05/07/10

Jogos Florais

Medram em Portugal os concursos literários. Não há autarquia com um vulto local para polir que não se lembre de lançar a sua competição. Prémios de poesia, de ensaio, de ficção, de melhor receita de cozido. Isto em si nada de mal tem. O pior é quando nos lembramos de ir ver/ler quem é que afinal colhe os louros nestas tão descentralizadas e meritórias iniciativas.
Tomemos por exemplo o Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, promovido pela câmara municipal de Santiago do Cacém. E partamos à descoberta de uma das últimas obras a sofrer a sua distinção: A Sul da Escrita, de Dora Nunes Gago.
Declaradamente uma espécie de «panteão espiritual» de escritores nascidos entre o Alentejo e o Algarve, esta recolha de contos parece apostada em deixar explícitas as suas balizas geográficas, apelando a imagens tão potentes como inovadoras: o «canto trinado das cigarras», o «odor amarelecido do feno aquecido pelo sol quente», o «cheiro forte da terra molhada e criadora». Esta pulsão telúrica, mesmo ao gosto dos centos de júris que pululam por essas províncias literatas, promete coisa boa. Lamentavelmente, só posso contar com excertos encontrados na net, pois não levo a maluquice ao ponto de gastar dinheiro nestas coisas.
A obra arranca com Os últimos dias de Ibn Amar. Na sua cela, o poeta explica-nos que «Corre o ano de 1086», o que não deixa de demonstrar um peculiar apreço pelo calendário juliano. Minudências. O melhor é mesmo a riqueza lexical, a originalidade das imagens, a força das metáforas. Ele há para todos os gostos: «os maduros raios de sol oferecidos ainda vagamente pelo crepúsculo», «o seu calor doce na minha pele», o tempo que é «semelhante ao corpo mole e lânguido de uma serpente», «o corcel de vento que montei em tantas batalhas». Tudo redimido, mesmo a tempo, pela obra do poeta, «depurada de toda a vileza e traição».
Se acham que o pobre Ammar sofreu tratos de polé, olhem que António Aleixo se vê «a caminho do hospital, quase deitado no chão da carroça do seu vizinho, para ver se adormece a dor e a agonia.» Não se alarmem, almas sensíveis, que «quando deixar a vida, é nessas quadras soltas que a sua alma continuará viva, permanecerá de geração em geração, a ensinar a profunda e sincera filosofia da vida». E ainda há um outro desgraçado que, mesmo prestes a fenecer, descobre que as «cores pujantes da natureza se convertiam em poesia». Isto dá arrepios. Dos maus.
Sendo que o referido prémio é bienal, será que isto é mesmo do melhor que em matéria de ficção curta se produziu em Portugal, durante 24 meses? Pondo a questão de forma menos caridosa: mas a que mentes lembrará premiar estas redacções liceais? Parece-me algo obsceno que se gaste bom dinheiro (o tal prémio atribui 5.000€ ao vencedor) na promoção de má literatura infanto-juvenil. Ficam iludidos os vencedores, mais pobres os cofres municipais e à toa os leitores, que são levados a comprar gato (prosinhas sem jeito) por lebre (um prémio tende a ser visto como selo de garantia).
Palpita-me que se a palavra “provincianismo” tiver um significado mesmo negativo é para usar a propósito de coisas assim.

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