04/12/10

Espionagem democrática

Por mais que possa declarar-se ou ser declarado ao serviço da justiça, do direito e das forças do bem confrontadas com variáveis senhores das trevas, o certo é que a figura clássica do espião se integra como insígnia inconfundível de uma ordem hierárquica que reserva aos poucos e melhores, aos sábios ou competentes, aos oligarcas governantes, o poder e o dever, o direito e a obrigação, associados ao saber e ao segredo, como contrapartidas de uma direcção e de um comando que têm como condição necessária e legitimação imaginária (“ideológica”) a ignorância e a impotência dos governados, reduzidos à menoridade de súbditos, excluídos da maioridade da cidadania plena.
Ora, a verdade é que Julian Assange e Wikileaks nos confrontam com um espião e uma espionagem de tipo novo: com as improváveis — e por isso ainda mais gratificantes — figuras do espião democrata e da espionagem democrática militante. O que há de novo no melhor das suas iniciativas é que o espião já não serve os senhores do bem contra os senhores do mal, os arcana imperii (segredos do império) da oligarquia legítima contra os de uma ordem rival, mas assente na mesma divisão do trabalho político – e, evidentemente, na mesma divisão política do trabalho — classista e hierárquica. O espião democrata desmascara os segredos de Estado e as prerrogativas dos governantes oligárquicos e comunica-os ao juízo da opinião comum, convidando os (potenciais) cidadãos comuns a pronunciarem-se e, tendencialmente, a assumirem por sua conta o conhecimento dos problemas políticos (de organização da cidade) e o poder de decisão sobre eles. Mais ainda, para ser coerente com os seus propósitos democráticos, assume-se como cidadão do mundo, e faz com que as figuras, malditas aos olhos do poder hierárquico, do apátrida e do judeu errante mudem de sinal e se tornem emblemas do internacionalismo e da mundialização de uma cidadania instituinte comum.
É por tudo isto — porque “objectivamente” encarnam estas figuras e se apoderam dessa prerrogativa maior dos serviços secretos da segurança dos regimes oligárquicos, que é a espionagem, para um combate sem fronteiras contra a sua dominação – que Wikileaks e Julian Assange têm a cabeça posta a prémio por uma coligação oligárquica global pouco menos do que inédita. E é por isso – e porque são também a nossa liberdade e a nossa vontade de democracia que,na circnstância, têm a cabeça prémio – que nos compete defendê-los por todos os meios.

6 comentários:

Ana Cristina Leonardo disse...

Miguel, percebo o que queres dizer mas se escrevesses isto nos EUA estarias a enterrar o homem. É que, justamente, é de espionagem que o andam a tentar incriminar. Assim como assim, mais vale ser acusado por duas suecas.

Niet disse...

Uma breve nota, meu caro: Existe um texto magistral do Lyotard sobre Maio 68, inserto no livro " Moralités Postmodernes "- " Na Sequência "- onde se joga e desenvolve o que Maquiavel tinha perspectivado sobre as infâmias toleráveis e as intoleráveis, a bondade e a crueldade,a virtude e a mentira. Esta " virtude " jogada pelo Assange só pode acabar mal, mesmo contra os nossos desejos e vontade. Porque a incoerência das representações expressas no WikiLeaks- a tentativa de " salvar " o sistema- vai conduzir a que o realismo do poder se exerça: " É desta forma que o sucesso das revoluções é necessariamente o seu falhanço, e que a sua infidelidade se gere da " ousadia " própria da fidelidade inicial ", frisa Lyotard. Maquiavelismo do séc. XXI? A política não será jamais que a arte do possível. Para quem a Resistência- contra e apesar esse Realismo- só pode ser concebida com a irresistível ousadia e convulsão da irresponsabilidade- mas sem tragédia como em Maio 68... Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Claro, Ana, e parece que também de "alta traição". Todo este afã de acusações, esta escalada condenatória, aquilo a que o Tiago Mota Saraiva chamou a fatwa contra Assange (http://5dias.net/2010/12/04/tedtalk-julho-2010-com-julian-assange-jornalista-recentemente-alvo-de-uma-fatwa-do-mundo-ocidental/), a coligação das potências rivais, etc. - tudo isto mostra bem a eficácia da operação Wikileaks, e creio que é nessa base, invocando as liberdades e os princípios elementares da democracia, que o devemos defender e secundar.
A partir do momento em que haja acusação formal estabilizada (de espionagem, divulgação de segredos de Estado, etc.) contra Assange pelos actos que cometeu, sugiro que ponhamos a circular uma declaração de solidariedade, afirmando-nos culpados em termos genérios de delitos da mesma natureza, exigindo que nos incriminem por cumplicidade na divulgação dos documentos, e afirmando o nosso propósito de obstruir a acção de quaisquer autoridades ou entidades judiciais que o persigam.
Até podemos ir já pensando nisso: "s abaixo-assinados vêm por este meio declarar a sua cumplicidade na divulgação de documentos postos a circular pela Wikileaks, etc.…"
Até já

miguel sp

Niet disse...

OH. MS Pereira: Não receies atacar se achas que erro, please! Claro, penso no teu acérrimo humanismo e democratismo integral em defesa do Assange, que parece estar a salvo na Suiça. Mas a questão da " secrecy " pode ser um pau-de-dois-bicos e, mais dia menos dia, a ala dos falcões USA passar ao ataque, especialmente cotra o Irão! De qualquer das formas, o poder " imperial " dos USA não parece ter sofrido a mínima beliscadura. As élites mundiais- como diz o Attali- há muito que sabem das " misérias " dos seus aliados através do Mundo. É ver o que está a acontecer na Costa do Marfim, onde o " socialista " Laurent Gbagho "insiste" em se manter no poder: Bom vento! Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Niet, vamos lá ver uma coisa: o meu argumento é que devemos defender Julian Assange porque este põe em causa, divulgando os segredos do Império, a extensão dos poderes da oligarquia e as suas prerrogativas. Porque lhes arranca as máscaras "democráticas". E isso não me parece pouco nem despiciendo para quem esteja apostado numa outra divisão - igualitária - do trabalho político. Quem quer o mais, quer o menos. E, como dizia o outro, grão a grão…

Estás a ver?
Salut!

msp

Luis Ferreira disse...

Neste artigo mostra~se a estratégia de Assange. Um dos melhores que li sobre o assunto.
http://www.vancouversun.com/story_print.html?id=3928284&sponsor