11/02/11

Da inutilidade do pessimismo

Consta que o surrealista Louis Scutenaire teria dito um dia, “Pessimistas, mas que esperavam vocês ? ».

Os que, como eu, nasceram depois da segunda guerra mondial, nada esperavamos e muito já vivemos. Um deslumbramento de acontecimentos históricos ! Foi o fim do colonialismo clássico, as revoltas dos anos 1960, o fim dos totalitarismos da Europa do sul (com um luminoso suplemento subversivo neste Portugal hoje tão cinzento), as revoltas da Europa de leste e o desmoronar do capitalismo de Estado, a transformação do capitalismo de Estado chinês num agressivo capitalismo liberal-burocratico a afogar-se num mar de pobreza, a maior crise do capitalismo depois da dos anos 1920…Como se tanto não bastasse, chegam-nos agora as revoluções do mundo arabe contra os sistemas despóticos locais. Que os sábios de serviço recomendavam como sólidos e adaptados a estes povos resignados por natureza…Tudo isto para dizer que, se eu não estou imunisado contra o pessimismo individual, que faz parte da condição humana, sinto-me totalmente estranho às professias do pessimismo histórico.

Estamos de novo no tempo da História. Que esta a ser feita por milhões de anónimos que se cansaram de esperar por chefes providenciais, personalidades, especialistas, programas, partidos e outras bugigangas de feira política. Que tomaram o seu destino em mão própria. Foi assim que os egípcios, que se tinham atribuido a eles próprios a alcunha de « avestruzes adormecidas », derrubaram o muro da resignação. Situação paradoxal que se pode reproduzir em muitos outros lugares onde o povo vai sobrevivendo em estado de coma prolongado. O mar calmo precede sempre a tempestade. Tudo isto provando, uma vez mais, que por todo o lado onde reina a injustiça social o imprevisivel é sempre provável. E é o imprevisivel que abre a porta à História e torna o provável possível.

As revoluções na Tunísia e no Egípto vieram pois atrapalhar a política e os políticos. O governo israelita, o Hamas , o governo palestiniano, a burguesia vermelha de Pekin, os governos europeus e americanos, o palhaço Qaddafi, todos entraram em pânico face ao imprevisível, ao impensável concretisado ; o derrube de ditaduras sanguinárias que constituíam, finalmente, a maior segurança para todos eles. A paz do horror que é a condição do business as usual.

Estas revoluções vieram também desvendar o mistério do islamismo integrista. A sua inesperada baixa de credibilidade neste período crucial de crise do capitalismo. Trata-se de algo de fundamental que estava provavelmente em gestação de há anos a esta parte, que vai obrigar a rever as « verdades científicas» que nos eram servidas sobre estas sociedades. Na Tunísia como no Egípto, os grupos religiosos estiveram ausentes no início dos movimentos, só entraram neles quando outra coisa nao podiam ja fazer. Todos os testemunhos directos o confirmam. Na Tunísia, o essencial da burocracia religiosa estava mesmo comprometida com a ditadura. Se o islão político não desapareceu – e ele será sém duvida um actor importante nos regimes de “salvação nacional” que vão tentar de se instalar para salvar o sistema -, hoje é o modelo turco que aparece como atractivo e viável e não mais o modelo iraniano. O qual, após décadas de prática autoritária , deu há luz uma monstruosa desigualdade social e um capitalismo de Estado dominado pelos mollahs. Ironicamente, são os poderes ocidentais que antes utilizaram o medo do « estremismo islamico » que se agitam hoje para revalorisar estas correntes. E é sem complexos que o chef da polícia Suliman acolhe hoje no palacio do Cairo as vitimas queele próprio torturou ontém. Os movimentos sociais actuais mostram claramente que as correntes religiosas fazem parte da política clássica, e que, como tal, eles perderam muito da sua credibilidade num momento onde a crise capitalista agrava as condições de sobrevivência do povo. E onde o espaço do reformismo, mesmo religioso, desapareceu.

Embora estas sociedades estejam ainda a viver os primeiros balbuciamentos da questão social, não deixa de ser significativo que ela apareça como central na dinâmica dos movimentos. Na Tunísia como no Egípto as revoluções actuais não caíram do céu. Elas foram precedidas por meses e anos de fortes lutas sociais e de greves, brutalmente reprimidas pelo poder político. E foi a importancia da questão social que fez passar para um segundo plano o projecto político dos grupos religiosos. No Egipto, os acontecimentos vão acelerar-se justamente a partir do momento em que a gréve geral começa a generalisar-se, no dia 10 de fevereiro. A mobilisação de dezenas de milhares de operário(a)s do textil de Mahalla (onde a grande revolta de 2008 foi reprimida no sangue) e das industrias de Port-Saïd, o ataque ao comissariado central da polícia de Port-Saïd pelos pobres vindos dos « ashwayet » (bairros da lata), são acontecimentos que exprimem um salto qualitativo do movimento e pesam mais na balança do que as declarações de El-Baradei à CNN. Também na Tunísia foram os proletários das regiões mineiras do sudoeste, de Gafsa, que constituiram o eixo da insurreição, são eles que continuam a manter a pressão e a defender as revendicações de justiça social. Limitando assim os desejos de compromisso da burocracia sindical e dos chefes da esquerda estalinista local, dispostos a partilhar o poder com os precedentes dirigentes. Enfim, esta mistura explosiva de desejo de emancipação social, de aspirações a uma liberdade humana , foi sem dúvida reforçada pela fusão no movimento de dois sectores da juventude, a juventude pobre de sempre e a juventude « educada », empobrecida antes mesmo de poder ser explorada. Fusão da qual nasceu um potente movimento de auto-organisação basista e de espírito igualitário que ninguém teria imaginado como possivel nestas sociedades. Da qual a praça Tahrir do Cairo ficara como símbolo.

A História não é a politica. Ela é o contrário da política e o regresso à política significará necessariamente o regresso à história domesticada. Em momentos como este, em que a História se impõe, a política aparece na sua verdadeira dimensão, insignificante e separada da vida das sociedades e dos indivíduos. Mas o regresso à História é também a negação da economia e dos seus conceitos. Até há poucas semanas o Egípto era apresentado como um caso exemplar do que os economistas chamam sem rir « os países emergentes ». Bastaram duas semanas de revolução para que os 6% de taxa de crescimento perderam-se nos afrontamentos da Praça Tahrir, deixando visíveis os quarenta milhões de pobres (metade da população) que vive com 2 dollars por dia. Adeus sucesso económico…

O tempo do capitalismo é o tempo da política, o tempo da alienação e da morte lenta. Contra este tempo, ao qual nos vamos habituando, só existe um outro tempo. Que é raro e precioso, que nos faz regressar à Vida e à humanidade : o tempo da revolução. Prever o desenrolar futuro das revoluções na Tunísia e no Egípto, no conjunto do mundo arabe, é tarefa improvável. A capacidade do sistema mondial do capitalismo a restabelecer uma ordem nova que perpetue os fundamentos do velho sistema não pode ser posta em dúvida. Mas a dignidade colectiva que foi reapropriada por milhões de explorados e oprimidos neste movimento colectivo único, contém também uma força. Que é dificil de medir, que não pode ser medida na mesma escala que a força dos opressores. Que têm outras potencialidades, animada por um vector revolucionário que é a perca do medo. O que se passou até agora foi já enorme e traz consequências incomensuraveis. Em parte, e na medida em que tais comparações têm algum sentido, os acontecimentos actuais são comparaveis à queda do muro de Berlin. Eles abrem uma nova época. As consequências para o resto do mundo arabe, para todas as sociedades esmagadas pela arrogância da força são impossíveis de calcular. Mas serão enormes, vão alterar as relações de poder e de força entre os Estados e os povos. O burguesia vermelha chinesa, velha conhecedora do governo pela força, bém o sabe e já deu sinais evidentes de inquietação.

PS : Três endereços para continuar a acompanhar e a refletir sobre as revoluções na Tunísia e no Egípto. En francês, www.juralibertaire.over-blog.com/ , documentos, testemunhos e reflexões ; em inglês, dois blogs, www.occupiedlondon.org/cairo/, www.arabawy.org/blog/, um blog do Egípto.


8 comentários:

JPC disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
JPC disse...

Epá, a prosa está interessante, mas precisava de uma revisão de alto a baixo. Ler isto assim, cheio de atentados ao português, é um exercício algo penoso.

Niet disse...

Belíssimo texto e de alcance incalculável, sem sombra de dúvidas. Como frisou Bakounine- sim, este blogue foi criado para criticar Marx, Bakounine e Trotski mas lendo-os até fazer sangue- " A Revolução Social não exclui de forma alguma a Revolução Política.Pelo contrário,ela implica necessariamente, mas dando-lhe um carácter novo,a emancipação real do povo do jugo do Estado. Uma vez que todas as instituições e todas as autoridades políticas só foram criadas, em definitivo, para protegerem e garantirem os privilégios económicos das classes privilegiadas e exploradoras contra as revoltas do proletariado, torna-se claro que a Revolução Social deverá destruir essas instituições e essas autoridades, não antes, nem depois, mas Ao Mesmo Tempo que porá a sua mão audaciosa sobre os fundamentos económicos da servidão do povo "( Oeuvres,IV,70-195). Niet

tempus fugit à pressa disse...

e há do kuwait
http://sandoog.blogspot.com/
iémen
gaza
do sinai

e mesmo daqueles que ficaram ainda mais miseráveis com a revolta

provavelmente via ciber-café

emancipação dos miseráveis

com 1 milhão a mais todos os anos

deve ser difícil

tempus fugit à pressa disse...

da utilidade do realismo

ficava melhor

as sociedades humanas são muito complexas

e as reacções à fome ainda mais

António Geraldo Dias disse...

O que esta revolução tem de maravilhoso é apontar caminhos de libertação de todos os povos demonizados da terra.

Anónimo disse...

De acordo Jorge.

Falta apenas acrescentar que a inquietação se estenderá também cada vez mais aos partidos, a quem o enquadramento destas coisas escapa, e aos políticos profissionais da velha escola, que a história que se vai fazendo tende cada vez mais a dispensar.

abraço solidário

nelson anjos

Miguel Serras Pereira disse...

De acordo, camarada Nelson Anjos. Mas, até ver, ele há partidos da velha escola muito impermeáveis, e o pior é ver que outros, mais novos, apesar de um pouco mais "libertários" e menos burocráticos, tendem a impermeabilizar-se e a reforçar a impermeabilidade (a divisão do trabalho político) da política institucionalizada.
Dito isto, vá aparecendo e dizendo coisas. Você faz falta.

Abraço grande

msp