Sempre atenta e com raro sentido da oportunidade que lhe é peculiar, a Joana já chamou a atenção para a crónica do Rui Tavares, initulada O antimulticulturalismo fahou, sobre a qual penso que vale a pena tentar alguma reflexão mais.
Subscrevendo, no essencial, a sua proposta, formulada como alternativa possível à "guerra das identidades" e ao monolitismo doutrinário e ideológico, creio, no entanto, que o Rui omite uma parte da questão, que me parece decisiva para validar a sua tese. Senão vejamos.
Assim, quando — e seria difícil fazê-lo mais habilmente — o Rui escreve:
Outro é o multiculturalismo a que chamarei “extenso”, e que é essencialmente cosmopolita. Trata-se da ideia de que cada cultura é recombinável com as outras, e depois declinada de forma diferente por cada indivíduo, o que faz dela potencialmente infinita. Neste sentido, é da natureza da cultura humana trazer em si todas as culturas possíveis. A nossa cultura depende do que fizermos dela, ao combinar identidades (na minha família havia comunistas católicos) ou inventá-las (um tio chateou-se com tanta briga e — história verdadeira — resmungou um dia “eu cá não sou protestante nem católico: sou alcoólico”). A interferência é inevitável e, se for para potenciar a liberdade de cada um recriar a sua cultura, desejável
— seria, no entanto, necessário explicitar que a atitude que o seu modelo de multiculturalismo procura promover e legitimar é justamente qualquer coisa que boa parte das culturas historicamente consumadas excluem da ordem se significações e instituições que investem e das quais se reclamam: qualquer coisa que, por outro lado, constitui um traço cultural distintivo, original e historicamente singular. Com efeito, ao longo da maior parte da história da humanidade, foi uma prática generalizada o recalcamento, ocultação ou censura da ideia — adiantada pelo Rui com invejável eficácia e em termos que evocam a poética de Borges — de que "é da natureza da cultura humana trazer em si todas as culturas possíveis". Ainda hoje, esta ideia é objecto de abominação e sinónimo de mal radical para bom número de "identidades culturais".
Com efeito, a coexistência e potenciação recíproca de diversas línguas e culturas só pode corresponder a um projecto político de universalização de uma relação crítica de cada cultura com as suas próprias tradições ou "valores", que tem como condição necessária dessacralização, por cada tribo, dos seus próprios ídolos ou significações axiais. Por outras palavras, aquilo a que o Rui chama o "multiculturalismo 'extenso'", exige a destituição cultural e política universal, em todas as culturas e/ou identidades, da ideia de que a "nossa" cultura é a expressão e linguagem da vontade divina, da ordem natural ou de qualquer lei primeira e última da sociedade e da história e tida como fora do alcance destas.
Ou seja, dito de outra maneira ainda, o "multiculturalismo 'extenso'", no sentido que o Rui lhe dá, tem como condição necessária a universalidade da laicização e democratização radicais de cada cultura, tanto no plano interno como no das suas relações com as outras. E é por isso que, em suma, que, por muito que aprove a ideia de que "o antimulticulturalismo falhou", não tenho a certeza de que o termo "multiculturalismo 'extenso'" seja o mais adequado como expressão da universalização política e cultural da autonomia democrática que a proposta do Rui implica - e que é também a universalização da cidadania como identidade cultural comum: universalização, parafraseando Castoriadis, do projecto de sermos e/ou querermos ser, tanto ao nível colectivo como ao da instituição do indivíduo, aqueles que se dão as suas próprias instituições e leis, assumindo a responsabilidade de saberem que o fazem, livre mas falivelmente, por sua (nossa) conta e risco próprios.
19/08/11
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