17/11/10

A corrupção ao serviço do "segredo de Estado"

Assim como assim, e embora tenha a minha ideia sobre o assunto, que politicamente não deixa margem para dúvidas, gostaria de ver um jurista comentar a notícia que transcrevo no final deste parágrafo. É evidente que estamos perante uma tentativa de corrupção ao serviço do "segredo de Estado". Mas a eventual desistência de queixa, na sequência do deal proposto pelo governo de Londres, por parte dos lesados, será suficiente para dispensar a instrução de um processo por iniciativa das autoridades judiciais que não podem ignorar a matéria da queixa? E, já agora, que considerandos poderão legitimar a ocultação aos "representantes" e aos próprios cidadãos, dos montantes propostos pelas autoridades britânicas como preço do silêncio dos ex-reclusos?

Londres aceita pagar milhões a ex-presos para proteger segredos de Estado.
É o primeiro passo para cortar com os anos da "guerra ao terrorismo" e da tortura. Na prática, o executivo poupará dinheiro e evitará ver muitos segredos expostos em tribunal.
O Governo disse e repetiu que o pagamento não equivale a uma admissão de culpa. Mas o acordo a que chegou com os ex-detidos de Guantánamo, aceitando pagar muito dinheiro a homens que alegam ter sido torturados com a cumplicidade das autoridades britânicas, não deixará de ser lido como tal.
Os pormenores do acordo são secretos e o ministro da Justiça, Kenneth Clarke, recusou divulgar valores. Clarke passou a tarde a explicar-se no Parlamento mas "é confidencial" foi a resposta que deu mais vezes. Segundo avançara a imprensa, um só preso deverá receber 1,1 milhões de euros para desistir de um processo contra o Governo e os serviços secretos.
Vão receber dinheiro os 16 britânicos ou residentes no Reino Unido que estiveram na prisão de Cuba (um ainda está). Pelo menos seis alegam que Londres foi cúmplice na sua transferência para Guantánamo e que deveria ter prevenido os maus tratos a que foram sujeitos.


Adenda (18.11.2010). O João Viegas teve a generosidade de responder ao pedido que lhe dirigi de comentar juridicamente os principais aspectos do caso. Aqui deixo, pois, juntamente com os calorosos agradecimentos que lhe são devidos, as suas observações, que respondem a muitas das dúvidas que eu levantava e corrigem a minha formulação do problema jurídico. Sublinho, no entanto, que todo o comentário do João Viegas não só não invalida como tende a reforçar a necessidade de um seu juízo político. (Clicar sobre Ler mais para aceder ao comentário do JV.)
Caro Miguel Serras Pereira,


A noticia é muito interessante e, ou muito me engano, ou vamos ouvir ainda muito mais sobre o assunto. Noto o seu apelo aos « juristas », mas penso que apenas um jurista com experiência do sistema britânico poderá realmente ajudar-nos a ver claro neste assunto. Na minha qualidade de modesto jurista continental, deixo apenas alguns reparos e dúvidas que me ocorrem quando leio a noticia :


1/ Confrontando com outras informações a que tenho acesso na Internet, julgo compreender que a transacção é só sobre a acção civil (pedido de indemnização), não sobre a acção penal. Assim sendo, a ideia de uma transacção não é descabida : por princípio o processo civil pertence às partes.


2/ Isto significa que, em teoria, a acção penal (pública) continua a ser possível. Mas sobretudo em teoria, pois na prática presumo que haverá muitos obstáculos a vencer. A esse propósito, não sei como se coloca a questão em direito britânico, mas em França (e penso que também em Portugal) a acção penal não poderá conduzir a uma condenação do Estado (irresponsável penalmente), apenas a de outras pessoas, nomeadamente agentes, que agiram em seu nome.


3/ O que é original no caso britânico e nos soa a falso, em parte por estarmos habituados a outro sistema, com tribunais civis e tribunais administrativos, é que a transacção, neste caso, é sobre um litígio de direito comum. Isto acontece porque, no RU (tanto quanto sei), a administração está submetida ao direito e aos tribunais comuns. Se fosse em França, ou em Portugal, a acção teria sido movida nos tribunais administrativos e a transacção teria de respeitar um certo número de condições próprias do direito administrativo. O juíz administrativo poderia, por exemplo, controlar a regularidade da despesa pública ordenada para pagar a indemnização. Não sei como é que esta questão se coloca no direito britânico mas, conhecendo os jornais ingleses, estou certo que havemos de saber mais nas próximas semanas.


4/ O que acabei de expôr não deve ocultar o principal : por muito que se trate de uma tansacção num litígio « civil », não deixa de pressupor que houve uma decisão administrativa, que julgou oportuno pagar uma grande quantia de dinheiro público para fins que, em princípio, devem ser de interesse geral. Não é natural que esta decisão administrativa escape ao controlo. Nos nossos países, haveria controlo da legalidade. No RU não sei, mas não acredito que haja plena discricionariedade, sem limite nem controlo. Não haverá nenhum leitor do Vias de facto que saiba algumas coisas de direito britânico e que possa responder a esta questão ?


5/ Também convém frisar que o controlo existente nos paises de direito administrativo (França, Portugal, etc.) está longe de ser perfeito. Os Franceses que o digam após o recente caso Tapie (que, lembre-se, recebeu milhões de € após uma arbitragem decidida pelo ministério das finanças para acabar com vários contenciosos).


6/ Finalmente, convém sublinhar que apesar de pedir esclarecimentos técnicos (que eu não sei dar), a questão colocada pelo Miguel não é apenas tecnico-jurídica. E’ muito mais importante.  Com efeito, o que assusta neste caso é a forma como se passa facilmente da protecção do segredo de defesa ao pagamento de uma soma bastante elevada para evitar o « risco » que um juiz ordene a comunicação de documentos cobertos pelo segredo. Há aqui algo que não bate certo : a transacção foi feita para evitar um risco judiciário, não para permitir o encobrimento de informações incómodas. O governo deve ser capaz de justificar publicamente a decisão de indemnizar (que em princípo visa só evitar uma condenação mais pesada do que a soma paga). Ora, neste caso, não só afirma não poder fazê-lo (porque não sabemos o que há nos documentos em causa), como ainda confessa estar disposto a pagar muito para continuar a esconder os seus motivos reais.

João Viegas

2 comentários:

Ana Cristina Leonardo disse...

O MI5 nunca brincou em serviço enquanto a malta se entretinha com a CIA.
Dito isto, repara que a coisa pode ser vista por um lado positivo. Antes limpavam-lhes o sarampo, agora oferecem-lhes dinheiro para se manterem calados. Se fosse comigo aceitava, depois contava tudo e ainda lhes atirava com o Groucho: "estes são os meus princípios, se não gostarem arranjo outros."

Miguel Serras Pereira disse...

E não era nada mal visto, se o fizesses. Terias todo o meu apoio (benévolo, vamos lá, apesar das receitas encaixadas…).
O problema, no entanto, é que creio estarmos perante uma monstruosidade: se eu matar um tipo e, depois de ser acusado disso por um familiar da vítima, oferecer uns robalos ao dito familiar, ainda que este não apresente queixa ou a pretenda retirar, continua a haver obrigação, por parte das autoridades judiciais (Ministério Público, etc.) de investigação da matéria criminal anteriormente alegada, e as condições da minha incriminação ver-se-ão, quando muito, agravadas. Se assim é, gostaria que me explicassem por que motivo o mesmo raciocínio - a inegociabilidade da matéria criminal, a sua independência da queixa do particular lesado - não se aplica no caso que citei. E seria sobre isto que gostaria de ver algum jurista pronunciar-se. Sem prejuízo do apoio à solução que sugeres, claro está.

miguel sp