03/09/10

Solidariedades

Houve tempos em que a China representava, para o PCP, a bête noire no campo do socialismo realmente existente. Entretanto, o mundo mudou, a União Soviética implodiu (ou foi dissolvida por acção de um bando de traidores) e a China abriu-se em força ao mercado. Órfão de mãe, o PCP adoptou o país oriental como um dos principais eixos de construção da "resistência à nova ordem imperialista". Agora, e ao mesmo tempo que usa o discurso dos "direitos humanos" e tem nas suas fileiras muitos homens e mulheres que defendem quotidianamente os direitos dos trabalhadores e a melhoria das suas condições de vida, o partido não deixa de fazer com frequência a defesa do exemplo chinês.

No último Avante!, um artigo de opinião assinado por Luís Carapinha mostra como a resolução do paradoxo se faz pelo silenciamento de um dos lados. O texto tece loas ao desenvolvimento económico da China e ao modo como ela tem afrontado o poderio americano e as suas ambições imperialistas. É certo que refere também as “contradições e desafios” deste país “que se encontra ainda na fase primária da construção socialista”, mas fá-lo recorrendo ao mesmo refrão que Francisco Lopes usou para qualificar recentemente a Coreia do Norte: existem diferenças mas respeita-se o direito de cada povo seguir o seu rumo.

Pergunta-se: não deveria um militante comunista olhar para as concretas condições de vida dos trabalhadores, denunciando a exploração independentemente da definição que um regime usa para se auto-caracterizar? Não deveria um militante comunista rejeitar a manutenção da pena de morte, dos EUA à China? Não deveria um militante comunista criticar os entraves à liberdade – sindical, religiosa, de informação, de expressão? Não deveria um militante comunista olhar menos para o PIB e mais para a distribuição da riqueza? Não deveria um militante comunista atender às armadilhas da tese “inimigo do meu inimigo, meu amigo é”?

Publicado também no Aparelho de Estado

11 comentários:

Diogo disse...

Absolutamente de acordo.

Luis Rainha disse...

Idem.

Miguel Serras Pereira disse...

Maré alta para este post do camarada Miguel Cardina

Um abraço

msp

Anónimo disse...

E mais um aspecto, este importantíssimo: numa sociedade socialista, o nível de vida imediato das massas pode ser sacrificado por livre acordo, na participação democrática da estratégia a seguir. Este facto é importante quando chega a hora de decidir quantos recursos devem ser atribuídos à produção de bens de consumo e bens de produção; é aceitável sacrificar um consumo a curto prazo para colher frutos mais adiante.

(É óbvio que sou eu a divagar, na China o mercado penetrou tão profundamente que a apropriação do subproduto é privada... só chamo a atenção para este facto porque em condições de democracia socialista, esse argumento é inválido.)

Anónimo disse...

queria dizer "sobreproduto" e não "subproduto".

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Anónimo:
a sua chamada de atenção fez-me pensar num ponto em que Castoriadis insistia. Na versão resumida em que o formula numa entrevista, publicada em Uma Sociedade à Deriva, Lisboa, 90 graus, 2006, eis esse ponto que completa a sua observação e que é, entre outras coisas, indispensável considerar quando pensamos na "questão ambiental" e do "desenvolvimento":

"Numa sociedade autónoma, é necessário que exista um verdadeiro mercado (…): cabe aos consumidores decidirem que bens específicos devem ser produzidos para consumo, e isso por meio desse voto quotidiano que são as suas compras, valendo cada voto o mesmo que o de cada um dos outros. Hoje, o voto de um grande financeiro (…) vale um milhão de vezes mais do que o voto do americano médio (…) Mas são necessárias [também] decisões de ordem geral sobre, pelo meno, dois pontos: a distribuição do produto (…) ou do rendimento (…) entre conssumo e investimento, e a parte respectiva, no consumo global, do consumo privado e do consumo público (…) Sobre estes pontos será necessária uma decisão colectiva. (…) Tem de poder dizer-se qualquer coisa como: se vocês decidirem que é necessário tal nível de investimento, eis os níveis de consumo aproximativos com que poderão contar ao longo dos próximos anos. Se querem investir mais, terão de consumir menos. Mas talvez possam consumir mais daqui a cinco anos. Se querem mais educação, hevará (…) um preço a pagar. Terão de decidir onde querem ir buscar os recursos (…) afectados à educação. (…) por meio de uma limitação do consumo privado? Ou do investimento, quer dizer: do crescimento futuro na área dos instrumentos de produção? Querem um certo aumento das capacidades de produção ou vão contentar-se com a renovação do capital existente? Todas estas alternativas deverão ser postas claramente e não podem ser resolvidas em termos razoáveis através do simples funcionamento0 das forças do mercado".

Saudações republicanas

msp

Justiniano disse...

Sim caríssimo MSP, o caro anónimo colocou uma questão muito pertinente! A escassez de recursos obriga, sempre, à profunda ponderação. Por vezes, será mesmo necessário trocar fome por debulhadoras mecanicas!! E neste sentido o esclarecimento será essencial, assim como a justiça no sacrifício!!

Anónimo disse...

Caro MSP:

Esse "verdadeiro mercado" a que Castoriades se refere pressupõe a inexistência do Estado? Preconiza a colectivização da esfera de produção? Que autonomia têm as empresas na atribuição de salários aos seus funcionários, que parte do sobreproduto cedem para novos investimentos, como se torna possível a existência de novas unidades de produção para implementar novas descobertas, etc? Existem impostos? Que banca existe?

E por fim: é um mercado que existe a priori da produção, isto é, vota-se na gama de produtos que se quer produzir? Nesse caso será erróneo chamar-lhe "mercado", seria mais correcto algo tipo "planeamento participativo"...

Peço desculpa por nos afastar do tema. Sei que o ponto que mencionei era pertinente quanto à análise do Miguel Cardina, que também parece ter ignorado que a nomenklatura previu o fim da URSS e se apoderou, na sua recta final, de inúmeras unidades de produção, tornando-se na nova burguesia (a Rússia tem o seu coeficiente de gini entre o Senegal e o Turquemenistão!). Nisso o PCP não está nada errado; aliás pressinto da parte de muitos sectores de esquerda uma sede tal em se desmarcar da experiência do socialismo real (é ver o Cassete Fazenda a tornar os ideias de 1917 obsoletos!) que dá a ideia de que a experiência do passado, sem dúvida útil, deve ser deitada no caixote do lixo. Este mediatismo por parte de alguns arrivistas do faz-me olhá-lo com desconfiança e de certo modo como uma força de nociva ao ideal socialista.

A primeira parte deste meu extenso comentário pretendia motivar o MSP a responder ao João Rodrigues, focando-se não na estratégia da luta para ultrapassar o capitalismo, mas para deixar umas linhas de orientação sobre o que pensa ser uma forma avançada de socialismo.

Miguel Cardina disse...

Caro Anónimo:

Claro que "o nível de vida imediato das massas pode ser sacrificado por livre acordo". Mas no texto não falei de "nível de vida". Foquei, isso sim, as condições de trabalho e a consequente exploração da mais-valia, que não são exactamente a mesma coisa. E também tenho alguma desconfiança da aplicação da noção de "livre acordo" às dinâmicas actuais na sociedade chinesa. A não ser que se entenda que o nível de vida imediato das massas possa ser sacrificado em nome da suspensão da liberdade...

E assinar os textos, não era porreiro?

josé manuel faria disse...

Há 16 anos já o PCP olhava para a China com bom olhos.

O regime Chinês tinha de ser assim porque o país era imenso, impensável por isso uma democracia política a caminho do socialismo.

Hoje, a China é um farol do socialismo. Impressionante.

No entanto o PCP é imprescindível à unidade das esquerdas alternativas ao PS.

Há um dilema.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Anónimo,
efectivamente, o texto refere-se ao plano - e cita-o explicitamente noutras passagens que não citei. Mas o plano, ou planificação democrática, não é incompatível com um mercado de bens de consumo, como aquele a que se alude. Creio que concordará comigo.
As questões que o seu comentário levanta são demasiado numerosas e complexas.
Em tese geral, creio que não devemos antecipar demasiado a construção mental do futuro, porque a democratização/socialização/publicização da actividade económica e produtiva só poderá resultar de lutas cuja ordem de sucessão, modos de coordenação, etc. não podem ser previstos. No entanto, sim, a esfera económica deverá ser explicitamente repolitizada e democraticamente governada. O que implica também uma igualização decidida dos rendimentos. Apresento algumas sugestões a esse respeito em "Poder Político, Economia e Democracia", em Trajectos, nº15, Outono de 2009, Lisboa, Fim de Século, 2009, e num artigo sobre o rendimento de cidadania, publicado no número 0/1 da revista Abril em Maio (Lisboa, Dezembro de 1999).
Saudações cordiais

msp