23/12/10

Clarificação a pedido

1. Na "caixa de comentários" deste post, um interpelante (do pelotão dos "anónimos") desafiou-me com a seguinte pergunta:

A existência de um movimento comunista como o que «realmente existiu» trouxe alguma vantagem às classes sociais desfavorecidas do globo? Ou foi sempre uma agremiação de facínoras, criminosos e loucos?

2. Respondo-lhe assim:

O comunismo comporta uma praxis bipolar, consoante intervém na escalada até ao poder ou no exercício do poder. Quando projecto de acesso ao poder, os partidos comunistas fundamentam-se e entranham-se nas desigualdades sociais existentes e geradas pelo capitalismo, invocam os sentimentos mais generosos da humanidade, tornam-se paladinos, pelo menos formalmente e quando o sectarismo não os corrói, da civilização, da cultura, da liberdade, da democracia. Assim, fora do poder, digamos que enquanto pré-poder, e como regra, os partidos comunistas fazem parte das forças democráticas e do progresso, mais ou menos representativas, mais ou menos capazes de se unirem e promoverem a unidade na esquerda social e política. Quando acedem ao poder, na obsessão de o conservarem, os partidos comunistas desenvolvem automaticamente mecanismos paranóicos de tipo elitista e securitário, degradam-se rapidamente na forma de seitas autoritárias incapazes de governarem sem os mecanismos de terror, procedendo a passagens identitárias da classe operária para o partido, depois do partido para a direcção, muitas vezes da direcção para o dirigente máximo, terminando em estados policiais suportando ditaduras e servindo ideologias conformistas e conservadoras, alérgicos à liberdade, à democracia e aos direitos humanos, odiando particularmente a ideia da independência sindical e das autonomias operárias. Como o demonstra todos os casos de poder comunista, os partidos comunistas, ao governarem, transformam-se em “agremiações de facínoras, criminosos e loucos” (para utilizar os termos do meu interpelante). Porque o movimento comunista internacional, desde os tempos do Komintern, juntou partidos nas duas fases do comunismo, tendo de gerir o paradoxo da referida bipolaridade, desenvolveu como componente fundamental da sua propaganda a duplicidade na comunicação quanto aos seus projectos e intenções. Assim, consoante os interesses imediatos (os “interesses do partido”, os quais induzem os comunistas a viverem em paz com a mentira política contumaz), caso a caso, ora são democratas ora viram revolucionários, são patriotas nos intervalos do internacionalismo, contribuem para a unidade quando não são sectários, antiburgueses quando não são defensores da pequena (por vezes, até da média) burguesia, libertários quando não são contraditados. No caso de partidos em pré-poder mas com uma forte marca histórica de laços de subordinação hierárquica aos focos dos antigos poderes comunistas governantes (sobretudo quanto à URSS), como é o caso do PCP, as duplicidades são constantes e gritantes, na medida em que as fidelidades antigas (e que marcam as gerações mais antigas de dirigentes e foram passadas à “nova vaga bolchevique” como tradição caracterizadora e enquanto componente tutelar da vigilância leninista-sobrenatual da alma penada, pontifícia e santa de Cunhal) entram constantemente em colisão com as formulações políticas sobre a situação política interna. Defensor extremo da acção sindical, das garantias democráticas, das mais amplas liberdades, o PCP quando exprime a sua síntese sobre a história do comunismo e fala sobre os últimos bastiões do comunismo ditatorial que sobrevivem, entra em deriva esquizofrénica e defende nos seus “amigos”, “irmãos” e “camaradas” no poder todas as práticas que são exactamente o contrário do que teoricamente diz defender para Portugal e os portugueses. Mostram, assim, que não são sinceros, portanto não são fiáveis. E o PCP é, no panorama político português, independentemente dos quadrantes sociais, políticos e ideológicos em que se situa e exerce a disputa eleitoral, o partido mais falso, mais mentiroso e mais dúplice. Capaz de defender, aqui, os sindicatos, as greves, os direitos e as regalias, enquanto defende os seus confrades que dirigem as formas estatais mais selvagens de capitalismo e da globalização, bem como formas grotescas e monárquicas de perpetuar tiranias. Até que, hipótese sempre em aberto, o PCP seja capaz de se regenerar, democratizando-se e libertando-se da sua matriz “soviética”, sendo evidente que pode morrer da cura.

Quando acedem ao poder, assim foi em todos os casos realmente praticados, os partidos comunistas, depois de recomposições classistas das sociedades e assegurado o seu controlo, instalam um Estado de natureza assistencialista em que se asseguram transversal e igualitariamente a satisfação de necessidades básicas da população (emprego, saúde, ensino, habitação), produzindo então a grande diferenciação da prática estatal comunista face às iniquidades e arbitrariedades capitalistas. Alcançado este estádio, enquanto a sociedade evolui para a concentração do poder num restrito núcleo dirigente e domínio todo poderoso do aparelho policial, degradam-se os padrões de qualidade de vida, a sociedade elitiza-se com predomínio de nomenklaturas, destrói-se o sindicalismo independente e a auto-organização operária, a política e a intervenção cívica ritualizam-se e formalizam-se. Para o poder comunista, um polícia e um delator passam a ser muito mais importantes que um quadro sindical ou um autarca. Os padrões de vida e de participação degradam-se ao nível vegetativo da sobrevivência, muitas vezes arrastando-se pela via da indigência. Não são, nunca foram, padrões atractivos para os trabalhadores vivendo no capitalismo desenvolvido. Não impuseram qualquer mudança fundamental nos direitos e nas regalias dos trabalhadores. Quando havia o "império socialista", eram os trabalhadores destes países que olhavam com admiração e inveja para o nível e condições de vida, bem como direitos e regalias, dos trabalhadores da Europa capitalista rica e não o contrário.

Já nas sociedades em que os partidos comunistas estão na fase de pré-poder, os seus militantes, normalmente dominando os aparelhos sindicais, mobilizando os trabalhadores para a resistência à regressão social imposta pelos capitalistas e impulsionando novos direitos e mais regalias, o que constitui o húmus da ligação do social ao político e portanto da penetração comunista nas suas classes-alvo, são dos paladinos mais acirrados e combativos dos direitos operários. E, aqui, nas sociedades capitalistas, os comunistas sempre foram factores fundamentais para se ter atingido o actual patamar de condições laborais e de vida pelos trabalhadores, pressionando a social-democracia para a sensibilidade social e tentando despegá-la da sua atracção para governar com a direita e dentro do sistema capitalista.

Se os trabalhadores portugueses conservarem a sua velha sabedoria de nunca permitirem que os comunistas passem do contra-poder para o poder, nunca baixando a guarda para evitarem o risco de um dia virem a considerar como muito benévolas - social e politicamente - as passadas décadas de fascismo, sabem que contam com o PCP como factor de progresso, em muitos dos aspectos da vida cultural, social e política. Além de que, para os mais ecléticos, a leitura das manifestações de internacionalismo mumificado e esquizofrénico regularmente difundido pelo “Avante” pode ser uma fonte lúdica semanalmente actualizada de diversão pelo absurdo e enquanto uma das originalidades portuguesas ao conservar em bem entrado século XXI uma relíquia doméstica do estalinismo serôdio que é o quinto partido do arco parlamentar e recolhe à volta de 8% (!) das preferências do eleitorado.

(publicado também aqui)

10 comentários:

Ricardo Noronha disse...

Concordando com várias coisas que dizes, João, devo dizer que penso exactamente o oposto desta tua formulação: "o PCP é, no panorama político português, independentemente dos quadrantes sociais, políticos e ideológicos em que se situa e exerce a disputa eleitoral, o partido mais falso, mais mentiroso e mais dúplice."
Parece-me que o partido tem vários problemas e etc., mas ganha na comparação com todos os outros e é certamente o mais consequente em defesa da democracia, tal como ela existe em Portugal.

Niet disse...

Estou totalmente de acordo com o J.Tunes.O capitalo-parlamentarismo reduziu o glorioso PCP a um monte de destroços sem nome,nem direcção estratégica( claro que é o colapso do marxismo-leninismo a bater fundo, de forma irreversível), nem respeito pela sua memória operária e política de décadas de luta. Niet

Bruno Carvalho disse...

Já se vê qual o principal inimigo de João Tunes. É a direita e o capitalismo? Não.

Anónimo disse...

Já bebi uma taçã de champanhe à conta deste post.

Por duas razões:

- uma é que se infere do teor do «post» que não haverá perigo nenhum se o PCP for até aos 20%, pelo que aqui ficam os agradecimentos pela ajuda;

- a outra é que isto (mas esta parte não celebrei) é, para parafrasear um título do autor,o que chama transformar um eventual sapo num eventual boi.

João Tunes disse...

Ricardo:
Concordarmos com tudo era uma sensaboria. Celebremos, pois.

Sr. Bruno Carvalho:
Essa do "principal inimigo" é velha e está gasta. Já dei para esse peditório mas resolvi não morrer zarolho.

Anónimo disse...

Já eu adorei este post, verdadeiro Livro Negro do Comunismo em versão Readers Digest do tempo da guerra fria.

Anónimo disse...

Eu no meu leve conhecimento politico-partidário apenas gostava que todos os partidos mostrassem as suas contas (dinheiro) tal e qual como elas são.
José Narciso.

Ricardo Noronha disse...

Claro João, celebremos.
Mas repito que acho que falta no teu post uma sustentação para a afirmação em causa.
A partir do momento em que entramos no plano comparativo, não bastar dizer que o PCP é o partido menos democrático por lhe faltar orientação estratégica. Se o termo de comparação são o PS, o PSD e o CDS, venha o centralismo democrático, a regra de ouro e a comissão central de controlo e quadros. No que diz respeito ao bloco a coisa é um pouco mais complicada. De facto, os aspectos formais da democracia interna são ali respeitados. Mas fica a sensação de que as decisões que contam são todas tomadas noutro lado e de forma bem menos formal.

João Tunes disse...

Ricardo,

Julgo que há um semi-mal entendido. Não comparei democracias internas, simplesmente porque não me virei para aí por entender que esse não era o aspecto mais diferenciador, embora pense que, com todas as limitações e golpaças manipuladoras, o Bloco é, de longe, o partido onde há menos diferenciação de planos da base até ao topo.
O que falei foi de duplicidade identitária e de nível de clarificação quanto à táctica e à estratégia. E aqui, o discurso político corrente, a comunicação quotidiana e mobilizadora, é uma completa trapaça. Trapaça esta que, inclusive, sustenta a disciplina interna pois mantém a maioria esmagadora dos militantes fora dos segredos das descodificações dos alcances e objectivos e essa ignorância é essencial para a tranquilidade militante. Aliás, como podia ser diferente num partido apegadamente marxista-leninista (assim proclamado) e campeão da democracia, dos direitos, das liberdades? No mesmo partido que, gabando-se de defender para Portugal a via democrática e assente nas escolhas eleitorais, também se gabou recentemente das conclusões da reunião dos partidos comunistas na África do Sul em que se proclamou que a única solução para as sociedades actuais, acicatada pela crise, são as soluções revolucionárias? E o que é verdade no PCP, o seu patriotismo extremado pela alminha da Casa de Aviz e de Dom Nuno Álvares Pereira ou a sua idolatria e cumplicidade para com os tallibans, o governo chinês, cubano e norte-coreano, incluindo as suas maiores atrocidades? Por esta dança entre identidade, ideologia e projecto, retintamente estalinista e soviético, e a formulação da democracia avançada do século XXI, julgo que o PCP é de facto o partido mais mentiroso, ou seja o que mais manipula, muda e esconde da sua essência política para com os seus militantes, eleitores e opinião pública, incomparavelmente procedendo a um nível de trapaça muito maior que as mentiras eleitorais e demagógicas dos restantes partidos com assento parlamentar.

Miguel Serras Pereira disse...

Caríssimos João e Ricardo,

creio que o risco de algum mal-entendido permanece. Ou seja, embora eu também ache que é contraditório defender os talibans e o governo representativo, etc., receio que pôr a alternativa entre democracia e revolução não nos leve muito longe e obscurecerá algumas questões.
O problema e o critério, a meu ver, passaria antes pela "suspensão" ou "excusão" orgânica e ideológica da democracia que, por outro lado, se afirma. E não tanto pela alternativa entre violência ou não-violência - ou, também, entre reforma e revolução. Pois que, "(…) a questão “reforma ou revolução” adquiriu com o tempo fatais ressonâncias teológicas e míticas, que confundem mais o problema do que podem ajudar a abrir caminho. Tenho visto muitas definições da revolução que “nem para atacadores”, e a redefinição das formas institucionais e do exercício do poder que podemos incluir na ideia de “reforma” pode implicar o tipo de ruptura – depende das reformas propostas – que associamos ao “nome de revolução”. Digamos que não é por aí – pela oposição dicotómica – que o gato vai às filhoses ou, melhor, tiraremos nós as castanhas do lume” - o que, como escreveu o camarada João Tunes, significa que "há mais vontade de tocar corneta que de estudo e prática do solfejo. E aqui nascem, normalmente, as dicotomias. Sobretudo, as semânticas. E delas está a política discutida bem cheia" (http://viasfacto.blogspot.com/2010/11/como-se-ganha-um-dia.html).
É por estas e outras razões que tenho vindo a insistir na "democracia" como plataforma e linha de separação das água necessária e suficiente - tanto ao nível dos objectivos visados como ao nível da organização das lutas (http://viasfacto.blogspot.com/2010/11/da-democratizacao-como-plataforma.html). E, deste ponto de vista - "admitindo embora a possibilidade e a necessidade de o grosso dos [seus] militantes e companheiros de jornada (…) virem a integrar as fileiras do combate pela cidadania governante", creio que , apesar do seu duplo discurso, "o PCP enquanto tal é, não só irrecuperável, como continua portador de um projecto de sociedade e tipo de regime que qualquer projecto de autonomia terá de remover do seu caminho".

Vigoroso abraço para ambos

miguel (sp)