02/11/10

Porreirinho da silva


Nesta questão do trabalho, discutida aqui e ali, não deixa de me surpreender a facilidade com se arruma a questão com referências obreiristas a  empregadas de limpeza e ao pessoal que não consegue ver para além dos muros da faculdade.
E contudo, bastaria um pequeno esforço para constatar o óbvio. O conjunto das actividades a que se pode chamar trabalho é historicamente variável, ainda que as actividades em questão permaneçam idênticas. Muddy Waters tocava a sua guitarra para quem o quisesse ouvir e em troca de um copo de aguardente, até ao dia em que o representante de uma editora o levou para um estúdio e lhe pagou para gravar as canções mais radiofónicas. E o que em tempos foram desportos praticados nas horas livres são hoje competições altamente profissionais.
Por sinal eu já ganhei a vida a limpar retretes alheias. E limpo actualmente a minha de forma inteiramente gratuita. Penso que ninguém será ingénuo ao ponto de afirmar a esse respeito que em ambos os casos estaremos a falar de trabalho, residindo a diferença apenas no facto de um ser pago e o outro não.
Quando descemos ao plano concreto em que se jogam todas estas coisas, é difícil não verificar que a relação social a que corresponde o trabalho assalariado, inscrita no plano mais vasto da reprodução do capital, segue uma tendência de progressiva abstracção, de perda das qualidades concretas relacionadas com cada actividade e da sua sujeição a processos de racionalização e enquadramento postos em prática no âmbito da disciplina da empresa.
É nesse terreno que se joga a crítica do trabalho e ganha actualidade a perspectiva de um modo de produção assente num plano irredutivelmente imanente, em que o acto de tocar piano, cozinhar, escrever um livro, cuidar de crianças, limpar retretes, andar de bicicleta ou conduzir autocarros é equacionado enquanto gesto concreto e acção específica, sem se limitar a uma fracção quantitativa do trabalho social combinado.
É por isso que a perspectiva de um «trabalho liberto da alienação, em que o produtor é dono inteligente do seu esforço» surge como uma tirada publicitária desprovida de qualquer significado.  O mesmo para uma mirífica «maior democracia no local de trabalho», expressão que parece cunhada com o deliberado propósito de contornar a existência de um antagonismo entre o trabalho e o capital. Como se os locais de trabalho não fossem - todos eles - moldados pelo conjunto do ciclo da valorização capitalista.
É na imprevisibilidade do gesto político de recusa de um quotidiano integralmente subordinado ao trabalho assalariado que podemos começar a visualizar um horizonte distinto. Ele ganha forma sempre que milhares se juntam para bloquear o processo de produção e circulação. Quem quiser souber algo mais acerca da superação do trabalho poderá olhar para o que se vem passando em França há algumas semanas. Ou o que se passou intermitentemente na Grécia nos últimos dois anos. Poucas são as questões decisivas do nosso tempo que escapam ao tempo e ao espaço da luta de classes. E é acima de tudo isso, o nosso posicionamento face ao trabalho. Uma questão de classe.

9 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Muito bem, camarada Ricardo. Mas não vais sem resposta.
O problema, do meu ponto de vista, põe-se, com efeito, na perspectiva de assumir que há tarefas "necessárias" que é preciso distribuir e assegurar colectivamente e necessidade de regras de apropriação individual e acesso colectivo a certos bens. Nada contra o gratuito e a economia informal do dom e da partilha, mas sem esquecer que estes não são - e creio que nunca poderão ser - tudo.
É aqui que intervém a exigência de democratização, que comporta a de redefinição em larga medida das próprias tarefas.
Esta democratização passa por medidas gerais de igualização dos rendimentos e "salários", segundo o princípio democrático de um voto por cabeça (o texto do Castoriadis que cito a esse respeito é explícito). Passa também pela democratização e cooperativização anti-hierárquica das tarefas necessárias ou vinculativas. Não vejo o que possas, no fundamental, objectar a estas formulações. Creio que são solidárias do que te preocupa e que comportam a exigência de luta e transformação do quotidiano laboral e governado pela economia que assinalas e reiteras.
Daí que me sinta um pouco perplexo sem saber que posições - e de quem - criticas ao certo no quadro do debate a que te referes.
Não queres explicitá-lo um pouco melhor?

Saudações libertárias e combativo abraço

miguel (sp)

Niet disse...

A discussão corajosa encetada pelo presente irónico artigo coloca questões de método muito subtis e complexas. Lembram-se da interminável discussão sobre a Teoria do Valor há uns mesitos atràs? É que, justamente,o Capital não pode sobreviver sem exploração, não existe uma " justa medida de exploração "; e, dado incontornável, as relações de produção constituem relações de exploração ( o trabalho vivo é dominado pelo trabalho morto), sob as duas faces, tanto como organização da produção que como formas de organização da repartição. Na organização da produção, o proletário é inteiramente dominado pelo capital e não existe senão para este. É também explorado na distribuição, uma vez que a sua participação no produto social é regulamentada pelas leis económicas( que o patrão exprime) que definem esta participação não sob a base do valor criado pela força de trabalho mais depois do valor criado por essa força de trabalho. Na sociedade capitalista, disse Marx,o trabalhador é livre no sentido jurídico e, acrescenta com ironia,em todos os sentidos do termo...( Tópicos adaptados de um texto da fase marxista de Castoriadis,datado de Maio 1949). Niet

maria disse...

não percebi bem esta frase :"Penso que ninguém será ingénuo ao ponto de afirmar a esse respeito que em ambos os casos estaremos a..."

fiquei com a ideia que sou ingénua por achar que uma família que opta por ensinar os filhos em casa ( que as há) realiza o mesmo trabalho que um professor assalariado. a sua compensação não é monetária , parece que até é mais importante ; ou por achar que um senhor que amanhe umas terras , tenha uns animais e umas árvores para consumo próprio , poupando na mercearia e no talho ( e aqui poupa , até há um ganho económico) realiza exactamente o mesmo trabalho de quem tenha as mesmas coisas para venda.
mas se calhar percebi mal.
de resto , muito bem , o seu post.

Miguel Madeira disse...

"uma família que opta por ensinar os filhos em casa ( que as há) realiza o mesmo trabalho que um professor assalariado. a sua compensação não é monetária , parece que até é mais importante ;"

O próprio facto de a compensação até ser mais importante, por si só, não demonstrará que há uma diferença de grau entre as duas coisas?

Outra diferença - ontem há noite não me apeteceu lavar a loiça e hei de a lavar hoje. Se eu fosse contratado para lavar a loiça de terceiros poderia fazer isso?

Vagamente sobre este assunto, ver este meu post de há uns tempos.

Ricardo Noronha disse...

O Miguel Madeira responde por mim à dúvida da Maria. Há uma diferença de natureza nas duas coisas, mesmo se o resultado for idêntico (o que também me suscita dúvidas, mas é admissível enquanto hipótese).
Quanto à solicitação do MSP, penso que fica claro que critico a posição de quem transforma o trabalho numa categoria desprovida de historicidade e politicamente neutra, como se bastasse juntar-lhe adjectivos generosos para o tornar emancipatório. Repito que as tarefas necessárias ao nosso bem estar devem ser equacionadas enquanto actos concretos e não enquanto porções do trabalho social combinado, como se limpar 5retretes fosse equivalente a fazer um par de sapatos ou a apresentar um programa de televisão. É essa equivalência que está subjacente ao trabalho, que oculta a divisão social que lhe é inerente e que se trata de suprimir.
Um abraço.

Niet disse...

Oh,sr.R.Noronha: O facto de não ter mencionado o meu comentário, num conjunto de cinco, quer dizer que concorda com o sentido dessa mensagem que elaborei socorrendo-me de algumas teses admiráveis de Castoriadis sobre " O Capital "? Niet

Niet disse...

Sr. Ricardo Noronha: Peço-lhe, se faz favor, para apagar o meu comentário do seu post. Obrigado. Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Niet,
como poderia dizer a Ana Cristina, citando o O'Neill — Por favor, Madame, tire as patas,/ Por favor, as patas do seu cão/ De cima da mesa, que a gerência/ Agradece -, isso não são maneiras de falar a um comensal desta pastelaria, e, muito menos, ao sempre leal campeão histórico da auto-organização da malta, com ou sem filiação sindical ou partidária, que dá pelo nome já lendário de Ricardo Noronha.
A insolência nem sempre é genial e, por outro lado, faz parte da minha agenda reivindicativa imediata que ter chá deixe de ser uma insígnia - quotidianamente desmentida, de resto - da oligarquia.
Earl Grey, Lapsang Souchong e Gun Powder já - à discrição e à borla para todos os candidatos a cidadãos governantes.
E com esta me vou, com os meus votos de prósperos ventos e propícia trip, meu

msp

Niet disse...

MS. Pereira, meu caro: Solicitar o apagamento do meu comentário não tem nada de mal. Antes pelo contrário. Do meu ponto de vista, senti-me " ferido " pela ausência de referência- que podia e devia ser positiva ou negativa- num magro conjunto de cinco(5)!. Nem sempre, como ainda há pouco o lembrava " obliquamente " P.Pereira no seu Abrupto, se vê citar o Castoriadis na caixa de comentários de um blogue..., meu caro. Sobre outro tipo de meditações,as provas existem nuas e cruas ou em fato-de-banho;e,abstraindo o flagelo da impotência do mau humor e o falso ribombar da ironia de pechisbeque,há muito que dei por encerrado o caso.Bom Vento e bom Vinho! Niet