07/06/10

A gestão do negócio dos ópios dos povos

A propósito do Beato Popieluszko, neste post, passei pelas brasas a relação das experiências de comunismo estatal com as igrejas condutoras das religiões, centrando-me no caso polaco, cujo interesse maior tem a ver com o facto de a Polónia ter sido, entre os países governados por partidos comunistas, aquele em que a religião se conservou com mais força e poder, tanto que conseguiu dar um Papa. Mas o tema, dos pontos de vista histórico e político, comporta um interesse a pedir estudo e investigação para que se possam extrair conclusões com base numa interpretação sistémica. Até lá, só se poderão adiantar perplexidades. Que são tantas que o difícil é escolher.

A formulação marxista acerca do problema religioso foi claríssima e sintetizou-se no anátema genial e imortal de se considerar a religião como “o ópio dos povos”. As práticas leninistas, depois estalinistas, de exercício do poder foram correspondentes e consequentes com o diagnóstico de Marx. A religião e os religiosos foram tratados como inimigos de classe, sujeitos assim ao terrorismo do proletariado. Os padres e as religiosas ou levaram chumbo para dentro do corpo ou foram pregar para o Gulag. Catedrais e igrejas foram dinamitadas ou reconvertidas para casas de interesse colectivo. Nas escolas e nos cursos de formação política de bons e porfiados comunistas, o “ateísmo científico” era disciplina nuclear. Mas o certo é que, como se viu na após implosão comunista, apesar de tanto e de tudo, a fé comunista, mesmo patrocinadora de um poder absoluto, não venceu a fé religiosa.

O grande ponto de viragem táctica do poder comunista face ao poder religioso deu-se na Segunda Guerra Mundial na fase crucial do enfrentamento soviético-nazi. Para mobilização do povo soviético para o contra-ataque (1941-42), em Leninegrado, Estalinegrado e Smolensk, que exigia um nível de sacrifícios extremo e a mobilização de todas as energias, Estaline transigiu com as exigências de formulações ideológicas inscritas na sua formulação oficial do marxismo-leninismo, recuperando, para a mobilização, todo o rosário dos símbolos e das metáforas que incorporassem os apelos à resistência e à vingança, incluindo os ancestrais. Ou seja, o patriotismo (mesmo na versão chauvinista e grã-russa), a herança da cultura imperial czarista (Alexandre Nevsky foi re-deificado), o sentido nacionalista (da Mãe Pátria) integrado na comunicação comunista que baptizou a contra-ofensiva contra a ocupação nazi como “grande guerra patriótica”, a religiosidade foi vista como modo potente e acelerador da fé russo-patriótica.

Mesmo o terror mais brutal tem a capacidade de se sofisticar. Porque nem sempre a prática da repressão e de crimes é apanágio exclusivo dos estúpidos. Quando o império soviético se estendeu pela Europa central e do leste, já a prática comunista tinha incorporado experiências longas e trabalhadas de lidar com a religião através da repressão pela força bruta mas também de, com enormes vantagens, a incorporar em desígnios de Estado. As polícias políticas locais (nacionais) - espinhas dorsais de Estados vitalmente policiais -, coordenadas pela Mãe KGB, afastados e eliminados os elementos mais recalcitrantes das estruturas religiosas, valorizaram depois a técnica da chantagem e da infiltração. Os próceres comunistas perceberam que melhor que igrejas reprimidas e resistentes, seria terem igrejas controladas pela infiltração que, no imediato, proporcionava a docilidade irmã da corrupção, da dependência e do medo. Assim foi feito por toda a parte, com a igreja ortodoxa na Rússia e na Bulgária, as igrejas protestantes na RDA, a igreja católica na Polónia e na Hungria, etc e etc.

Também em Cuba, uma subsistência da aberração do poder comunista absoluto, a relação do castrismo com a religião tem conhecido fases diferentes. Na fase primeira do período revolucionário, os activistas limpavam os altares das igrejas católicas da tralha litúrgica para colocar no seu lugar o retrato de Fidel. Com o desmoronar do império soviético, Fidel percebeu que havia que dar a mão, usando isso para o compromisso e a legitimação do regime, ao Vaticano e à sua sucursal cubana. A visita solene do Papa a Cuba foi o acto celebrante de uma nova “detente” entre o regime e a igreja católica. A partir daí, os cultos restabeleceram-se na plenitude, a igreja integrou-se dentro do regime e assimilou alguma da sua retórica nacionalista e anti-imperialista. E é sintomático que a ditadura cubana, aparentando uma imunidade de aço face aos apelos democratizantes e humanizantes vindos de quase todo o mundo e das mais variadas instituições, particularmente quanto aos direitos humanos e à situação dos presos políticos, se disponha a abrir mão das condições mais brutais de aprisionamento dos encarcerados por delitos de opinião e de consciência, exclusivamente atendendo à intercepção da igreja católica cubana. Está anunciado o fim de uma das práticas mais cruéis para com os presos políticos cubanos – serem colocados em prisões distantes das suas províncias para dificultar ao máximo o contacto e o apoio das suas famílias. E fala-se, com insistência, que os presos sofrendo de doenças graves possam vir a ser transferidos para hospitais sob prisão. São duas medidas mínimas numa escala de exigência humanitária. Mas sempre antes negadas porque para “mercenários” e “gusanos”, portanto “não pessoas”, o tratamento prisional humano era um luxo que desarmava o regime face aos perigos que o ameaçam. A pedido de um séquito de cardeal e bispos, o apelo ganha outro sentido, atendível porque proporciona uma troca de favores entre instituições que se querem cúmplices, talvez irmãs na gestão do negócio dos “ópios dos povos”.

(publicado também aqui)

2 comentários:

Fernando disse...

A sua análise é extremamente completa no que compete ao comunismo. Poderia ter ido mais longe e escrito um pouco sobre a estrondosa ascensão do catolicismo na China, podia ter falado de monges tibetanos maoístas, o Estado judaico de Israel e podia ter acabado o discurso em ateus , passando por uma referência ao papel da Igreja Católica ao serviço do fascismo na Guerra Civil de Espanha.

A continuidade da sociedade, quer seja burguesa, quer seja socialista mais ou menos aberrante encontrou na fé uma fonte de controlo das massas (o marxismo-leninismo foi talvez a mais fervilhante religião) que, felizmente, tende a desaparecer.

Resta a deificação do dinheiro, o ópio do povo que parece não se conseguir combater de nenhum modo.

João Tunes disse...

Vc, Fernando, queria um tratado em vários tomos sob a forma de e-book no lugar de um post. E este, para post, até se esticou demais no comprimento. Vamos por partes, e alguns dos outros aspectos que referiu já os tratei em muitos outros posts, sem universalizar como técnica de assobiar para o lado. É que os prisioneiros políticos cubanos são gente de carne e osso. E há que sacá-los dos cárceres, ultrapassando os acordos cínicos de conveniência firmados entre negociadores de "ópios".