16/03/11

Reformulação

No seu texto de título "Os reformulocionários", o Rui Tavares escreve a dada altura: "O reformulocionário pretende baralhar e dar de forma mais justa, não tomar conta do jogo mas alterar-lhe as regras, ou seja: mudar a fórmula. E como fazê-lo? Fazendo. Mais do que nas táticas, os reformulocionários estão essencialmente interessados nos princípios. Não sabemos para onde vamos, mas queremos dar o primeiro passo de forma certa — e depois o segundo. A reflexão de base é esta: não é possível querer uma transformação democrática se for feita de forma dirigista (...)"

Posteriormente, no seu texto intitulado "Só mais uma coisinha", o Rui Tavares defende que "o que faria agora um movimento reformulocionário, se existisse", seria "reinventar laços de solidariedade entre trabalhadores, entre gerações e pessoas diferentes", nomeadamente através da criação de redes de ajuda mútua, ou seja mutualistas.
 

Nestes textos, o Rui Tavares evita abordar a questão do exercício do Poder. Fica a sensação de que acha que é possível a uma parte da sociedade construir uma Anarquia, assente em redes mutualistas, mesmo em presença dum Estado, cuja sobrevivência exige o controlo sobre os direitos de propriedade. Mas tal não é possível. Infelizmente, o registo histórico demonstra que as oligarquias que controlam o Estado não hesitarão em utilizar os instrumentos que forem necessários para cercear quaisquer redes mutualistas que ponham em causa os seus direitos de propriedade, e a sua capacidade para arregimentar uma força de trabalho subserviente. A prova mais evidente é o continuado ataque aos sindicatos, um dos tipos mais básicos de organização mutualista. E convém lembrar que desde o séc. XIX, pelo menos, que esperamos pacientemente o desaparecimento do Estado, esvaziado nas suas funções por redes mutualistas em expansão constante. Mas, não aconteceu. Pelo contrário, o movimento mutualista e cooperativo sofreu uma continuada erosão durante todo o séc. XX, em particular na Europa. Pensar que agora é que vai ser, está para além do mero optimismo. Por outro lado, a ênfase no mutualismo como o melhor caminho para a emancipação acaba por reforçar a ideia, tão cara à Direita, de que se emancipa quem quer, e não quem pode, escondendo deste modo as relações de Poder existentes, e os obstáculos que levantam a essa emancipação.

Na minha opinião, "o que faria agora um movimento reformulocionário, se existisse", seria reformular os conceitos de legitimidade e decisão democrática. O meio e o fim é o mesmo: mais democracia. A sua concretização implica a criação de novas regras para o processo decisório. Mas não bastará aplicá-las ao próprio movimento. É preciso inseri-las onde farão toda a diferença: no seio do sistema político que gere o Estado. E para isso será necessário, de algum modo, "tomar conta do jogo". Tal pode acontecer obedecendo às regras do actual sistema político, mas duvido que as oligarquias dominantes aceitem passivamente algo que lhes retirará grande parte do Poder que possuem. Por outro lado, hoje em dia, a velocidade do processo politico, no sentido lato, é de tal ordem, que parece-me difícil construir um caminho provável para a implementação duma reformulação das regras da Democracia, dentro do actual sistema político. Acho que "o que faria agora um movimento reformulocionário, se existisse", seria pressionar, de modo convincente, o actual sistema político com a perspectiva duma revolução, caso não aceite a sua reforma. O mais provável seria então ocorrerem reformas insuficientes e pouco convictas, que estimulariam o processo de reformulação, acelerando-o ao ponto de se tornar uma revolução (ie. mudança de sistema político num curto intervalo de tempo). Se atentarem bem, é exactamente isto que aconteceu e continua a ocorrer no médio oriente: pressão para reformas, sob o risco de revolução; cada vez mais cedências do sistema político; crença crescente na possibilidade de mudança política; revolução. E como é que se pressiona, de modo convincente, o actual sistema político com a perspectiva duma revolução? Com manifestações, greves, bloqueios, desobediência civil. Há até um manual, escrito por Gene Sharp. Foi pensado para ajudar a transformar o sistema político em ditaduras clássicas, mas os princípios e métodos nele expostos são aplicáveis em qualquer sistema político assente na repressão da dissidência efectiva, ou seja na presença dum Estado.

E que reformulação dos conceitos de legitimidade e decisão democrática "faria agora um movimento reformulocionário, se existisse"? Hoje em dia, a esmagadora maioria das pessoas assume que democracia significa eleições, isto é, acredita que apenas através destas é possível assegurar que a vontade da maioria é tomada em conta no processo de decisão a nível governamental. No entanto, tal não é verdade. Basta lembrar que todo o tipo de organizações, desde o Estado, passando por partidos, meios de comunicação social e empresas, acreditam que através duma sondagem de opinião estatisticamente representativa é possível determinar a vontade da maioria dos constituintes duma dada população. Ou seja, acreditam que aqueles a quem é pedida a sua opinião efectivamente representam a população, muito mais vasta, em que se inserem. E os resultados, em geral, confirmam a veracidade de tal crença. Pelo contrário, é hoje óbvio que num sistema político onde as decisões são tomadas por representantes eleitos, em particular através de listas partidárias, a vontade da maioria não é frequentemente tida em conta. A lei de ferro da oligarquia, proposta pelo sociólogo Robert Michels, explica a origem da discrepância entre as intenções e resultados em tais sistemas políticos. Mas existe uma solução para este problema, e dá pelo nome Demarquia (em inglês: Demarchy), de modo a distinguir esta forma de organização política da democracia partidária, apesar de efectivamente constituir uma forma alternativa, e mais aprofundada, de Democracia. Resumidamente, assenta no princípio de que uma população é mais adequadamente representada por um grupo aleatoriamente seleccionado de entre os seus membros do que por um grupo de pessoas eleitas para o efeito. Em particular, no caso de sociedades grandes e complexas, onde os eleitores tendencialmente acham que o custo (em tempo e esforço) de escrutinarem detalhadamente os candidatos é demasiado grande, tendo em conta o poder efectivo dum único voto, e o processo de eleição é mediado por meios de comunicação parciais. A inserção de aleatoriedade no processo de selecção de representantes/legisladores pode ser mais ou menos extensa, podendo mesmo co-existir com a representação via partidos. Por exemplo, através da escolha aleatória de parte dos membros da assembleia legislativa, ou da criação duma espécie de senado constituído somente por cidadãos seleccionados de modo aleatório.

O paradigma ideológico em constituição assenta na exigência efectiva de participação no processo decisório. É isso que motiva os milhões de pessoas que se manifestam através das ferramentas colaborativas existentes na internet: elas querem participar, querem ser elas a decidir, ou pelo menos que as decisões sejam tomadas de acordo com a sua vontade. Parece-me assim que o que exigem acima de tudo é a criação de procedimentos que assegurem a efectiva democraticidade do sistema político. Esta exigência tem a capacidade de unir pessoas que se julgam distantes em termos ideológicos, como se viu nas discussões antes e depois da manifestação de 12 de Março, apesar da reformulação democrática do sistema político assentar antes de mais no princípio da igualdade, claramente mais valorizado à Esquerda.

6 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Grande post, Pedro.
Era a discussão deste tipo de questões que eu tinha justamente em vista.
Vamos esperar pela resposta, não só do Rui Tavares, como por outras achegas. E espero que seja desta que o debate avance.

Abraço para ti

miguel (sp)

Anónimo disse...

http://ait-sp.blogspot.com/2011/03/ait-sp-nos-protestos-de-12-de-marco.html

Anónimo disse...

era isto, desculpem http://ait-sp.blogspot.com/2011/03/assembleia-popular-sabado-19-de-marco.html

Niet disse...

Pedro Viana, olá: Já exprimi o que me sugere o texto do Rui Tavares.O seu tem uma inflexão táctica, uma manobra suave e erudita " ético-estéctica ",que se pode apreciar, mas que se posiciona/inclui na plataforma essencial esboçada pelo R.Tavares:manter intocável a lógica do " sistema " despótico e desigualitário que,não o podemos esquecer, é irrigada e sustentada pela estrutura da economia de mercado e pela pirâmede de classes e de aparelhos ideológicos-partidos, Igreja, Exército,etc- que nos asfixiam e sadicamente " dirigem ". A solução-milagre das agências " mutualistas " parece-me um tiro de pólvora seca, por isso. Se nos lembrarmos dos textos de operários anónimos ingleses de 1818 e 1820 que preconizavam as associações de produtores como substitutos do Estado, e que a sociedade não precisa de outra forma de governo senão o representado por essas próprias associações...Mas, tudo bem e continuemos o debate. E convém recordar estas palavras de Castoriadis sobre a grande e profunda Revolução Húngara de 1956: "Na Hungria, em 1956, ninguém " ensinou " o que quer que seja às pessoas;os intelectuais, os estudantes,os escritores,as pessoas de teatro colocaram-se em movimento, os operários constituiram os Conselhos nas fábricas. Todas estas formas não foram nem premeditadas,nem deduzidas de uma teoria qualquer; foram criadas pelas pessoas-na e pela luta ". Salut! Niet

rui tavares disse...

Caro Pedro,

Eis um excelente post, e que pena me dá ter hoje respondido às obsessões do Renato Teixeira em vez de vir aqui ter uma conversa a sério onde se pode discordar com gente que quer discutir. Deculpa e talvez amanhã. O tempo não nos deixa fazer o que a gente quer dele, é o que é.

Um abraço

Rui

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Rui,
podias ao menos deixar o link da tua resposta - mas faço-o eu aqui: http://ruitavares.net/textos/sobre-a-libia/

Abraço amigo

miguel (sp)