Desde Kantorowicz que conhecemos bem o significado da famosa exortação «Le Roi est mort, vive le Roi!» O Rei é muito mais do que um corpo; nele reside, enquanto respira, a Dignitas, a realeza eterna, a soberania que não conhece interregnos nem se sujeita às leis da morte. Um Rei morre, outro Rei dá o seu corpo ao trono. No final do século XV, o funeral de Carlos VIII já terminou com o regresso triunfal a Paris de uma sua efígie, representando precisamente a continuidade da Dignitas real.
A morte de Bin Laden parece investida, dir-se-ia de propósito, destes mesmos paramentos simbólicos. A exposição indigna do corpo (quem não se lembra do cadáver de Savimbi entregue às moscas e aos olhos dos incréus?) seria a estratégia óbvia para se reduzir a autoridade do inimigo morto à terrena auctoritas de que nos fala Agamben, o carisma finito, contingente e mortal. Mas o que o mundo recebeu foi apenas uma fotografia falsificada, uma efígie tosca e despida do poder de simulacro consensual das representações coalescentes com a realidade.
O corpo de Osama terá sido entregue ao mar, restando em milhões de ecrãs – e incontáveis imaginações – as imagens, o espírito do terrorista imparável, do jihadista com capacidades de camuflagem sobre-humanas, do símbolo esquivo e sempiterno. Multiplicando-se já as questões sem resposta à vista, que efeito terá este reconhecimento implícito da Dignitas de Bin Laden? Teremos mil candidatos a Rei, erguendo-se de madraçais, palácios sauditas, medinas esquálidas? Ou estaremos nos primeiros dias de um novo mito da Ascenção, em que a carne do soberano se dilui no ar, contaminando o mundo, infundindo nos seus súbditos um renovado alento para a luta?
Talvez ele já tivesse morrido há muito, talvez até de doença. E talvez os EUA tenham mesmo decidido agora que este papão já não prestava, como fizeram as FAPLA há uns anos, sendo hora de encenar a sua morte. Mas já deviam ter aprendido – com as asneiras dos romanos – que é má ideia perder os santos cadáveres dos reis inimigos.
03/05/11
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7 comentários:
Já pensou no potencial da coisa:
E não se arranja por aí um gajo de barbas, já morto há alguns anos, para Sócrates atirar ao mar, e dar-lhe uma ajuda a subir nas sondagens?
E dizia que era quem? O Adamastor?
Muito bem! E isto não é conspiração; é dúvida legítima.
Estas discussões bem humoradas escondem o que é importante: a existência de facto, e comprovada, da manipulação pelos serviços especializados dos (vários) governos de grupos contestatários, radicais e/ou armados. Evidentemente que não vale a pena falar das relações da CIA com partidos democrata-cristãos e socialistas e com o terrorismo de direita, de que muito já se falou em Itália e também em Portugal no pós-25 de Abril. As relações dos EUA com grupos fundamentalistas islâmicos, pelo menos no contexto da Guerra Fria, mas também para enfraquecer governos nacionalistas árabes, do Egipto ao Iraque e Argélia,já não são segredo. Que o Bin Laden teve relações com os americanos é público e assumido.
Finalmente o exercício do terrorismo pelos governos ocidentais, em particular pelos EUA, mas também pela França, Inglaterra, Espanha, Israel, é algo que não é segredo graças ao que se pode saber pela documentação desclassificada, pelos ex-agentes, pelas operações fracassadas etc.
Não é pois com humor e sarcasmo que estes assuntos se discutem, pelo pelos para os que são críticos do Estado e do Capitalismo.
Os países ingerem nos assuntos uns dos outros, caro anónimo? Estou chocado. Espero é que essa sua clareza de vistas não se esgote nos "governos ocidentais" – ou a URSS não o fazia? E a China não faz tudo isso ainda hoje, em África, vendendo armas às personagens menos potáveis do continente?
A URSS como já deve saber finou-se, e dela sabemos (quase) tudo...Pois até os arquivos andaram a ser vendidos ao quilo!
Da China não duvido de muita coisa, embora não me conste que ande a dar golpes de estado e a fazer atentados e assassinatos pelo mundo fora...
Do que se trata é do tema que estava a ser debatido. Pelos visto a «superioridade moral» do Ocidente é algo que é dado por adquirido por muita gente da dita esquerda. Ponto final.
Parvoíce. Ponto.
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