19/06/10

Uma crónica de José Saramago e as nostalgias inquisitoriais do reino de Bento XVI. O Vaticano procede à obra de misericórdia da execução em efígie do escritor condenado

O jornal do Vaticano, como que dando graças a Deus pelo alívio que causou a muitos e desvairados hierarcas da Igreja de Roma, a morte de José Saramago, acusa-o, na punitiva recensão necrológica da obra que lhe consagra (e que outros diriam bem pouco evangélica), de ateísmo populista e extremista, materialismo simplista e libertário, que atribui, não se abstendo sequer dos juízos de intenções, a uma opção deliberada e lúcida de Saramago pelo joio contra o trigo - ou seja, à perversidade de uma escolha do mal enquanto mal contra o bem enquanto bem.
Se há quem considere, não sem bons argumentos, que os romances mais explicitamente (a)teológicos de José Saramago simplificam de facto a questão religiosa e não logram exprimir a plenitude da concepção, gradualmente amadurecida pelo autor, que lhes terá servido de ponto de partida, isso não nos dispensa de reconhecer que, noutros momentos e por vezes menos directa, mas mais eficaz e profundamente, o mesmo José Saramago foi capaz de formular o seu ateísmo e a sua concepção da já referida questão religiosa em termos penetrantes e que sugerem pistas indispensáveis. E se é verdade também que José Saramago, nos seus romances "blasfemos", adia ou suspende a extensão da sua leitura da alienação religiosa às metamorfoses, só aparentemente laicas, que a prolongam e reproduzem, e por vezes tanto mais fanaticamente quanto mais puramente materialistas e científicas se pretendem, não é menos instrutivo verificar que o seu interesse crescente e cada vez mais explícito pela "crítica da religião" como princípio (em todos os sentidos) de toda a crítica da alienação, acompanhou o desenvolvimento e a afirmação de uma intervenção política cada vez mais crítica perante todas as formas de sacralização autoritária e consagração hierárquica de teorias, vanguardas históricas, direcções exteriores, que reproduzem, na contestação da ordem estabelecida, a lógica da dominação que essa ordem exerce.
Aqui ficam alguns excertos de um artigo, que o Filipe Moura reeditou já  no Esquerda Republicana e que José Saramago publicou, na Folha de São Paulo, a 19/09/2001, dias depois do 11 de Setembro de 2001. Com efeito, a sua leitura é a mais adequada resposta à sinistra execução em efígie com que o jornal oficial dos domínios de Sua Santidade Bento XVI houve por bem assinalar a morte do autor.

De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. (…) [M]as a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.


E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o "fator Deus", esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o "fator Deus" o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, não a outra...) a bênção divina. E foi o "fator Deus" em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o "fator Deus", esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.

3 comentários:

Joana Lopes disse...

Deixei aqui um comentário, mas penso que não terá seguido.

Miguel,
Ao ler este teu post, fiquei sem perceber se estarás de acordo com isto que escrevi no Brumas.

Abraço

Miguel Serras Pereira disse...

Joana,
o teu comentário no Brumas é extremamente inteligente - o que não me espanta. No entanto, embora haja pontos de acordo com o que escrevi, penso que talvez exageres na compreensão que mostras - apesar das reservas que acentuas - perante a posição do crítico do Osservatore.
Com efeito, como acentuei, CT não só denuncia o que, do seu ponto de vista, são os erros de Saramago, como lhe sonda o foro íntimo acusando-o de escolher conscientemente (lucidamente) o mal contra o bem. Num idioma que não é o meu, diria que me parece pouco caridoso. Por outro lado, argumentar que Saramago recorre a um narrador omnisciente, etc., em vez de problematizar a existência de um mistério no fenómeno do mal, culpando o autor de dogmatismo, etc., parece-me. além de tosco do ponto de vista literário, não primar pela boa-fé de um defensor assumida dos dogmas romanos. E há mais aspectos desta ordem, que me dispenso de citar. Daí que tenha falado de "execução em efígie".
Finalmente, tanto tu como eu próprio nos tenhamos esquecido de referir o que estas tomadas de posição e o seu tom prefiguram como o que seria um "poder temporal" ou "secular" merecedor da aprovação do Vaticano (repara que já não digo: exercido pela Cúria) do ponto de vista dos direitos e liberdades de expressão e consciência. Aqui fica, pelo meu lado, a chamada de atenção. Esta parece-me justificar-se perante as pretensões explicitamente declaradas de Bento XVI de promover um protagonismo político mais intenso da Igreja. Ou engano-me muito?

Abraço para ti

miguel sp

CN disse...

Nos processos de inquisição, a pena era decidida secularmente, e pelo que sei com apelos frequentes pelo representante da ICAR a menor pena. E provocou 2000 vítimas ao longo de 200-250 anos. Com já disse, imperdoável, mas historicamente é fazer as contas a outros "processos" históricos provocados pelo Estado.