O que é mais assustador (digamos “interessante”, se ficar melhor nos vossos ouvidos) nesta sentença, a do caso Casa Pia, é a velocidade estonteante com que se iniciou a recomposição da ordem das hierarquias, as referências sociais pautadas pela notoriedade e o sistema de expressão de ressentimentos políticos. Desde sexta-feira, ligar a televisão em qualquer canal arrasta a alta probabilidade de ver e ouvir Carlos Cruz, essa nova versão de Big Brother em papel de vítima e como se fosse um novo tipo de “emplastro” plantado à frente de cada câmara de televisão com sinalética de que está ligada a emissão. Nunca um arguido, muito menos um condenado, teve antes a televisão aos seus pés. Carlos Cruz parece que a segura por uma trela, domesticando-a na passagem (ou imposição, tendo em conta a insistência) da mensagem martelada e repetida da sua qualidade de vítima injustiçada. O que faz com insistência e profissionalismo, assumindo o escândalo de uma centralidade sustentada até à náusea. Assim, se este caso foi inicialmente projectado pelo protagonismo mediático de Felícia Cabrita, um género de “jornalista-justiceira” do lado das vítimas, a mediatização do caso foi agora quase integralmente colonizada por Carlos Cruz, dando boleia aos outros condenados de estatuto social médio-alto (deixando Silvino entregue à mediocridade obscura da sua condição), mantendo uma pressão constante e escandalosa sobre a Justiça, repetindo as suas sempre mesmíssimas mensagens de vitimização. E esta transferência de banda mediática e de afectos (explícitos ou consentidos por omissão), do lado das vítimas para o lado dos condenados, saltando do protagonismo de uma jornalista poderosa no papel envolvente de “mãe sensual” (o que ligava bem com as vítimas-crianças) para o do mais profissional dos apresentadores de televisão (em que a aparência, o sorriso e o porte contrariam a imagem associável a um homossexual pedófilo e predador, dissonância na percepção do público que Cruz reforça magistralmente através da constante alusão à "sua filhota" com oito anos), mesmo arrostando contra pesadas e não previstas condenações, é um sinal do peso da capacidade de recomposição dos estereótipos em que assenta o andor da cultura dominante na sociedade portuguesa, ao nível da sustentação das suas fragilidades e insuficiências, mas também constando da ementa que formata o espectáculo da contestação pelo murmúrio, seiva do que domina no contraditório político em Portugal.
Se a Justiça recuperou alguma credibilidade perante a opinião pública através das sentenças que proferiu na sexta-feira (não só ao não isolar Carlos Silvino como condenado mas também pelas punições aplicadas, aspectos com que poucos contavam), desfazendo os estereótipos de ressentimento que já tinham bala na câmara (género “os graúdos escapam sempre, quem se lixa é o mexilhão”), a recomposição da onda do sentimento anti-Justiça foi imediatamente accionada: os aspectos processuais (demora da distribuição do acórdão, o critério da escolha das partes da sentença que foram lidas, remissão de um advogado para o protesto escrito e perda do uso da palavra após este injuriar grosseiramente os juízes), a dramatização com ressonâncias no tipo de regime invocando os fantasmas do fascismo e dos tribunais plenários, a sobrevalorização do tempo decorrido até ser proferida a sentença, a relativização do significado de ter havido condenações pelos “ausentes” no banco dos réus, o fantasma do risco futuro de prescrição durante a fase dos recursos, etc.
Dizer mal da nossa Justiça já tinha entrado na galeria das “conquistas” do apodrecimento do regime e era alimento da nossa tristeza, do nosso pessimismo e do nosso rancor. Num povo sem projecto nem esperança, governado por um optimista de cordel e presidido por um mestre-escola paroquiano, pobre e desconsolado povo, a quem até o futebol estragaram, não se tiram os motivos de ressentimentos sem que se morda a mão autora do roubo. No mínimo, para que não se altere a rotina dos remoques e o menú das queixas. Ou seja, o que nos resta para manter antes que se mude.
(publicado também aqui)
07/09/10
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7 comentários:
Ontem, enquanto via parte do "Prós e contras" pensava nisso. E na forma como Carlos Cruz e Marinho Pinto usavam a linguagem televisiva para fragilizar os oponentes. No caso de CC, tal foi muito evidente quando, a partir do testemunho do jovem abusado tentou descredibilizar as vítimas que manifestaram dificuldade em reconhecer os locais dos abusos. Ou seja, o jovem tinha dito algo como "o momento do abuso fica para sempre na memória do abusado" e CC, "concordando", referia "como é possível então não se lembrarem das salas, da roupa dos abusadores...".
Uma criança abusada recorda, creio eu, a dor. O desamparo. Não a decoração ou o guarda-roupa. E essa colagem que CC fez foi das mais chocantes na desonestidade. O Psiquiatra que acompanha as vítimas tentou desmontar esse estrategema, mas não sei se a eficácia comunicacional do ex-apresentador não terá diluído esses argumentos.
Porque, CC tem "a palavra". Em múltiplos sentidos.
As vítimas não. Mesmo que lhes peçam que falem.
João Tunes, não tenho televisão (já basta o que basta). Mas quero dar-lhe os parabéns por este texto. Quando a maioria parece ter ensandecido, alguém que mantenha a lucidez. Um abraço
Leonor,
Concordo, a lide de CC para com as vítimas é das manifestações mais sacanas da diferenciação pelos status.
Ana Cristina Leonardo,
A vida só vai confirmando como é justa a linha que segue de não ter televisão.
Muito bem.
Não conheço o caso, nem as provas. Apenas vi as reacções reflectidas na imprensa e nos blogues.
Chocam-me.
Choca-me a leviandade com que se aceitam criticas imediatas e contundentes a uma decisão de justiça numa altura em que nem o texto da sentença se conhece.
Isto so acontece porque ha quem pense que, em Portugal, compensa sempre dizer mal da justiça, quanto mais não seja para retirar autoridade e eficacia às suas decisões.
Que esse tipo de reacções venham do "populismo" de uma opinião (pretensamente) pouco esclarecida, ainda va. Agora quando vejo, não so o advogado de um arguido, mas o proprio bastonario, assumir esse discurso populista, fico bastante assustado.
A justiça somos nos. Isto implica que tenhamos confiança no nosso aparelho judiciario. Este aparelho existe para proteger os mais fracos, convém não esquecer isso. Os outros têm meios para pagar advogados, ou para se defenderem junto da opinião publica...
Se o bastonario não acredita no sistema, o que parece poder deduzir-se da forma leviana como comenta o caso, então porque é que advoga ? So para cobrar honorarios ?
"Chocado" é pouco para dizer o que sinto ao ver a facilidade com que jornalistas, e mesmo juristas, acham natural sobreporem a sua apreciação à do tribunal, ainda que não tenham visto as provas nem acompanhado o processo...
Compreendo perfeitamente que se possa (e mesmo por vezes que se deva) criticar decisões de justiça. Sou advogado. E' o que passo a vida a fazer, nomeadamente quando recorro duma sentença.
Agora ha que fazê-lo de forma séria e responsavel.
Lamento mas não é o que tenho visto.
E finalmente parece-me util chamar a atenção para o facto de essas reacções descabidas serem a pior forma possivel de defesa, pelo menos num sistema que funciona (e, até agora, não vi nas criticas que li nenhuma que me levasse a acreditar que o sistema não funciona).
Excelente artigo, quando tantos ensaiam a «dúvida metódica» face à justiça e formam a sua opinião no site de Carlos Cruz.
João Tunes:
Só hoje li o seu post. Quero cumprimentá-lo e agradecer-lhe a lucidez. Gostaria que houvesse um mínimo de divulgação sistemática deste tipo de reflexões.
"Não acredito nestas denúncias faseadas"
ADELINO GRANJA, ex-casapiano abusado, advogado
Tal & Qual - 05.09.2003
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