15/11/10

Autor, criminoso, marca, proprietário.

Concedo o erro. Pensei que a Fernanda Câncio e o Maradona quisessem celebrar o seu amor com recurso ao meu carro através da utilização do interior do veículo e não recorrendo à possibilidade de grafitarem o carro com inscrições do tipo I love you ou We love we e mais não sei o quê. Peço desculpa, era de poesia que estavam a falar e eu portei-me como um carroceiro. Adiante, ao que interessa. O novo argumento do maradona parece ser este: no caso da propriedade intelectual, uma coisa pode ser simultaneamente possuída por mais do que uma pessoa e por isso é mais abusivo que haja uma lei a proteger tal propriedade. Por exemplo, uma música pode ser gravada em vários suportes e ser ouvida ao mesmo tempo por várias pessoas, enquanto que no caso da propriedade física, (para dar outro exemplo: o meu carro ou as casas do maradona e da Fernanda Câncio) as coisas não podem ser reproduzidastão facilmente e por isso deverá haver um direito que proteja a propriedade individual desses objectos. Ora, a mim parece-me o seguinte: a) certo que o direito de propriedade enfrenta maiores dificuldades quando se trata de apropriação intelectual e que a ele não se coloca de modo tão premente o problema da escassez (até pelo contrário); b) mas porque não é susceptível de ser reproduzida, e portanto acedida simultaneamente por muitos, a propriedade física deveria igualmente ser menos protegida pelo direito, de modo a que pudesse ser melhor distribuída politicamente. Por exemplo, o maradona ficava com metade de uma parede da sua casa e o graffiter da zona com outra metade.

O caso dos graffitis é interessante para pensarmos muitas destas coisas e dá pano para mangas. Por exemplo, imagine-se que determinado grafitti em determinado prédio se torna valorizado no mercado artístico. O boneco pertence ao dono do prédio em cujas paredes foi pintado ou ao autor da pintura? Neste contexto, a discussão da autoria do crime torna-se ainda menos linear.

Finalmente, em relação ao caso do uso abusivo do nome maradona. O maradona tuga diz que o meu argumento (dei o “roubo” do nome maradonacomo exemplo de uma apropriação legalmente indevida de algo que é de outrem) não colhe porque existem muitos maradonas no mundo e porque toda a gente sabe que o maradona tuga não é o maradona argentino. Ora, é preciso mais um esforço: é verdade que existem muitos maradonas mas o maradona tuga não é um desses; e não é verdade que toda a gente sabe que um e outro maradona não são o mesmo (até porque a questão não se resumiria a isso). No dia em que o maradona tuga lançar um livro assinado maradona e for processado pela empresa de advogados do maradona argentino, é bom alargar o leque de argumentos. O pseudónimo trata da construção de uma figura de autor a partir do nome de outro autor, nome que, por sinal, é uma marca registada. Ou seja, o caso é mais complicado. Mas nem por isso desaconselho o maradona tuga a deixar de desrespeitar os direitos de autor e de propriedade e afins. Lá estaremos no Camões a manifestermo-nos em sua defesa. O maradona tuga tem tanto direito a usar o nome do maradona como alguém tem direito a usar as paredes do seu prédio para grafitar as ditas como entender.

5 comentários:

Anónimo disse...

Aposto que o Zé Neves vacilou antes de escrever "Por exemplo, imagine-se que determinado grafitti em determinado prédio se torna valorizado no mercado artístico."

Peguemos num exemplo real: o mítico Banksy. Uma das suas obras esteve para ser apagada, o que foi referendado e felizmente a manteve intacta.

Onde quero chegar é: o que é o mercado artístico? Banksy é valorizado no "mercado artístico" quando recusa mercantilizar a sua obra? Deve aceitar-se valor desse mercado ou referendá-lo? São meios mutuamente exclusivos de valorização? Devemos referendar os murais do PCP e vê-los apagados pela maioria?

Anónimo disse...

Por acaso , várias obras do Banksy foram apagadas pela autarquia de Bristol, a maioria delas, antes dele ser valorizado comercialmente. Actualmente, muitos autores de stencil grafitti assinam,no Reino Unido, Banksy para as suas obras não serem apagadas. Diferente é a situação dos autores de grafitti que,como se sabe, expressam a criação de letras (voz) própria para a sua assinatura. Para eles, não fazia sentido assinar com um outro nome.

zé neves disse...

anónimo: o que é mais interessante é ver como o procedimento de identificação que estabelece a autoria criminal produz um mesmo objecto que o procedimento que inventaria a autoria artística. mas já cá volto.

lobotomias disse...

parece que o zé neves anda a "remete(r) para segundo plano a questão do tratamento policial" eh eh

Zé Neves disse...

lobotomias,
não é mal visto, de facto. mas a esta altura do campeonato...