17/06/10

As imagens e as coisas


Não foi casual a escolha da imagem do descapotável que percorre as ruas destruídas de Beirute, transportando no seu interior um grupo de jovens aparentemente dedicados a captar fotos para colocar numa rede social. A fotografia de Spencer Platt venceu o world press photo e foi apresentada pelos meios de comunicação internacional como o espelho das várias sociedades existentes no interior do Líbano, cada uma delas lidando à sua maneira com a invasão israelita. A imagem de um Líbano moderno e cosmopolita, sedento de vida e estranho à mobilização político-religiosa xiita, parecia materializar-se na fotografia e encaixar como uma luva na narrativa que nos chegava daquele lado do mediterrâneo, compondo a moldura perfeita para a interpretação que o júri do prémio tinha do conflito - a foto, diziam, exprimia o Líbano em todas as suas contradições.
Simplesmente, as contradições eram muito maiores do que as que cabiam naquelas cabeças. O espaço e o tempo que aquela luz fixou resistiam a uma representação tão superficial de Beirute. E a história das pessoas que ali aparecem, habitantes daquele «pobre bairro xiita da parte oriental da cidade destruído pela aviação israelita», começou a ganhar outra densidade, comprometendo o cliché que vários jornalistas vinham desenvolvendo sobre o país. A fotografia foi captada no primeiro dia do cessar-fogo, quando os e as habitantes daquele bairro que trabalhavam no centro puderam finalmente regressar às suas casas. O carro foi emprestado por um amigo e a cobertura foi recolhida porque estava calor, naquele dia 15 de Agosto de 2006. Uma das jovens teve que se esforçar por explicar "isto é o Líbano e nós vestimos-nos sempre assim", num eco remoto do livro de Edward Saïd, Orientalismo, apenas porque os comentadores encarregues de descortinar o «verdadeiro significado» daquela imagem insistiram bastante no contraste entre a sua aparência e o suposto conservadorismo daquele bairro.
Tudo isto apenas para dizer que a existência de uma mediação, de alguém que inscreve determinada imagem num determinado contexto e que ocupa um lugar privilegiado para lhe conferir um sentido, não resolve todos os problemas. As palavras são importantes, mas não nos colocam a salvo de todos os equívocos, porque elas próprias geram os seus equívocos. O fio que nos guia através do labirinto é muito mais tortuoso.

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