Neste debate, parece-me que não se deveria insistir em argumentar com a “realidade” e a necessidade de uma política realista; transformadora mas realista ou, dir-se-á, no que parece uma evidência (mas também pode ser tido como um paradoxo) transformadora porque realista. O argumento de que só o realismo tem o poder de transformar é um argumento evidente mas, mesmo se não é tão evidente, é certo que uma transformação realista não deixa de ser mais do mesmo. Há aqui um negócio entre permanência e ruptura que não é fácil de resolver.
Como diria o Tom Zé,
o procedimento revolucionário correcto é o de confundir para esclarecer. E isto não quer dizer que quem pretende confundir esteja apenas a recorrer a uma prática astuciosa de convencimento do outro, do tipo fazer-se difícil, mas que não é por não sabermos para onde vamos que não iniciaremos a caminhada. E este parece-me ser o problema de alguns argumentos. Só admitem como legítima a vontade de partir àqueles que já sabem qual é o seu destino. Ora, isto, a mim, parece-me que é não compreender que as viagens com destino marcado à partida são meras introspecções. Ir para voltar ao mesmo lugar, quando nós precisamos de sair para fora disto.
Ou seja. Eu também acho, como o João Rodrigues, e, creio, como o Nuno Ramos de Almeida, que a oposição entre reforma e revolução necessita de ser revista. Mas isto não significa que devamos abdicar dessa oposição. Haveria, antes, que procurar uma relação entre reforma e revolução, entre meios e fins, em que não houvesse contradição (contradição que implicaria pensar numa distância incontaminável entre reforma e revolução, como se fossem mundos diferentes) mas em que não se subordinassem os fins aos meios. (Existem nas ideias políticas e nos inúmeros debates vários pontos de apoio a esta dupla preocupação; a relação espiral entre fins e meios tal como balizada por Michael Hardt no seu prefácio a Thomas Jefferson é um exemplo próximo do que disse). Nem a contradição entre fins e meios nem a sua indistinção, mas sim uma tensão entre ambos os termos. Porque a possível subordinação dos fins aos meios é justamente a negação da política enquanto acto de determinação do que queremos, ou seja, a subordinação dos fins aos meios é o caminho para o puro administrativismo. E contra esta subordinação têm alertado autores como Zizek, caindo por essa via, muita vezes, no louvor (insuportável) da oposição entre fins e meios, para mais com tiradas estalinistas que devem ser liminarmente criticadas; mas contra a essa subordinação têm alertado também autores como Rancière, com a sua distinção entre polícia e política.
É claro que, no meio destas coisas todas, existem inúmeros debates em torno do que seja a realidade e há gostos para tudo. Se a realidade é o que existe, então uma política revolucionária só pode ser anti-realista. Se a realidade é o que existe, mas também o que nega aquilo que existe, (isto é, se o capitalismo é tão real e precário como o anticapitalismo, por exemplo) então uma política revolucionária pode ser negativista e realista. O modo como entendemos a questão, sendo verdade que é ele próprio responsável pelo que a questão é ou não é, pode aqui gerar equívocos no debate e equívocos que importa superar, digo eu, mais não seja a caminho de novos modos de entender - e por isso constituir - a questão.
Afirmar a necessidade de ancorar um projecto transformador na realidade é que não esclarece nada nem divide águas nenhumas: do que eu percebo, mas há por aí quem perceba mais do que isto do que eu, nem o próprio Badiou rejeitaria essa necessidade, apenas dirá (suponho) que a realidade nova não é apenas ou de todo fruto da realidade anterior, mas que ela própria determina condições para a sua legibilidade.
No caso dos autonomistas, a questão é colocada de modo diverso, e sem dúvida que o projecto político de tipos como Negri e Hardt, ou a um outro nível Virno e Holloway, ancora a proposta política na realidade económica (no quadro de uma tradição marxista, mas num sentido em que económico se aproxima da biopolítica de Foucault) mas a realidade económica para Negri e Hardt não é o capitalismo e sim a luta entre o capitalista e o trabalhador e entre o biopoder e a biopolítica (ou seja, a realidade não é unívoca), de tal modo que a ideia seria partir do que existe, contra o que existe, além do que existe (tese, antítese, êxodo – e não síntese).
Aliás, quando o João diz que um militante como Negri interessa-se apenas pela grande teoria e não pela realidade, para além de todos os equívocos que os termos que o João utiliza permitem, ignora o facto de propostas como o rendimento garantido estarem ancoradas em estudos técnicos de índole económica que conviria não ignorar. É ir ler os trabalhos de Carlo Vercellone ou de Jean-Marie Monnier, que aliás estiveram em Lisboa há não muito tempo, no Congresso Marx. A questão, diga-se, é novamente o que se entende por aplicação empírica ou exequibilidade política, ou seja, de que nível de realidade estamos a falar. Podemos discutir, por exemplo, se há ou não orçamento de Estado para implementar tal coisa como um rendimento garantido (reproduzindo a lógica de quem combate os investimentos estatais na economia). Mas podemos também discutir, além da questão orçamental, que dinâmica económica é que tal medida pode gerar ou não. Isto é, podemos fazer uma proposta conforme à realidade ou podemos fazer uma proposta que determina a realidade, não com base nos sonhos irreais de alguém, mas com base na materialidade desses desejos. A ideia de que o consumo possa determinar a produção é assim tão pouco realista? Ou não tem eco naquilo a que, para todos os efeitos, não raras vezes se chama keynesianismo? A tudo isto poderíamos chamar “fazer” política (imagem que remete para universos em regra díspares, como o da economia e o da política, mas que o faz tal outras imagens, tais como capital humano, biopolítica, economia moral, etc.).
02/09/10
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2 comentários:
Bom post, combativo camarada Zé Neves.
As minhas referências teóricas, digamos assim, não seriam exactamente as mesmas, mas não andaria longe de concluir por sugestões e propostas solidarizáveis com as tuas.
Para mim, há um acordo escamoteado pelas duas partes no debate entre o Nuno Ramos de Almeida e o José Rodrigues. Esse acordo faz-se em torno da questão do socialismo e da democracia - ou da democracia e do socialismo. É um acordo que sob a forma de questão, eu formularia assim (adaptando certas coisas que já disse na caixa de comentários de um post do NRA):
Como pode haver democracia que não seja "social", que não socialize democraticamente os mundos do trabalho e da economia? Pode haver democracia, igual poder dos cidadãos, se persistir desigualdade na economia (política) que uns governarão explorando outros e em seu detrimento? Sem igualização do poder de compra no mercado (segundo a lógica de um voto por cabeça)? Com a suspensão das liberdades civis e da igualdade de direitos portas adentro das empresas nacionalizadas ou não? Com uma organização como a vigente das forças armadas e de segurança “pública”?
Neste sentido, é claro que não há igual liberdade sem ruptura com o capitalismo. Mas dizê-lo, no entanto, é ter presente que pode haver rupturas decisivas através de processos formalmente reformistas e que convulsões extremamente violentas podem ter resultados mínimos ou até regressivos. Seja como for, dizendo isto, não estou a pensar numa evolução simplesmente gradual e unilinear. As rupturas parecem-me momentos inevitáveis – embora não assumam necessariamente forma “militar” ou de "guerra civil" – de qualquer processo de democratização instituinte.
Por fim, quanto à divisa que, segundo o NRA, seria comum à democracia e ao socialismo - liberdade, igualdade, fraternidade - não sei se politicamente a liberdade e igualdade não são suficientes. Quer isto dizer que tenho algumas dúvidas, não certezas, quanto à pertinência da fraternidade (a adequação do conceito). Solidariedade – se precisarmos de manter o esquema triádico – parece-me menos patético, menos fusional, mas mais consistente e laico (anti-mítico).
Abrç para ti (e também para o JR e o NRA, claro está)
msp
Bem , antes de se meter ao caminho , seja qual for o destino , convinha ao viajante fazer uma avaliação meticulosa e realista das suas aptidões para andar...e nunca , mas nunca , achar que tem asas em lugar de pés.
Muitas viagens o homem começou , coitado ,de caminho aos Reinos , e lá foi ficando por terrenos pantanosos e lugares sombrios , por causa da mania de nos sobrevalorizarmos.
Nada como o autoconhecimento , como diz Habermas , para evitarmos desastres.
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