheres que somos, assumindo como cidadãos comuns um projecto de autonomia e autogoverno que nos permita concebermo-nos e agirmos como responsáveis pelas leis e instituições que nos vinculam. Nesta perspectiva, a haver agente revolucionário identificável este seria o conjunto dos cidadãos comuns empenhados na instituição da sua cidadania como governante. Ao mesmo tempo que esta cidadania governante se definiria como exercício livre, igualitário e responsável do poder político (incluindo evidentemente as áreas do trabalho, da economia, etc. entre os assuntos vitais da cidade) por aqueles mesmos que governa ou que através dele se governam. Assim, a divisa da "cidadania governante" preservaria e aprofundaria, retomando a sua verdade permanente, a universalização proposta pela velha divisa: "A emancipação dos trabalhadores será obra dos mesmos trabalhadores".
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Adenda: Embora não valorizando menos do que o JB "a questão da tomada em mão do funcionamento global da sociedade", pois o aspecto decisivo é, aos seus olhos, "a actividade pela qual os homens, nos locais sociais em que estão colocados, vivem e agem o conflito social, e mais exactamente o constituem como conflito
social, as formas de organização e de luta que inventam, os conteúdos que emergem por ocasião dessas lutas, enfim a [sua] capacidade (…) — ainda que percial, minoritária e intermitente — de visar o todo social, de se afirmarem como querendo tomar a seu cargo a organização e o funcionamento da sociedade", Castoriadis mostra que o alcance universal ou o trabalho de universalização de uma transformação radical instituinte não depende da identificação antecipada de um autor (indivíduo, partido, teoria ou sequer classe ou grupo social) ao qual as condições objectivas imporiam esse papel.
A este propósito e para especificar a minha divergência com o JB sobre a concepção do sujeito histórico da construção de uma sociedade autónoma e autogovernada, creio que vale a pena deixar aqui, sem mais comentários, uma longa transcrição de excertos do ensaio de 1973 de Castoriadis sobre "A Questão da História do Movimento Operário", em
A Experiência do Movimento Operário - 1, Lisboa, A Regra do Jogo, 1979:
"Perante a desagregação generalizada que abala a sociedade contemporânea (…) [n]ão pode existir política que se queira revolucionária que não tente explicitar e elucidar a sua relação com a sua origem e a sua raiz histórica, o movimento operário.
"A história do movimento operário é a história da actividade de homens pertencentes a uma categoria social e económica criada pelo capitalismo (e a outras que lutaram ao seu lado), actividade através da qual essa categoria se transforma,
fazendo-se (…) uma 'classe' num sentido novo deste termo - constituindo-se efectivamente numa 'classe' da qual a história não oferece análogo proximo ou longínquo. Transforma-se, transformando a passividade, a fragmentação e a concorrência (…) em actividade, solidariedade e colectivização, invertendo a signifucação capitalista do trabalho. Inventa na sua vida quotidiana, nas fábricas e fora delas, respostas sempre renovadas à exploração, engendra princípios estranhos e hostis ao capitalismo, cria formas de organização e de luta originais. Tenta unir-se para além das fronteiras, adopta como hino um canto que se chama
A Internacional. Paga à ignomínia capitalista o mais pesado tributo de miséria, perseguição, deportação, prisão e sangue. Nos momentos culminantes da sua história, cria novas instituições universais (…).
"Transformada assim, pela sua actividade, de objecto de exploração em força social determinante da história desde há cento e cinquenta anos, a classe operária transformou também a sociedade capitalista (…) Mas o 'resultado' provisório (…) foi o
desaparecimento do movimento operário enquanto força social-histórica
originária e
autónoma. A classe operária, no sentido próprio do termo, tende cada vez mais a tornar-se uma camada numericamente minoritária nos países de capitalismo moderno. Ainda mais importante, deixou de se manifestar e de se pôr a si própria como classe. É certo que se assiste paralelamente à transformação da quese totalidade da população trabalhadora em população assalariada (…) mas (…) [a]inda menos do que na situação 'objectiva' do operário industrial haverá na de assalariado em geral uma predestinação revolucionária.
(…)
"(…) não se pode hoje nem manter uma posição privilegiada do proletariado no sentido tradicional, nem estender mecanicamente as características deste ao conjunto dos assalariados, nem, enfim, pretender que estes se comportem como uma
classe, ainda que embrionária. Todas as camadas da sociedade moderna, à excepção das cúpulas dirigentes, vivem e agem na sua existência quotidiana a alienação da sociedade capitalista contemporânea, as contradições e o esgotamento profundo do sistema, a luta contra este sob uma variedade infinita de formas (…) As lutas operárias em torno das condições de trabalho iam e continuam a ir muito longe (…) [que] a
empresa tenha sido, e em certa medida continue a ser, um lugar privilegiado de socialização sob o capitalismo, é decerto verdade e é importante - mas isso não reduz a importância de outros locais de socialização exsistentes nem, sobretudo,
dos que estão por criar. (…)
"Numa sociedade mundial (…) em que se põe com uma acuidade nunca antes conhecida o problema político como problema do todo, continuamos a ser tomados pelo projecto revolucionário engendrado pela classe operária, cujo autor recua e desaparece entre a multidão dos actores sociais. Econtramo-nos na situação paradoxal de entrecer cada vez melhor — ou, pelo menos, de acreditar que assim é — o que implica uma transformação social-histórica radical, e cada vez menos
quem a pode realizar.
"Mas talvez a situação só na aparência seja paradoxal. (…) O projecto revolucionário tornou-se tal que não terá sentido nem realidade se a esmagadora maioria dos homens e das mukheres que vivem na sociedade contemporânea não vierem a assumi-lo e a fazer dele a expressão activa das suas necessidades e das suas aspirações. Não há salvador supremo, e nenhuma categoria particular tem a seu cargo a sorte da humanidade".