A maioria da opinião publicada tem reagido aos amotinados de Londres ou condenando-os ou compreendendo-os. Mas e se os considerássemos simplesmente como nossos iguais?
Para atalhar caminho nomeemos como durões aqueles comentadores que disparam condenações a torto e a direito e moles os que apelam ao nosso esforço de compreensão.
Comecemos pelos durões. Pouco disponíveis para perder muito tempo a discutir as circunstâncias de vida dos amotinados, exigem que os castiguemos sem hesitações. Quem abrir as páginas dos jornais portugueses arrisca-se a ver uma pequena indústria de comentadores à procura da solução repressiva mais adequada para o problema dos amotinados, numa corrida desenfreada ao disparate em que há lugar para tudo, de soluções mais cruentas, como a que simplesmente propõe que atiremos os amotinados ao mar, até medidas reeducativas, como a proposta de um serviço comunitário obrigatório.
Em alternativa aos durões, temos - em menor número, por certo - os moles. Os moles condenam as acções dos amotinados, mas antes de mais apelam a que compreendamos o contexto social que terá determinado a sua insubordinação. Referem por exemplo a desordem económica criada pelo neoliberalismo, que seria propiciadora de desordens sociais como esta.
Entre durões e moles existem diferenças importantes.
Os moles tendem a considerar os amotinados como vítimas do mau funcionamento da sociedade, alertando-nos para a importância de serem apuradas as razões sociológicas do motim e as circunstâncias económico-sociais que o inspiraram.
Já os durões criticam o que consideram ser uma sobrevalorização do peso das circunstâncias a montante do motim. Afirmam que tal sobrevalorização acaba por fomentar uma cultura de desresponsabilização que se torna, ela própria, propiciadora de novos motins. Defendem por isso punições severas como maneira de sobreavisar todos - - parece que já foram menos... - os que ponderem a hipótese de um dia tomar parte num motim.
Em suma, os moles preferem seguir o método preventivo da vacinação, os durões recorrem ao chicote da lei e das balas.
Apesar das diferenças entre uns e outros, há, contudo, algo que os aproxima: ambos entendem os amotinados como um objecto a quem o Estado deve um tratamento. Os durões julgam que os amotinados devem ser entregues aos cuidados da lei; os moles, à guarda de um médico. Ambos recusam considerar os amotinados enquanto actores políticos.
Os durões consideram os amotinados enquanto actores do foro criminal, por isso não lhes reconhecendo estatuto político. No fundo, os durões pressupõem que crime é contrário de política, desta forma fazendo por ignorar o seguinte: poucas coisas podem ser mais políticas do que a definição do que é ou não crime. Por exemplo, alguns dos crimes por que os amotinados têm sido considerados responsáveis, como o desrespeito pela propriedade privada e pela autoridade policial, interpelam directamente assuntos fundamentais do pensamento político, do tema da Razão de Estado aos debates da Economia Política.
Os moles, por sua vez, igualmente desconsideram politicamente os amotinados. É certo que para os moles o motim tem uma dimensão política, mas tem-na por ser efeito de políticas governativas que determinam as condições de vida dos amotinados e não tanto por exprimir uma vontade de poder da parte dos amotinados. Os gestos dos amotinados serão o simples reflexo espasmódico das suas condições de vida.
Da nossa parte, trata-se antes de aprender a considerar os amotinados como membros de uma comunidade política global em que ninguém está acima ou abaixo de outrem; numa palavra, tomar os amotinados como iguais. A um motim não se reage nem com a prepotência do polícia diante do suspeito nem com a condescendência do médico face ao inimputável. Mas com a vontade política de tomar partido, reconhecendo que os amotinados são animados por uma vontade autónoma de poder. Que esta vontade por vezes recorra aos próprios métodos autoritários do Estado que elegeu como inimigo e em outras ocasiões subverta as próprias formas e métodos do poder inimigo, tal apenas mostra que não chega lutar contra quem está nos lugares do poder, mas também contra os princípios que instituem esses lugares.
4 comentários:
Uma crónica preguiçosa, "estética", à Zé Neves: com efeito, não há só esses dois "partidos", os durões e os moles.
O " terror " à solta da/na E.S.B.A.L., ao Chiado, continua a ampliar a sua saga repressiva, qual regente escolar de maus vícios; e, sobretudo, tenta montar uma operação dantesca, de Júlio Dantas, claro. Uma geração que " pariu " um C.V., pariu, efectivamente, abaixo de zéro! E a silly season acabou hoje: novo Suplemento Literário do " Le Monde " apareceu hoje. Niet
Indómito camarda Zé Neves,
não estar mais entranhadamente de acordo contigo quando recusas a exterioridade da observação que esquece, à partida, que é como iguais - e não como modelos ou vanguarda a seguir, nem como menores a enquadrar pelo "partido revolucionário" ou por uma direcção cientificamente esclarecida - que devemos encarar os actores dos motins.
Mas creio que, apesar da ressalva final justíssima - "não chega lutar contra quem está nos lugares do poder, mas também contra os princípios que instituem esses lugares" -, te referes em termos pelo menos equívocos a uma "vontade autónoma de poder" entre os amotinados. Em rigor, estes manifestaram — se é que chegaram a fazê-lo — uma vontade de substituir ou mudar os que ocupam o lugar do poder, mas de maneira nenhuma a de transformar esse lugar, generalizando e tornando comum, entre iguais, o exercício do poder - em termos alternativos aos da sua instituição classista e hierárquica governante. Mais ainda, algumas das formas de luta que adoptaram fizeram com que o regime da sua acção fosse precisamente o oposto de uma "vontade política autónoma", pelo menos se por esta entendermos uma vontade - necessariamente democrática - de autonomia. Ora, como sabes tão bem como eu, mais ainda do que os inimigos que declara, é o regime da acção de um movimento que nos permite ajuizar do regime de poder visado e antecipado por esse movimento… Daí que, sublinhando a tua já citada conclusão, teria gostado de te ver dares-lhe um pouco mais de peso e atenção crítica. Pois, além da dureza de uns e da moleza de outros, a sobreinterpretação pseudo-revolucionária dos acontecimentos é uma perspectiva tão funesta e anti-igualitária como as duas outras que denuncias. Porque, até nos casos em que é bem intencionada a sobreinterpretação pseudo-revolucionária traduz, como escreve o nosso leal camarada Luis Rainha, "A miopia que (…) impede de ver as diferenças entre um arrastão e uma revolução" - miopia que "tem as suas raízes, compreensíveis, no desespero. E tem o seu emblema no aforismo de Brecht acerca da violência das margens que oprimem o rio – qualquer inundação, mesmo que nos afogue, parece promissora" (Cf. http://viasfacto.blogspot.com/2011/08/um-pais-soluvel.html). Ora, convém não esquecer que foi uma "miopia" semelhante a que, no passado, os movimentos fascistas exploraram e alimentaram, ateando "rebeliões" que reforçavam a lógica da mesma dominação hierárquica cujos efeitos eram a causa da "revolta".
Abraço grande
miguel (sp)
Duros,moles e, agora, líquidos. Cristalinos.
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