Devíamos resgatar mais vezes da voragem dos dias aqueles livros que não lemos, aqueles filmes que não vimos, aquelas músicas que raramente escutámos. Roland Barthes considerava este acto como eminentemente político, porque salvava os objectos da lógica consumista que cada vez mais lhes encurta o tempo de vida. A mim também me parece um acto de humildade, não muito fácil de praticar - basta olhar para a selecção apertada que nos é oferecida pelas prateleiras das lojas - mas quase sempre gratificante.
Nunca tinha visto "Natal 71", um filme-documentário feito por Margarida Cardoso em 1999. O título evoca o nome de um disco distribuído pelo Movimento Nacional Feminino aos soldados então a combater nas várias frentes de batalha em África. Hermínia Silva e Florbela Queiroz eram algumas das vozes oferecidas aos jovens magalas, que ainda tinham oportunidade de ouvir as mensagens patrióticas da eterna líder do movimento - Cilinha Supico Pinto - e do ministro Sá Viana Rebelo, general apresentado como "um soldado que é vosso chefe e irmão". Muito poucos iriam efectivamente ouvi-las - os gira-discos não abundavam no mato - mas isso não parecia importar por aí além.
Essa imensa operação tinha o seu contraponto. Nessa altura, em Moçambique, circulavam já em cassete áudio algumas canções com letras modificadas, nas quais se atacavam as altas patentes militares, se descrevia a dureza da vida de soldado e se questionava o porquê de uma guerra que consumia as riquezas de um país. A começar pela mais importante de todas, o corpo e a alma da juventude. O Cancioneiro do Niassa transformou-se assim num segredo que se espalhava à medida que a guerra se ia prolongando.
Neste jogo de contrastes entre o disco do regime e a cassete clandestina, Margarida Cardoso faz um delicado retrato de um país atrasado, cinzento, desinformado e medroso. A dada altura aparece Marcelo Caetano a assegurar que Portugal não estava em guerra mas apenas em "missão de policiamento". De seguida temos os relatos das agruras da guerra e a dificuldade de um jovem alferes miliciano, momentaneamente regressado no Verão, explicar aos seus conterrâneos que, em Moçambique, "aquilo não eram umas férias".
Como se dizia no poema de O'Neill, era o medo que então tinha tudo. Um medo sibilino, pequeno, rasteiro. Era o medo da política, actividade que pretendiam fazer aqueles que estavam contra o governo e o regime. Era o medo de ver as coisas de outra forma e desmoronar os castelos de sentido que a informação possível, a censura e a educação baseada no mito imperial iam construindo. Era o medo de não sair vivo diante do muro da guerra.
Não acabou ainda essa guerra que levou mais de um milhão de jovens portugueses a combater num continente que desconheciam, que provocou mais de oito mil mortos e milhares de feridos. Como disse um dia Carlos Matos Gomes, as guerras só acabam quando os homens que a fizeram desaparecem. Ou, digo eu, quando conseguimos ir quebrando os silêncios e reconstruindo as memórias. A deles, a nossa e a do país.
Publicado inicialmente no Aparelho de Estado
02/11/10
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
0 comentários:
Enviar um comentário