23/06/10

Nem ser nem deixar de ser comunista

Um dos nossos leitores mais assíduos é um jovem intelectual do PCP. Trata-se de uma pessoa estimável, pelo que me é dado a ler, mas que por vezes não resiste à tentação de exercer o seu poder vigilante. Neste comentário a um post do João Tunes, e num debate para o qual eu não era chamado, diz o nosso leitor que eu «estou muito longe de ser comunista». A frase é simplesmente idiota. E não por mim. É idiota porque torna o comunismo numa espécie de identidade. Quem fala assim não é gago, por certo, mas quem assim fala é alguém que já desistiu de pensar a transformação. Quer apenas fazer vencer sei lá o quê. E a mim, com efeito, não me parece de todo urgente um debate que procure demarcar quem é e quem não é comunista. (E por isso recuso-me a debater em tais termos se sou ou se não sou comunista). O que sim me parece urgente é encontrar, consolidar, inventar, experimentar, no que é evidente e no que não é evidente, sinais de um princípio comunista. Por exemplo: de que me interessa saber que a Coreia do Norte é comunista? Outro exemplo: por que não nos haverá de interessar saber que existem práticas comunais para as quais a palavra comunismo, todavia, em nada contribuiu?
Na verdade, uma política de identidade comunista não tem como não ser uma política de identificação anticomunista. Em ambos os casos trata-se de rotular, categorizar e classificar o ser, retendo o seu movimento e a sua transformabilidade. Jean-Luc Nancy, num texto recentemente publicado, e brilhantemente traduzido pelo nosso Miguel Serras Pereira, estabelece uma distinção que é talvez importante para um debate destes: diz ele que não nos deverá interessar o ser da comunidade mas sim a comunidade do ser; não a essência da comunidade, mas a existência. É trocar comunidade por comunismo, que eu assino por baixo.

6 comentários:

Grunho disse...

Achei interessante esse senhor dizer que Saramago tomava "as suas posições ao sabor do que lhe dava na tola", reduzindo a isso a sua opção comunista.
Agora se ele "é um jovem intelectual do PCP" não sei mas se é, ficamos a saber alguma coisa sobre como está o Pc actualmente.

fernando machado silva disse...

e não será essa ideia de comunidade o que vigorava nos textos de kropotkine, expresso num anarquismo comunitário/comunista? (já agora, qual é esse texto de nancy, "la communauté affrontée" ou "la communauté désouvrée"? ou é outro? está traduzido onde?)

abraço

Anónimo disse...

Caríssimo Z.Neves:A renovação exaltante e dialéctica do seu pensamento ganha nova e surpreendente dimensão com o processo de construção de um princípio comunista, que elabora e sinaliza sucintamente aqui. Sente-se a coragem e a lucidez pura,transparente e em acto.O que é surpreendente nos tempos que correm de revisionismos e cientismos estéreis e mistificatórios.Contudo, não devemos deixar de meditar neste aviso de Victor Serge, de 1936, ele que, fiel ao marxismo revolucionário de Lenine e Trotsky e ao anarquismo estilizado de Pierre Kropotkine e A. Nin, sublinhou:" Talvez o perigo comum, a vontade comum de vencer e transformar o Mundo, a comunidade de sangue e de aspirações- porque para todos nós- " a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores "- tudo isso, repito, não seja suficiente para reconciliar na e pela acção e a emulação ao serviço da Revolução, os libertários e os marxistas ".Niet

António Geraldo Dias disse...

Começo pelo fim.No decurso de um trabalho de âmbito científico sobre identidade comunista creio ter percebido que o partido rejeita
qualquer identificação com uma comunidade.Depois,é reconhecida uma identidade comunista-por membros não comunistas da comunidade científica.O caminho que vai da identificação à identidade no caso vertente é longo de quase cem anos de existência- o que por si só lhe confere um lugar na identificação
colectiva.E aqui chego ao começo para discutir o que é hoje ser comunista.

Zé Neves disse...

caro benjamim,

é um pequeno texto que faz parte da communauté désouvrée. está em "A Política dos Muitos", um livro que acaba de sair (não sei se já está nas bancas das livrarias) e que é coordenado por mim e pelo Bruno Peixe Dias.

caro niet,

de acordo, uma vez mais. não se trata de encontrar no tal princípio a garantia de qualquer solução ou de o dar como suficiente para qualquer solução. apenas de não poder contornar um tal princípio.

caro geraldes dias,
não sei se captei tudo, mas cheira-me que estamos de acordo

João Valente Aguiar disse...

José Neves,

Apenas me referi a si como não-comunista como exemplo de que Saramago era um escritor comunista, ainda por cima porque foi o único escrevinhador deste blog, se não estou em erro, a considerar Saramago como um escritor comunista. E como você reconheceu correctamente. Na minha opinião você não é comunista não por não pertencer ao PCP mas porque não comunga de princípios fundamentais do comunismo e do marxismo: luta de classes, poder operário de base e planificação central, existência de uma organização política de vanguarda, ditadura do proletariado, centralidade da teoria do valor e das classes sociais, etc. Esta amálgama serve só para dar conta de questões que definem o comunismo, não num sentido identitário, mas de um ponto de vista objectivo. Por isso, para mim, dizer que você não é comunista não é uma ofensa nem uma catalogação identitária/simbólica. É até uma questão secundária. Apenas a estou comentar (será que devia?) porque você pegou nesse ângulo obtuso e amplamente secundário.

Só é pena que você continue tanto em volta do Negri e dessas coisas anarcóides. Durante uns tempos tem piada, mas depois percebe-se que aquilo não dá, nem nunca deu em nada. Como você consegue explicar a dinâmica do capitalismo sem uma teoria do valor? Acha mesmo que a multidão substitui as classes e, mais ainda, a centralidade da classe trabalhadora? Eu duvido mto dessas modas e que se limitam a recauchutar coisas antigas (algumas até do tempo do Marx) apenas com uma terminologia mais elaborada e chique.

Discutir as classes e o valor (e outras questões como o Estado e a ideologia), isso sim, seriam pontos relativamente fecundos para debate.