06/07/10

Com dedicatória plena de humildade e contrição, e alguma vergonha, para o camarada e amigo Miguel Serras Pereira

Frases soltas do escritor húngaro Peter Esterházy (Budapeste, 1950):

“Numa ditadura toda a gente procura um caminho de evasão. Quando chega a liberdade não se sabe que fazer com ela, estamos preparados para sobreviver não para viver. O comunismo terminou com as incertezas, isso é asfixiante mas tranquilizador.”

“ O futebol é um ópio, sim. Até que termine o Mundial não falaremos da crise, mas sim se Xavi lidou bem com a bola. Quando derrotaram a revolução de 56 produziu-se uma depressão na Hungria, mas para muitos saber que Puskas jogava no Real Madrid era um sinal de que havia que continuar a lutar-se. Foi um auto-engano, é claro, mas assim funcionam os mitos.”

“Os que dizem mal do futebol têm razão, a sua degradação é um facto, mas eu não vejo os aspectos repugnantes que o rodeiam, só o que acontece dentro de campo, e o jogo de futebol pode ser tão refinado que satisfaça as exigências do intelectual mais pedante. Não me interessa a violência, a corrupção… Poderíamos dizer que fracassei como intelectual: gosto de futebol.”

2 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Muiro caro camarada João,
eu poderia, agradecendo-te, responder que estou como autor ou como tu: humilde e contrito, e até envergonhado (só quem não tem cara não sabe o que isso é), por gostar de futebol.
Mas talvez seja melhor tentar, de facto, outras vias: deixando de parte a vexata quaestio do papel do "intelectual" (visto como indivíduo à la Plekhanov ou como partido e colectivo à la Gramsci), e pensando antes na figura do cidadão predisposto a investir a conquista e extensão das suas responsabilidades democráticas - logo governantes -, eu diria que ao cidadão compete pensar e assumir e transformar os dois pólos que organizam a tensão entre o futebol mítico e meio de satisfação por procuração e o futebol exercício lúdico ou encenação lúdica e ludicamente fruído. A pergunta que as citações que tão perspicazmente escolheste nos deixam é imediata e está implícita em todo o teu post: não haverá no futebol e no gosto dele um elemento distintivo, peculiar, um quid, que os tornam precisamente "futebol" e "gosto do futebol", que excede a sua utilização, integração, ou recuperação funcional pela ordem estabelecida? Dizer que a verdade do futebol é o que uma sociedade injusta e antidemocrática tenta fazer dele é reconhecer a essa sociedade e ao seu regime de poder uma força exorbitante e sem resto, de tal ordem que nos tornaria impossível agir politicamente em vista da sua transformação. E o que digo aqui do futebol poderia dizer-se das artes, da cozinha popular, da experiência erótica e amorosa, da assunção por cada um da sua voz e do seu corpo. Ou da filosofia e da ciência. De tudo o que são os nossos trabalhos e os nossos dias. Falemos, pois, de futebol sem contrição nem vergonha, pois não há de que pedirmos desculpa por gostarmos da bola, se com isso não justificarmos ou desculparmos a servidão política.

Abraço solidário

miguel sp

João Tunes disse...

Assim nos entendemos, Miguel.