Quem lê
Vias de facto acompanha provavelmente a
situação social e política no Brasil – e os debates que ela suscita – através
da leitura de Passa Palavra. O texto «A
revolta e o seu duplo» faz parte de um conjunto que constitui o número de Agosto
de uma revista brasileira, Sinal de menos,
dedicado na sua totalidade ao movimento de Junho de 2013.
Paulo Marques pretende demonstrar que o que o que
ocorre no Brasil não é uma luta, mas várias lutas, algumas com conteúdos de
classe e anticapitalistas, mas outras, feitas pela classe média, expressam
conteúdos conservadores, quando não fascistas. Noutros termos, este movimento é
uma contradição em processo !
De assinalar, também neste mesmo número de « Sinal
de menos », dois artigos. Resistência
e o direito à cidade, de Daniel Cunha que descreve o movimento do Passe livre e do Bloco de luta pelo Transporte Público em Porto Alegre, « uma
das melhores concretizações dos protestos de Junho », « mostrando que
ele se imbrica em um mosaico mais amplo de lutas urbanas pelo direito à cidade
que questiona o modelo urbanístico e o consenso político estabelecidos. »
A mobilidade
do inferno proletário : a vida nos trens da hiperperiferia de São Paulo, de Claudio R. Duarte, « narra a vida do
proletariado urbano usurpada pelo tempo de transporte nos trens suburbanos da
Grande São Paulo. Ele apresenta um pouco do mal-estar social geral que veio a
furo com as Jornadas de Junho. »
A revolta e seu duplo
Entre
a revolta e o espetáculo
Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.
Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.
Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.
- Rumi (1207-1273).
1) Prognósticos retardados de uma
crise.
Em 2008, durante um processo de formações políticas e
debates efetuado em sindicatos, arriscamos proceder a algumas previsões um
tanto imprevisíveis e vagas sobre a ulterior evolução nacional de um processo
de crise mundial que mal se deflagrava. Ante a análise do arrebentamento da
bolha imensa de capital fictício da economia norte-americana, que desnudaria a
crise estrutural do processo de valorização historicamente estreitado pelo
aumento do trabalho morto em relação ao trabalho vivo, nós prognosticávamos como
possibilidades reais postas aos movimentos sociais o próprio conjunto de
respostas capitalistas à crise: a tentativa de redução do valor da força de
trabalho; a inflação enquanto mecanismo intensificador da exploração e redução
indireta dos salários; a instituição e intensificação de uma acumulação predatória
com padrões de acumulação primitiva através de guerras, incluindo uma molecular
guerra civil urbana generalizada com despejos de comunidades; a intensificação da
especulação imobiliária e de um crescimento econômico guindado a créditos e
construção civil financiada a investimentos de capital fictício; aumentos dos preços de alimentos, energia, transportes e aluguéis;
aumento da repressão e contrôle social com
uma militarização progressiva da sociedade e um fascismo difuso; aumento da violência e formas de barbárie social de desintegração,
incluindo escaladas das violências
de gênero e racistas; a criminalização dos movimentos sociais e do protesto; a precarização maior das relações de trabalho; e a possível
fuga da consciência social de grupos
para discursos moralistas e salvacionistas de seitas religiosas ou a salvadores políticos fascistóides. Abria-se a Caixa de Pandora.1
O que não podíamos prever é que, com a crise, gerou-se um
momento de fuga dos capitais dos centros afetados para as periferias
capitalistas, intensificando o crescimento dos “BRICs” – o mecanismo auxiliar da mais-valia absoluta como válvula de escape sistêmica. No
caso brasileiro, após uma intensa onda de lutas contra as reformas
previdenciárias e de precarização trabalhista impostas pelo governo do Partido
dos Trabalhadores em 2007, ao ano de 2008 sucedeu o refluxo e intensa
desmobilização das lutas sociais, gerada pelo aumento do consumo a crédito e do
emprego precário, do assistencialismo social e certa ascensão de camadas mais
baixas da classe trabalhadora (paralela à precarização da classe média,
constituindo um nivelamento social “por baixo”). Um curto surto de crescimento
econômico no Brasil preencheu os poros de tempo social livre dos indivíduos com
mais trabalho e tempos gastos com estudo e qualificação, gerando uma imensa
fragmentação social dos coletivos e refluxo das lutas sociais. Reuniões,
assembléias e até saraus passaram a se esvaziar, enquanto todos estavam a
correr atrás de novos trabalhos e sobrevivência, ou mais estudo e qualificação.
O crescimento econômico gerado pela gestão de crise da tecnocracia petista
desmobilizou as lutas sociais e retirou o povo das ruas, além de aniquilar as
oposições sindicais e greves. Paralelamente, inchavam os cargos de
sindicalistas no aparelho de estado; as ações e compras de fundos de pensão por
sindicatos; a cooptação de lideranças de movimentos sociais; a formação de
estratos de novos ricos de uma tecnocracia de “esquerda” rival da anterior
tecnocracia tucana pela gestão do mesmo; a cooptação e burocratização de
ativistas sociais e culturais em políticas de integração capitalística da arte
e cultura via financiamento estatal. O “Espetáculo do Crescimento” trouxe o
marasmo social.
[-] www.sinaldemenos.org
2) O Crescimento do Espetáculo.
Porém, este surto de crescimento era efêmero, fenômeno de
crise global e da fuga dos capitais para locais de predomínio da modalidade de
exploração de mais-valia absoluta e trabalho precário, e guindado a crédito.
Não possuía qualquer base estrutural sólida, apesar dos pesados investimentos
do governo federal em obras de infraestrutura do PAC e IIRSA2, e o alarde sobre a descoberta de jazidas de petróleo,
configurando um desenvolvimentismo a crédito e um incipiente projeto de
imperialismo brasileiro sobre a América do Sul e África Ocidental guindado a
capitais de empreiteiras e apoio de figuras como Eike Batista e Edir Macedo. O
crescimento do espetáculo teve vida curta, e gerou considerável intensificação
da exploração do trabalho e da violência contra as periferias e povos
indígenas. Enfim, a crise chegaria ao Brasil.
Com a eclosão e rápida disseminação do atual ciclo mundial
de lutas sociais pela Europa, Mundo Árabe, Estados Unidos, Índia, Indonésia e
muitos outros países, esta onda de lutas e suas formas organizativas peculiares
haveriam de afinal chegar às terras tupiniquins - embora em formas nada
autóctones, mas muito globalizadas e replenas de contradições.
Com o progressivo fim do crescimento, apenas no primeiro
semestre de 2013, a
Bovespa teve perdas variantes de 22
a 25%, e analistas apontavam senão uma estagnação, um
possível risco de crescimento negativo - o "pibinho" de Mantega principiava
a derreter. A inflação, bem mascarada pela imprensa, chega afinal aos dois
dígitos; o preço do pão chega ao absurdo de entre cinco e seis reais o quilo, a
batata de quatro a cinco reais o quilo, além do preço de ovos e outros gêneros
alimentares populares como tomates irem às nuvens. E sobreveio então a onda de
aumento de preços de transportes.
Como prevíamos, o valor da força de trabalho começou a ser
atacado e devorado por uma inflação geral, que está no estopim das revoltas
sociais – fato também quase nunca mencionado pela imprensa. Além disso, as
obras da Copa do Mundo fizeram extrapolar os despejos de comunidades e a
violência policial contra as favelas; as obras desenvolvimentistas do PAC e
IIRSA deflagraram um verdadeiro terrorismo do
desmatamento predatório e tomada de terras indígenas por
barragens – além do ataque dos fazendeiros e do agronegócio, tão fomentado pelo
governo federal, às terras indígenas. A onda de lutas sociais autônomas já
começa subterraneamente em fins de 2010 e em 2011, com as imensas greves selvagens
nas obras do PAC, a começar pela hidroelétrica de Jirau, parando mais de
oitenta mil trabalhadores, forçados a se autoorganizar às margens de um
sindicalismo governista e pelego que corroborava a exploração – iniciava-se uma
série de greves que se extende até o presente momento. Houve relatados e mal
esclarecidos desaparecimentos, prisões e torturas de grevistas em áreas
amazônicas de canteiros de obras. Sindicalistas iam de carro oficial pedir aos trabalhadores
que não parassem as obras do PAC. Tais obras estavam sendo guindadas a trabalho
semi-escravo, com direito a falta de banheiros e surtos de malária, além de verdadeiras
prisões de exploração de mulheres em prostituição ao redor dos canteiros.
Além do mais, uma “primavera indígena” de lutas, também
pouco midiatizada, se sucede, desde as lutas no sul da Bahia e os episódios
quase palmarianos de cacique Babau3 (que foi
preso), além da tragédia dos assassinatos e suicídios de índios guaranikaiowá (curiosamente,
muitas vezes “atropelados” em estradas de terra) em Mato Grosso do Sul.
Além disso, greves também ocorreram nas obras da Copa, em diversos estádios –
por vezes motivada até por comida podre4 servida
aos operários. Uma característica fundamental de todas estas lutas, muito pouco
faladas pela imprensa golpista, e ainda menos pela imprensa governista, é sua
acentuada autonomia de organização em relação aos sindicatos burocráticos e
partidos políticos institucionais. Jornalistas enfocam apenas as
reivindicações, e raras menções são feitas ao fato de os trabalhadores estarem
a se organizar à margem do sindicalismo oficial – como ocorre também com greves
de motoristas e cobradores de ônibus em muitas cidades. Ao ataque ao valor da
força de trabalho, sucedeu a resposta do proletariado.5
3) A eclosão da Onda: a “Revolta do
Vinagre”.
Após um processo nacional de abusivos aumentos nos preços
de transportes, a luta social em Porto Alegre foi de forma inédita vitoriosa em
reduzir o valor da tarifa de ônibus, deflagrando uma onda nacional de lutas
sobre o preço das tarifas de ônibus e metrô que se espalhou pelo país. Não se
trata mais do que da luta sobre o valor da força de trabalho, achatado pelo
aumento dos preços, e um processo que faz lembrar as lutas italianas de
auto-redução de preços e tarifas dos anos 60-70.
Após uma jornada de protestos do Movimento Passe Livre com uma frente de lutas em São Paulo, seguida por
uma brutal repressão que culminou no trágico dia 13 de Junho, no qual
manifestantes eram detidos apenas por portar garrafas de vinagre, a onda de
revolta pareceu ter seu estopim. Uma radicalização generalizada tomou conta da
capital paulista, da cidade do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, Distrito
Federal, Salvador, Belém e outras cidades, culminando em violentos
enfrentamentos com a polícia e ataques diretos dos manifestantes a prédios
públicos, empresas, bancos e ônibus. Foi quando, subitamente, os protestos,
principalmente em São Paulo,
após uma comoção gerada por uma repressão violenta que culminou em dezenas de
detenções e feridos, obtiveram uma imensa adesão e milhões de pessoas saíram às
ruas em todo o país. Porém, alguma mutação um tanto estranha estava em curso.
4) Quando a Revolta vai para o
Vinagre. Surge a Revolta das Coxinhas. De
68
a 64.
Originalmente, manifestantes empregavam a expressão
“coxinha” para se referir a fardados. Porém, os desdobramentos do processo de
luta produziram um efeito curioso: que coxinha passasse a ser um designativo
irônico e pejorativo para a classe média conservadora em geral.
A classe média, uma esfinge sociológica, a nosso ver é uma
categoria um tanto polêmica e de existência fundamentalmente simbólica e
ideológica. Se definimos classes como funções sociais coletivas em posições
ocupadas dentro do processo de produção (definição de Marx, e que não
necessariamente implica apenas estatutos jurídicos de propriedade, pois a
apropriação também pode se dar por relações informais de contrôle burocrático),
teríamos a rigor dois campos – capitalistas (burguesias e tecnocracias gestoriais)
e trabalhadores. Já a definição jornalística do senso comum e de algumas teorias
sociológicas define as classes por níveis de renda e consumo, pela superfície
do mercado, fetichizando as relações sociais. A chamada classe média seria, em
nosso entendimento, uma zona de transição e indiferenciação entre o alto
proletariado (setor da força de trabalho mais qualificado, exercedor de
trabalho mais complexo, melhor remunerado, com maior consumo e nível de
formação e sob o predomínio do regime de exploração da mais-valia relativa) e o
baixo gestorialato da hierarquia administrativa empresarial. Incluem-se aí
pequenos proprietários6 (pequena burguesia, e comerciantes),
além de profissionais liberais e funcionários públicos. Entretanto, é preciso
frisar que cada vez mais os pequenos proprietários estão sob os ditames de produtividade
das grandes cadeias às quais sua atividade se integra; e que de forma idêntica
as profissões liberais têm se proletarizado consideravelmente – como podemos ver
nas firmas de advogados, médicos sob estruturas de hospitais privados e planos
de saúde, etc. O funcionalismo público, em boa parte também sofre
proletarização, é explorado pelo estado enquanto capitalista coletivo, e muitas
de suas funções referem-se à manutenção das condições gerais de produção do
capital, estando assim inseridas no trabalhador social agregado – é o caso dos
professores, que produzem futuros trabalhadores. A classe média, entretanto,
ideologicamente, se não é uma classe capitalista, tampouco se reconhece como
classe trabalhadora, portando a ideologia do ressentimento e da ascensão social
através do estudo e crescimento profissional. Esta é uma das maiores fraturas
no interior da classe trabalhadora – a saber, entre os trabalhadores do setor
de predomínio da mais-valia relativa e o campo da mais-valia absoluta
(precários, exército de reserva).
Com a crise e arrocho do valor da força de trabalho
através de impostos e inflação, especialmente aumento dos preços dos planos de
saúde, uma classe média cada vez mais proletarizada e achatada reagiu à sua maneira
peculiar. Saiu em massa às ruas, de verde e amarelo, em protestos com moldes
conservadores concentrados no “combate à corrupção”, algumas reivindicações
acerca de serviços públicos (especialmente de saúde e educação, uma vez que o
seu rebaixamento social frequentemente leva a depender do SUS e colocar filhos
cada vez mais em escolas públicas), e não faltando mesmo alguns grupos com demandas
de extrema-direita, como a redução de idade penal, pena de morte, contra o
aborto, e mesmo grupelhos fascistas defendendo a intervenção militar. Criou-se
um mito de que o judiciário (que não é eleito e é um dos poderes mais
conservadores, elitistas e patrimonialistas) deveria usurpar de forma golpista
os poderes democraticamente eleitos – o que já vinha acontecendo desde o Caso
Battisti, além dos grampos telefônicos, criminalização dos movimentos sociais promovida
pelo Ministério Público e investigações arbitrárias (e sua intervenção no caso Mensalão
acompanhada de sua neutralidade em relação a corrupções similares ligadas ao
PSDB). Chegava-se a propagar pelo facebook fotografias
comparando Joaquim Barbosa com Batman, e
campanhas exigindo a renúncia de Dilma (mesmo sem acusação nenhuma contra ela),
Temer, dos presidentes do congresso e senado. Além disso, a recusa dos partidos
políticos vista nestes protestos verde e amarelos se dava através de um
nacionalismo que misturava da (mais replena de boas intenções) ingenuidade e
despolitização moralista ao grotesco e truculento antiesquerdismo; assim, os
protestos eram forrados de verde e amarelo, palavras de ordem que diziam que um
suposto gigante teria acordado, que “o povo acordou”, “sou brasileiro com muito
orgulho”, “vem pra rua” e etc. O curioso é esta reação à redução do valor da
força de trabalho e à crise, ocorrendo como parte de uma onda mundial de lutas
num contexto internacionalista, se vestir de discursos nacionalistas e mesmo
chauvinistas: “primeiro temos que consertar nosso jardim”; “dane-se a Turquia,
eu quero saber é do Brasil” - como se as ondas atuais de luta não tivessem em
comum uma reação generalizada da classe trabalhadora mundial aos ataques
capitalistas que sofre como consequência do processo de crise do sistema
produtor de mercadorias. A propósito, a comum fala da classe média acerca de
consertar o jardim lembra a simpática figura do jardineiro do filme Muito Além do Jardim, interpretada por Peter Selers7. A classe média assustada com a proletarização saiu às
ruas, mas suas demandas, ora oscilavam entre o pedido por serviços públicos,
ora a tons fascistoides. O discurso do combate à corrupção, da forma como é
veiculado (e, diga-se de passagem, foi uma cultura a qual o PT contribuiu
muito, na medida em que, nos anos 90, trocou o discurso da luta de classes pelo
da moralização da política), desvinculado da perspectiva classista, se
transforma facilmente em discurso fascista e mesmo anticomunista. Ideólogos da direita
raivosa, como Reinaldo Azevedo, a Revista Veja, Olavo de Carvalho (este último com
assustador numero de adeptos), Arnaldo Jabor, José Nêumane Pinto e outros (até
a famosa Rachel Sherazade, cujos comentários em nada lembram a personagem de
Mil e Uma Noites), fazem discursos que associam a corrupção com uma esfera
pública expandida (e, implicitamente, apregoam o privatismo dos serviços
sociais e públicos, contra o “desperdício de dinheiro” do “comunismo” do
estado. Tudo se reduz a “má administração”.). O discurso do combate à corrupção
sob este viés moralizante praticamente confunde corrupção com comunismo – como
se o PT, mais tecnocrático e capitalista que nunca, ainda tivesse alguma coisa
de socialista. Assim, uma revoada conservadora tomou conta da Avenida Paulista,
e não faltaram agressões violentas a militantes de partidos de esquerda, desde
os pelegos governistas, até radicais como PSTU, oposicionistas como PSOL, fora
a militantes de movimentos como a Uneafro e mesmo anarquistas. Vários
militantes de esquerda foram internados e alguns em estado grave após serem
espancados simplesmente por portar bandeiras – vários deles do PSTU. Aos gritos
de “fora partido!”, se legitimava uma confusão política
entre a justa recusa do aparelhamento dos movimentos sociais pelos grupos
políticos partidários e posições fascistas de antiesquerdismo e anticomunismo
(pois os ataques eram a tudo que lembrasse a cor vermelha – houve casos de
pessoas que foram agredidas até por usar roupa vermelha inadvertidamente). Um
bloco de anarquistas atravessou heroicamente marchando de braços dados em meio
ao protesto nacionalista, levando pontapés, mas defendendo o anti-nacionalismo
e cantando suas palavras de ordem, e saiu ileso na outra ponta da Avenida
Paulista. A “família pobre” dos militantes libertários em meio a aquele
protesto da classe média talvez tenha gerado perplexidade.
O fato é que foi amplamente divulgado a infiltração de
grupos de extrema direita (integralistas, neonazistas, carecas, e mesmo
juventudes do PSDB e DEM à paisana) para incitar agressões, mesmo portando
facas, soco inglês e tacos – e se vitimizando quando levavam alguma bandeirada.
Houve uma clara tentativa de uma extremadireita, aproveitando-se de certas
mentalidades conservadoras da classe média despolitizada, apropriar-se dos
protestos.
A esquerda ficou extremamente assustada, e chegou a se
falar, em debates, sobre a possível atuação de fundações americanas como a
CANVAS8 para tentar se apropriar da onda de lutas e desestabilizar
o governo – fora que as demandas colocadas na internet pelas páginas mais
populares do facebook eram marcadamente conservadoras – as
próprias 5 pautas dos Anonymous fizeram
muitos, perplexos, questionarem se se tratava de fato do verdadeiro grupo Anonymous. O MPL declarou não fazer mais mobilizações, assustado,
mas depois voltou atrás. Assim, um processo de lutas sociais que se pautava em
questões concretas – custo de vida, preços de tarifas, hospitais, escolas –
sofria seu desvio politicista para demandas difusas e abstratas, como a luta contra
a PEC 37 (conflito acerca justamente da judicialização da política).
Após uma enquete sobre os protestos que surpreendeu
Datena, a própria grande mídia começou a falar muito bem dos protestos (em sua
versão de verde e amarelo, obviamente), e a própria FIESP colocava a bandeira
nacional sobre suas paredes, enquanto empresas dispensavam seus empregados e davam
bandeiras brasileiras para irem aos protestos. Até as vuvuzelas eras
ressuscitadas naquele alvissareiro momento da política nacional.
Assim, a “Revolta do Vinagre” de fato parecia estar “indo
para o vinagre”, e se ensaiava uma revolta do Espetáculo, com apóio da Rede Globo,
Veja, grande mídia e até de corruptos conhecidos como Renan Calheiros e Collor
– o que empresta um tom
hilário a tudo. A classe média ensandecida em uma barafunda
patriótica fazia assim sua “revolta dentro da ordem”, sentando no chão para
“entregar os vândalos” e gritando “sem violência” aos quatro ventos. Não foram
raros os casos de os próprios manifestantes imobilizarem supostos “vândalos” e
os entregarem à polícia, ou os filmarem e delatarem. Era a “Revolta das Coxinhas”, a “coxice” conservadora tomando conta
das ruas. Pelo menos era o que pela grande mídia passava, embora esta não fosse
a realidade nas periferias, nem no Nordeste, Belo Horizonte, Salvador, Porto
Alegre e muitos lugares mais. A patriotada ao melhor estilo de 1932 na Paulista
era exibida como sendo a regra geral; e mesmo revistas conservadoras e
reacionárias como a Veja produziam novos heróis, de classe média e de direita.
Era a revolta da classe média indignada por ter de pagar FGTS para suas
empregadas – pobres, muitas vezes afrodescendentes, e que não iam aos
protestos. Refundaram-se mesmo grupos como a Organização de Combate à
Corrupção, Comando de Caça a Corruptos, Movimento Contra a Corrupção, União
Contra a Corrupção, cujos fins de sigla sempre compunham o “CC”, emprestando um
ar de refundação do Comando de Caça a Comunistas, sob novo nome, uma vez que
hoje “comunismo” (e esquerdismo) são sinônimos de corrupção no discurso destes
grupos.Mas esta apropriação fracassou. Convocou-se pelo Facebook uma pseudo-greve geral para Primeiro de Julho, à qual
pateticamente ninguém aderiu. Não era incomum se entrar em um trem e ouvir
alguém a dizer: “ei, por acaso você ouviu falar de uma tal de greve?” Líderes
fascistóides convocaram para 10 de Julho um protesto pedindo uma “intervenção
militar”, mas não reuniram sequer 30 pessoas na Cinelândia do Rio, nem oitenta
na Avenida Paulista, em São
Paulo – e ainda encontraram outras manifestações nas ruas e
foram ridicularizados. O assustador Gigante Egoísta9 e fascista parecia estar ficando de novo com sono, e a
classe média, orgulhosa de ter cumprido com seu dever (“avante brasileiros,
sempre avante”), guardava suas mascaras de “V de Vingança” (fabricadas com mão
de obra semiescrava em fabriquetas miseráveis) e voltava para casa, para curtir
posts conservadores e moralistas no facebook produzidos pelos diversos grupos publicitários
profissionais posicionados em pontos nodais da rede social não tão horizontal
assim. Não era bem o movimento popular, nem revolucionários heróicos, mas o
próprio Facebook e a inércia da passividade que provocaram a “revoada das
coxinhas verdes”. Guy Fawkes se retorceria na tumba se
soubesse.
Durante este tempo, talvez tentando-se imitar a derrubada
de Allende, ensaiou-se um lockout que também
não deu certo, no qual empresários de transportes fizeram caminhoneiros
paralisar estradas, culminando no assassinato de um trabalhador autônomo que
furou o bloqueio. E a classe média seguia adiante, pedindo pelo facebook a
renúncia de Dilma (mas por qual acusação até hoje não se sabe).
5) Depois da patriotada, a vez da pelegada.
As forças de esquerda (incluindo as que como tal são
conhecidas), assustadas com a “patriotada”, conseguiram o feito inédito de se
unirem (fora da cadeia, único lugar onde as esquerdas sempre se uniram na
história) em mais de 70 organizações para convocar um dia nacional de lutas
para 11 de Julho. Da pelegada governista da CUT, Força Sindical, CTB (ligada ao
PC do B), UGT (ligada ao PSD de Kassab), UNE; aos oposicionistas de esquerda
CSP-Conlutas e Intersindical, junto ao MTST, MPL, MST (o último fragmentado, em
parte governista, em parte oposicionista, em parte não se sabe mais) e muitos
grupos, incluindo anarquistas e coletivos independentes, se tirou uma pauta comum
de protesto. Porém, no dia, as centrais governistas, além de “darem para trás”,
não trouxeram trabalhadores às ruas, mas pagavam dinheiro para pessoas engrossarem
pequenos volumes e segurarem balões. Ações radicalizadas e populares só ocorreram
nas periferias de São Paulo, com o MPL, MTST, Rede Extremo Sul, e outros movimentos
sociais; enquanto isso, a polícia invadia a sede da Federação Anarquista Gaúcha
e confiscava seus livros e supostos “materiais para fazer molotovs”.
Ficou evidente a total perda de credibilidade e base das
centrais sindicais, que são verdadeiras estruturas empresariais gigantescas,
mas sem trabalhadores e sem trabalho de base. Assim, fracassava a tentativa de
apropriação das lutas também pela esquerda institucional dos partidos e sindicatos
burocráticos. Após isso, a autonomia dos movimentos iria se reforçar ainda
mais. Com o adormecimento do gigante, começaram as ocupações de câmaras e
assembléias legislativas – em
Porto Alegre, Belo Horizonte, São José dos Campos, fora
muitas cidades mais. Surgiam organismos populares horizontais e autônomos de
ocupação de prédios administrativos públicos, algo muito pouco noticiado pela
mídia – e que começaram a formular projetos de leis populares.
Igualmente, a CSP-Conlutas e Intersindical (única central
não institucionalizada e não aparelhada partidariamente) conseguiram fazer
diversas paralisações; movimentos sociais bloqueavam rodovias por todo o país,
e em revoltas comunitárias pedágios chegaram a ser incendiados; e além disso,
até reivindicações como passarelas em estradas eram colocadas a público pela
primeira vez, embora sempre existissem. Assim, a classe trabalhadora, de forma
não-midiática, e autônoma, coloca sua multiplicidade de demandas concretas, em
oposição aos programas abstratos e difusos dos candidatos a futuros gestores da
direita fascistóide e da pseudo-esquerda governista e pelega.
Assim, fracassaram as tentativas de apropriação do
movimento pelos grupos da direita conservadora, bem como da ala governista. A
ala conservadora concentrou seus ataques ao governo e a denunciar os “vândalos”
– uma quebradeira em Leblon era mais escandalosa do que a chacina de 14 pobres
no Complexo da Maré e o desaparecimento de Amarildo, um operário. A
pseudo-esquerda vitimizava-se alegando que todo e qualquer protesto era
golpista, sem distinguir entre as revoltas sociais de base e as patriotadas de
classe média. Chegou-se ao cúmulo de militantes do PC do B espancarem anarquistas
no Rio de Janeiro e depois o Partido declarar apoio público a Cabral, no momento
em que ele propunha leis que iriam perseguir protestos sociais e violar o
sigilo de telefones e internet de ativistas. Mas o movimento social sofre,
neste momento, mais uma mutação, com um importante acúmulo qualitativo,
especialmente no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no qual a ação do Bloco de Luta
pelo Transporte Público
conseguiu forçar o governador petista Tarso Genro a se
desculpar com a Federação Anarquista Gaúcha (FAG) – embora não tenha devolvido
os livros. Um outro fato histórico a ser considerado – pela primeira vez em
talvez setenta anos, os jornais voltavam a falar em anarquismo e anarquistas –
e é inegável que organizações autônomas e anticapitalistas como o MPL e a FAG
tiveram um papel crucial de articuladores de lutas sociais, configurando um
extravasamento do movimento social
em relação ao controle e aparelhamento de partidos
políticos e burocracias sindicais inédito e histórico em nosso país.
6) Revoltas do individualismo encapsulado. Curtir ou
não curtir: eis a
questão. Compartilhar? Apenas pelo Facebook!
O antipartidarismo presente no frisson verde e amarelo, de
certa forma, expressa a condição social do individualismo extremado. O que saía
às ruas não eram coletividades organizadas, mas mônadas egoísticas, cada uma
com um cartaz querendo uma coisa diferente. As passeatas tinham a forma do facebook – cada cartaz individualizado sendo como um post individualizado na “news feed” da rede
social. Em que pese esta autonomia dos quereres individuais, não havia de fato
auto-organização na revolta espetacular da superfície de todo o processo (o que
já era bem diferente nas revoltas sociais de fundo, menos midiáticas e
associadas ao vandalismo). Uma catarse coletiva dos muitos “eus” aprisionados
em bolhas, com seus computadores e celulares, ansiosos por algum tipo de
vivência coletiva e real, se transformava em um carnaval fora de época, com
tons de micareta e copa do mundo, com uma perplexidade de quem nunca viu tanta
gente nas ruas, realmente criando uma “situação” debordiana, no mau ou pior
sentido do termo. Assim, “#vem pra rua”, e “tira foto no protesto pra botar no facebook”
(paródia de um funk bem conhecido). Talvez o episódio mais pitoresco tenha sido
o encontro, pelas ruas, de um grupo da classe média conservadora que voltava
para casa, com um grupo de pixadores e skatistas – que estavam em sua área e
eram rapazes oriundos de periferia. Uma vez vendo os rapazes a “pichar” algo, o
grupo patriota começou a gritar “vândalos, vândalos!”. Os rapazes reagiram em
provocação pichando ainda mais, e correram o grupelho direitoso para fora dali;
este, retornou com mais colegas e amigos, mas acabou por levar uma sova
daqueles rapazes da periferia. Este episódio virou uma espécie de lenda
emblemática que ilustra o processo. Enquanto isto, verdadeiras milícias
fascistas circulavam pela região dos arredores da Avenida paulista, agredindo
homossexuais e pessoas identificadas como supostos “esquerdistas”.
A negação do político nos
protestos – uma vez que se agrediam portadores não apenas de bandeiras, mas até
de faixas de movimentos sociais e cursinhos populares para afrodescencentes –
aparece como afirmação da atomização capitalista individualística e reforço do
mito da “neutralidade política”, que nada mais é do que a
ideologia dos gestores e tecnocracias em estado mais puro.
Quantas vezes Serra e Alckmin, para espanto de todos, acusaram greves de
servidores e movimentos sociais de serem movimentos “Políticos” (o que causa estupefação)? As
palavras “Política” “Político” parecem
assumir sentido pejorativo e desqualificativo – talvez, porque justamente
signifiquem conflito social e luta de classes – sendo a negação do político o epifânio
da ideologia da neutralidade instrumental da técnica, da administração, e da forma-mercadoria
reinante. Reinaldo Azevedo apressou-se em, como sempre faz, descobrir que o
Movimento Passe Livre hospedava sua página em uma ONG digital nomeada
Alquimídia, que teria recebido mais de 700 mil reais do Governo Federal.
Logo, para ele, o MPL só poderia ser uma sigla petista e
pertencente ao PT, como aliás, qualquer movimento social reivindicativo só
poderia ser petista para ele e sua revista. Só não chegaram ao ponto de acusar
a FAG de ser petista; mas na matéria “Organizadores do Caos”, a Revista Veja defendeu abertamente a identificação,
investigação, monitoramento e perseguição a grupos anarquistas em geral.
E de outro lado, quantas vezes os gestores novos-ricos do
PT se vitimizaram durante o processo, colocando os protestos protofascistas e
as lutas sociais de comunidades e classistas em um mesmo barco do “golpismo”?
Fica evidente, em toda a narrativa oficial que falsifica o
processo de lutas, a imensa fragmentação social e também inchaço da
virtualidade, a espetacularização das lutas. Quando a grande mídia passa a
defender os protestos, alguma coisa só pode estar errada. Mas também, inúmeras
vezes grupos manifestantes mais radicalizados rechaçaram a mesma mídia. Isso se
devia ao fato de que não havia um único manifesto, mas um mosaico de manifestos
do qual, a única certeza que podemos ter, é a de que “havia de tudo”.
A negação do político, como ideologia reificada do
tecnicismo, é extremamente perigosa. Esteve presente em regimes fascistas, e
esconde a ambição política das tecnocracias em regulamentar a sociedade de
forma total, em uma soberania das empresas. Não existe vazio político, não existe apolítico, não existe neutralidade na luta de classes. Ou se está a
defender um lado, ou o outro; o político é difuso, molecular.
7) A verdadeira recusa.
Entretanto, a verdadeira recusa das mediações políticas
(partidos, sindicatos burocratizados) expressa na grande autonomia dos
protestos de periferia, ocupações e lutas mais radicalizadas não pode e não
deve ser confundida com o individualismo conservador antipartidário. Coexistem,
nesse processo de lutas, todos estes momentos.
Nos protestos facebookianos mais fascistóides que pregam a
“revolta dentro da ordem”, a negação do político (e da esquerda, das classes
sociais) é a ideologia da tecnocracia e da judicialização da política. Porém, o
novo caráter das lutas sociais de fundo e de base, tão incompreendido e
silenciado na grande mídia, apresenta uma recusa diferente. Não são lutas
apolíticas, mas profundamente políticas. São talvez, a verdadeira oposição de esquerda,
de grupos de trabalhadores se auto-organizando como podem, recusando as burocracias
partidárias e sindicais, a falsificação midiática, e chegando a profanar, com seus
protestos, a divindade do futebol e mesmo a visita do Papa, e perguntando por Amarildo
e por todos que são vitimizados pela violência do Estado. Esta iconoclastia de setores
sociais precários e também de certos setores mais qualificados em precarização –
em estado de revolta – realmente representa a percepção de que estão a surgir
novas formas de fazer política, a partir de baixo.
[-] www.sinaldemenos.
8) Um aspecto importante a ressaltar.
Lutas por serviços públicos também são lutas sobre o valor
da mercadoria força de trabalho. É fundamental perceber isto, para entendermos
como formas de consciência limitadas da luta de classes fazem com que o ataque
comece reivindicando serviços e direitos sociais ao capitalista coletivo, o Estado. Isto também é luta de
classes – se considerarmos a produção capitalista como um imenso trabalhador
social agregado e expandido à totalidade social, uma fábrica social. Igualmente, se a demanda do “combate
à corrupção” pôde ser colocada pela direita fascistóide, a denúncia das máfias de
transportes, dos desvios de dinheiro de hospitais e, principalmente, dos gastos
da Copa e em construção de pirâmides do PAC, podem ser formas de problematizar
a corrupção como inerente aos grupos empresariais e à própria reprodução da
estrutura de classes. É o momento em que os empresários, de bons moços
apolíticos e que aparentemente nada tem a ver com isso tudo, aparecem como
beneficiários das malhas de apropriação informal e patrimonial dentro do
Estado.
9) O mosaico.
A heterogeneidade das revoltas, enfim, se apresenta como
expressão da própria fragmentação dos trabalhadores gerada pela atual estrutura
de divisão social do trabalho. Há lutas de “classe média” e lutas de favelas
ocorrendo simultaneamente, embora as últimas tenham crescido e as primeiras
definhado nas últimas semanas.
Permanecem nas ruas setores da classe média mais
progressistas, aliados às demandas GLBTT, grupos feministas, em protestos
contra a Copa, contra despejos e lutas de favelas e comunidades vítimas de
massacres. Em Salvador, não faltaram relatos de prisões e tortura de
manifestantes pobres. No Rio de Janeiro, o Estado massacrou trabalhadores na
favela do Complexo da Maré, deflagrando protestos, especialmente após o
desaparecimento de um operário pobre em uma comunidade (Rocinha).
Espantosamente se uniram, nas ruas, pessoas de comunidades
pobres indignadas com a violência do Estado e a militarização, além da falta de
hospitais e os gastos da Copa, com pessoas mais politizadas e de maior formação
e nível de estudo, em um mesmo protesto.
Seria um ensaio de processo de recomposição de classe,
ainda que em níveis restritos?
Se há uma dicotomia clara de lutas entre os protestos da
classe média e os das comunidades, esta divisão por sua vez é cindida também.
Setores mais progressistas da classe média se organizam ao redor dos movimentos
GLBTT e feministas contra o conservadorismo religioso no Congresso Nacional, e
grupos que contestam o aumento da repressão. Por outro lado, nos setores de
trabalhadores precários, há uma imensa hegemonia conservadora representada por
um imenso bloco de Igrejas Evangélicas.
Estas, em grande parte, exortaram seus fiéis a não
participarem de protestos – sob o
discurso Paulino da
“obediência às autoridades, que são instituídas por Deus” (chega-se a dizer que
protestar é “pecado de rebelião”, equivalente a “feitiçaria”). Mas isto também não
impediu de que muitos evangélicos estivessem nas ruas misturados aos demais protestos.
Mas espantosamente, as igrejas, que são instituições poderosas que
controlam parcelas do Congresso Nacional e bilhões de
reais em patrimônio, silenciaram sobre as revoltas – exceto por algumas
declarações de Silas Malafaia apoiando os protestos “contra a corrupção” e
criticando a “militância gay” (porém, a bancada evangélica encontra-se dividida
entre um setor governista e um de oposição. O próprio Marco Feliciano fez
campanha para Dilma, antes de criticá-la). Se o campo das igrejas evangélicas
representa uma ala conservadora no interior do precariado, a contradição de classes também se apresenta dentro das
igrejas, nas quais uma base de fiéis mais pobres, com renda de 1 a 3 salários mínimos, é
politicamente dirigida (e sustenta com seus dízimos) por um estrato de pastores
e pregadores que constitui uma verdadeira camada de novos ricos e uma classe
média conservadora e monopolizadora das exegeses religiosas. O discurso que
aposta na subjetividade mercantil e na idolatria do trabalho abstrato e da
economia enquanto deus-dinheiro também encontra seus limites
e contradições na crise capitalista que condena à pobreza e limita a prometida ascensão
social de milhões de fiéis pobres, que muitas vezes encontram em sua solidariedade
mútua mais assistência do que em seus pastores e igrejas.
A classe media se divide, nos protestos, em setores que
vão do espectro progressista ao mais conservador (este último de maior peso e
presença na mídia).
Podemos concluir, grosso modo, que a totalidade dos
protestos expressa o próprio mosaico da divisão do trabalho da força de
trabalho nacional, com suas demandas e contradições, e conflitos inter-classe.
Se a autonomia de determinados setores de luta
poderia ser animadora, a fragmentação social expressa
também demonstra a solidez da dominação capitalista sobre a mesma força de
trabalho, que impõe grandes desafios às lutas sociais. Enquanto pessoas pobres
reivindicavam hospitais, grupos de médicos levavam demandas contraditórias, que
iam desde questões de falta de infraestrutura em hospitais, enquanto a grande
mídia apimentava a discussão com uma apologia contra a importação de médicos
cubanos (que seriam “espiões comunistas”, segundo a Revista Veja, ainda em
clima de Guerra Fria). Até mesmo acupunturistas protestavam pelo direito a
exercer seu ofício, que as associações de médicos querem restringir a diplomados.
10) O duplo caráter das revoltas.
Podemos dizer que temos diante de nós, dentre o citado
mosaico, duas vertentes de luta contraditórias. De um lado, os protestos mais
conservadores, apoiados pela mídia e englobando a classe média mais
conservadora e grupos fascistóides, cuja pauta central é o moralismo político
(enquanto fachada para um radical anticomunismo e antiesquerdismo), e cuja
frágil organização se dá pela publicidade dos virais de facebook10, onde a “opinião pública” é
a mais perfeita expressão da preguiça individual.
Podemos dizer que mesmo no âmbito das direitas e das
demandas conservadoras, há
uma verdadeira indigência intelectual: considerar o PT
“comunista” e tratar as coisas
em termos de guerra fria indica que
as direitas, tanto quanto as esquerdas em geral, andam bastante desatualizadas
ideologicamente, embora seu apelo ao emocional e irracional seja muito sedutor
a uma população despolitizada à espera de redentores, dentro da imensa renúncia de si religiosa da ideologia do trabalho. É
necessário ressaltar, que ao lado do partido da imprensa golpista, há
também o partido da imprensa
governista e os novos ricos das burocracias sindicais e partidárias
petistas no poder, a tentar se apropriar dos protestos, e veiculando também sua
propaganda através de blogueiros profissionais. O discurso oficial tenta
colocar o conflito social como um problema de “governo e oposição” ou conflito
entre tucanos (“apartidários”, “apolíticos”, amamentados com glicerina em tenra
infância e com gosto de sabão de coco) e petistas (mensaleiros, corruptos,
“vermelhos”) que se autovitimizam também, desqualificando qualquer critica feita
por um viés de esquerda como algo que faria “o jogo das direitas”.
Mas, longe desta oposição ser luta de classes, é uma luta
intestina de ambas as tecnocracias concorrentes à gestão do mesmo projeto de
administração da crise do capital. Se o PSDB reprime os protestos, Agnello
(DF), Tarso (RS) e outros governos petistas os reprimem com igual violência e
truculência. Cabral integra a base do governo federal, que conta com Sarney,
Collor, Maluf, ruralistas, Katia Abreu, Chalita (opus Dei, que foi alvo de greves
de professores), Delfin Neto, Kassab e seu PSD, enfim, toda a velha ARENA. O PT
no poder abriu mão dos trabalhadores, para, sob uma casca de aparente esquerda,
incluir dentro de si as velhas elites de sempre – a metáfora geológica da pseudomorfose na qual uma rocha erodida fica oca e
é preenchida por segmentos de outro tipo de rocha, configurando uma rocha com
aparência de outra.11 O Lulismo, para além de
continuidade das políticas tucanas de flexibilização trabalhista e
previdenciária, abriu mão da luta de classes e das organizações de base, para
integrar poderosos empresários como Eike, a Gerdau, empreiteiras, agronegócio,
uma tecnocracia de analistas, e o messianismo católico (foram-se embora as
comunidades eclesiais de base, ficou a estrutura de Igreja). Um misto de PRI
mexicano com traços peronistas. Esta opção política teve um preço muito caro –
a desmobilização da luta de classes e dos movimentos sociais de base, que
permitiu o avanço da direita raivosa e conservadora como resposta.
Temos, porém, um processo geral, molecular, de
disseminação de imensa variedade de protestos sociais de forte caráter
independente e autônomo, reivindicando coisas aparentemente pontuais, mas que
são muito mais perigosas para a acumulação capitalista do que as pautas difusas
do exercito brancaleone anti-corrupção e do governismo
pelego. Reivindicar reduções de tarifas afeta muito mais diretamente o aparato
de poder (o mesmo que sustenta a corrupção) do que reivindicar moralizações administrativas.
A corrupção, problema estrutural e endêmico da gestão da sociedade produtora de
mercadorias, se apresenta intimamente ligada à estrutura de reprodução de
classes, e uma mescla das modernas formas de dominação burocrático-racionais
com as carismáticas e patrimoniais de poder pessoal, um fenômeno peculiar de
formações capitalistas de periferia. Uma reforma agrária afetaria muito mais os
grupos envolvidos na “corrupção” do que pautas políticas abstratas de reforma
política ou “caça a corruptos”. Tal é a inocuidade do discurso anticorrupção,
que a proposta de tornar a corrupção crime hediondo foi defendida pelos mais
corruptos do aparato político.
A mesma censura feita por Lênin aos sindicatos e
movimentos sociais russos, de que estes teriam caráter apenas de luta econômica
e uma incapacidade de se erigir a níveis de luta política, reaparece no
discurso das direitas fascistóides (e também da pseudo-esquerda no poder),
sempre tendo em comum negar a capacidade política dos trabalhadores e dos
movimentos sociais. A Revolução Russa e todo o processo de autogestão dos
sovietes não ocorreram por programas políticos, mas foi detonada por
reivindicações sensíveis, como alimento, acesso a terra,
fim da guerra, da militarização e repressão, etc. Foi justamente o programa
proposto pelo Partido bolchevista que destruiu as formas comunais e introduziu
a modernização recuperadora via capitalismo de estado. Curiosamente, as direitas políticas hoje atacam os
protestos pontuais (“não são apenas vinte centavos” – este é um mote muito
contraditório e que permite margens muito grandes de interpretação),
acusando-os de querer apenas reivindicações imediatas e não ter um “programa”
ou “projeto” geral e nacional “contra a corrupção”. A classe média conservadora
tende a desprezar as lutas comunitárias em geral. A pseudoesquerda governista, por sua vez,
se vitimiza atribuindo aos protestos um caráter de puro golpismo e também acusa
sua falta de “direcionamento político” (governista, é claro). O mais curioso é
que, justamente quando se introduzem as demandas abstratas e difusas, é que os
protestos perdem sua força e seu foco original nas reivindicações concretas e
reais – este é o típico golpe das burocracias sindicais, que formulam pautas de
reivindicações extensas com uma ou duas dezenas de itens, de forma a tirar o
foco das lutas e enfraquecer o movimento (e permitir aos burocratas sindicais
negociar a portas fechadas com o governo – como a direção da APEOESP sempre faz
com governos do PSDB; uma boa campanha centrada apenas na redução de alunos por
sala ou em salários maiores mobilizaria muito mais o professorado do que as
“pautas” confusas, extensas e abstratas das burocracias sindicais). Justamente
o que cabe perceber aqui é que o desvio das demandas sociais concretas para
“programas anticorrupção” ou demais programas abstratos de reformas
institucionais ou políticas constitui justamente a tentativa de enquadramento
das lutas sociais, sua recuperação capitalista e conversão das lutas em
mecanismos da própria acumulação do capital – e, no caso atual, em meras demandas
de administração de crise em formas repressivas. Cabe lembrar que, em países
tidos como modelos de “gestão séria” e baixa corrupção – como a Alemanha, por exemplo
– se encontra a mais eficiente máquina de exploração da força de trabalho, sob os
mecanismos da mais-valia relativa. O “combate à corrupção”, como lugar-comum,
se torna mais fácil e cômodo do que criticar as estruturas do estado e do poder
político separado, e as relações de exploração de classes (nos casos de
“corrupção política”, as cifras são sempre de milhões. Os lucros das empresas,
obtidos sobre a exploração da força de trabalho, são da cifra de bilhões.
Entretanto, nada se fala a respeito disso; o “político corrupto” torna-se o
escândalo espetacular, enquanto o empresariado permanece invisível e incólume,
por detrás.). Revela-se, enfim, como um programa que nada mais visa que a
melhoria do próprio funcionamento capitalista e do controle social.
Lutas por demandas sensíveis e concretas em uma miríade de
protestos de base; de outro lado, reações fascistóides pedindo pautas abstratas
de moralização, judicialização da política e militarização. Afinal, não temos
diante de nós a dialética entre a afirmação das necessidades sensíveis e úteis
oposta à generalidade sistêmica do trabalho abstrato, na forma de uma dicotomia
de vertentes?
11) Perspectivas parciais.
A crise de fato se instala e tende ao agravamento. Com
ela, a agudização dos conflitos sociais e da reação de criminalização do
protesto social. É possível vislumbrar, como resposta capitalista, o aumento da
inflação (especialmente sobre alimentos e aluguéis, além de energia e água) e
da crise de financiamento do Estado. Igualmente para manutenção do atual
projeto de administração da crise e capitalismo de empreiteiras, o aumento da repressão e
militarização social para viabilizar a Copa e as Olimpíadas. É preciso injetar
o capital fictício em alguma coisa, para que este dinheiro não evapore ou
derreta.
Coloca-se diante da esquerda e dos movimentos sociais, em
primeiro lugar, a urgente necessidade de fazer circular as lutas – circular as
noticias, informações e contatos entre movimentos diferentes, rompendo o
bloqueio de informações, possibilitando uni-las pela base em programas práticos que
permitam um acúmulo de poder social dos trabalhadores e uma recomposição
política da classe para os enfrentamentos sociais – como o fez o Bloco de Luta
pelo Transporte Público, em Porto Alegre. Para longe de se tratar de uma “crise de direção”, o movimento social padece da fragmentação
colocada pela própria organização do trabalho e engenharia social capitalista.
O esvaziamento das bases coloca em crise as lutas sociais em geral, fazendo as
direções de movimentos se descolarem das bases e estarem em crise permanente
(ao invés de revolução permanente). E as novas modalidades de luta, por sua
vez, com seus princípios e práticas de organização em rede, autônomas e
basistas, questionam as formas tradicionais de fazer política e as direções
políticas separadas das bases.
Estaremos diante do ressurgimento de um movimento social
autônomo? Isto é uma questão que só poderá ser respondida, como ressaltou certa
vez o pensador Marco Fernandes, se as esquerdas fizerem o trabalho de base12, a sua
lição de casa que há muito não fazem – porém, as Igrejas Pentecostais a fazem,
e muito bem. E não sabemos ainda quais serão as consequências políticas que os
modelos de subjetivação postos pelo pentecostalismo irão surtir sobre o cenário
político nacional a médio e longo prazo, embora aponte para um conservadorismo
tenebroso. Entretanto, a Marcha para Jesus deste ano teve quase metade a menos
de fiéis, o que agrava nossa incógnita acerca da capacidade política ou de uma
potencial crise das mesmas organizações religiosas.
Em segundo lugar, se coloca a necessidade de discutir os
paradigmas das lutas, reabrindo uma esfera pública de debate. Não nos
encontramos atualmente em um contexto de modernização que justifique os
programas desenvolvimentistas das esquerdas tradicionais, mas justamente diante
da crise da valorização capitalista que coloca em cheque estes mesmos projetos
de modernização. O atual potencial “assalto proletário” à sociedade de classes que parece se
desenhar, internacionalmente, expressa perfeitamente a rápida
internacionalização das lutas e o esgotamento das formas tradicionais de fazer
política – mediações partidárias tradicionais, burocracias sindicais corporativas.
Uma imensa quantidade e maioria de trabalhadores passam sua vida entre empregos,
requalificações e períodos de desemprego sucessivamente, não possuindo base
sindical ou condição social fixa. Sua mobilidade permanente, que expressa o apogeu
do trabalho abstrato, só permite que a contestação social se radicalize a patamares
novos e mais generalizados. Entretanto, ante esta nova situação da composição
de classes, e de crise estrutural capitalista, parece haver um vazio de compreensão
teórica e uma perigosa ausência de um projeto emancipatório e
desmercantilizador que ofereça uma alternativa à barbárie
que se desenha para os futuros tempos. Antes, a consciência dos movimentos
ainda fica presa ao estreito limite das reformas sistêmicas e propostas que
dependem da lógica do dinheiro como um a priori pressuposto. É este vazio
teórico que também precisa urgentemente ser resolvido.
As atuais lutas no Brasil também expressam um forte
caráter espontâneo, o que é admitido até mesmo pelos especialistas em
monitoramento internáutico. Mas a mesma classe em luta enfrenta, cada vez mais,
a reação capitalista da criminalização, da vigilância eletrônica sobre as redes
e a repressão qualificada. Além disso, impera a
ilusão das redes sociais enquanto instrumento de
organização. Na verdade, elas são esferas de debate ideológico, de circulação
de informações e sobre lutas, de articulação; porém, elas não substituem as
relações sociais no cara-a-cara, a boa e velha organização de base. Por isso, o
gigante dos pés de barro foi dormir. É um tanto curioso que favelas e comunidades
com menor acesso a redes estejam fortemente engajadas em lutas. Na verdade, é
possível a falsificação de uma revolução meramente espetacular feita por redes
sociais, de forma passiva. Estas, funcionam como elemento que une o separado enquanto
separado, parafraseando Debord. Certamente a revolução não será televisionada, nem
mesmo via facebook. Antes, as redes funcionam também
como um imenso panoptismo social que permite a vigilância, a classificação, a
catalogação, a monitoração, e mesmo a antecipação e manipulação de revoltas
sociais através de equações e estudos de comportamento.
As lutas sociais vão encontrar também obstáculos no
conservadorismo fascistóide de muitos setores da classe média; e na recuperação
capitalista das lutas e reivindicações. O próprio movimento Black Block, recentemente surgido no Brasil, tem passado por um
processo de tentativa de espetacularização midiática. A truculência governista,
e as tentativas de aparelhamento dos movimentos por representações burocráticas
partidárias e sindicais, quando não surgidas do interior do próprio movimento,
são outro risco. Estruturas de ONGs e financiamento governamental também podem
ser armadilhas de aparelhamento de movimentos e cooptação de lideranças.
É sobre este terreno, complexo e contraditório, que poderá
ocorrer ou não uma recomposição das lutas e a reformulação consistente de uma
crítica social no Brasil.
Paulo
Marques
1 Artigo de Afrânio
Castelo, sobre a crise mundial, intitulado “A Caixa de Pandora”, publicado em 28
de Outubro de 2008, pelo PSOL Ceará. Afrânio CASTELO. A
Caixa de Pandora. 28/10/2008. In http://www.psolceara.org.br/biblioteca/artigos/92-caixa-de-pandora-artigo-de-afro-castelo
(último acesso em janeiro de 2009).
2 IIRSA é a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional
Sul-Americana, um projeto internacional de
integração entre governos da América do Sul, capitaneado pelo governo
brasileiro, com o objetivo de formar uma malha de condições gerais de produção capitalistas
no âmbito do continente. O Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) se integra dentro deste
panorama mais amplo do IIRSA, que é apontado por movimentos sociais como um
processo predatório ao meio ambiente, e de preparação de uma rede de
infraestruturas para um projeto de desenvolvimento econômico que expressaria um
imperialismo brasileiro sobre a América do Sul – e com braços laterais à África
Ocidental. Ver o libreto acerca do plano, divulgado pelo Encontro Latino Americano de Organizações Populares Autônomas (ELAOPA): <http://www.elaopa.org/sites/default/files/LibroIIRSA.pdf>.
As
obras da Copa e Olimpíadas, de certa
forma, se inserem também na expansão de malhas infraestruturais para o
desenvolvimento capitalista – integrando empreiteiras e pesados investimentos a
crédito governamental. O IIRSA é criticado pela devastação ambiental, pelo
incentivo ao agronegócio e à monocultura, pelo ataque às terras de povos
indígenas e camponeses, pela precarização trabalhista (“chinesificação” da
força de trabalho), e conforma uma base material infraestrutural destinada a
uma posterior expansão de empresas, indústrias e atividades econômicas diversas
para áreas amazônicas, com a utilização de mão de obra barata e qualificada e
plataformas de infraestruturas de baixo custo. O processo de expansão do ensino
superior público e políticas de financiamento da educação básica dos municípios
pelo MEC, assim como o aumento dos gastos em educação básica se destinam também
à produção desta base infraestrutural para uma tentativa de expansão
capitalista continental integrada, processo iniciado pelas políticas do Programa para a Promoção da Reforma Educativa na América Latina e no Caribe (PREAL), realizado sob a coordenação do Banco Mundial e durante o
governo FHC,
ao qual o governo petista deu
perfeita continuidade. É interessante notar que grande parte da atividade missionária
neopentecostal sobre nações indígenas também se concentra nestas áreas, além da
África Ocidental.
3 Cacique Babau é Rosivaldo Ferreira da
Silva, líder de um movimento indígena Tupinambá do Sul da Bahia, preso diversas
vezes por organizar movimentos e ações indígenas contra latifundiários. Ver
mais informações em
<http://www.midiaindependente.org/pt/red/2010/03/467485.shtml> (2010).
4 Ocorreram greves
nas obras da maioria dos estádios da Copa, com especial destaque para a greve
do Maracanã, em Setembro de 2011, motivada por falta de condições sanitárias e
pela distribuição de comida podre aos trabalhadores. O próprio deputado Romário
criticou duramente as condições detrabalho a que estavam sendo submetidos os
operários. Não se trata exatamente do Encouraçado Potemkin, mas dentro do “encouraçado tupiniquim” em plena Terceira Revolução
Industrial, o capitalismo ainda é aquele.
5 Se este não é
dotado de nenhuma natureza metafísica ou messiânica enquanto classe
revolucionária, nem mesmo pode surgir uma emancipação social de sua condição
dada a priori enquanto momento do capital como força de trabalho; é justamente em
resposta à violência da exploração e à opressão da organização do trabalho, e
também por ser característica básica de todas as sociedades e grupos humanos
possuir o político e o poder político enquanto atributos próprios (fato mais que comprovado pela
pesquisa antropológica), é que esta classe trabalhadora acaba por se recompor
politicamente e se auto-organizar, constituindo relações sociais de luta
horizontais, igualitárias e solidárias em direto confronto com o sistema, que potencialmente podem se projetar
em direção aos meios de produção, autogerindo-os e iniciando embrionárias
formas de novas relações sociais, de novo tipo, potencialmente desmercantilizadoras.
Das duas vidas do proletariado – enquanto força de trabalho para o capital, e
enquanto proletariado político e em condição negativa à sua condição, é que se
trata. Uma das preocupações maiores deste artigo foi justamente esta – buscar
“separar o joio do trigo” no atual processo de lutas sociais, ao analisar o
duplo caráter, a forma contraditória das lutas em curso, ao invés de
simplesmente apologizar as lutas ingenuamente, ou as desqualificar por
completo. Se, como afirmou Kurz ao referir-se aos processos de luta recentes
(em um de seus últimos textos), não
há revolução em parte alguma, também não significa que o
sistema não esteja a ser confrontado por diversas lutas sociais de novo tipo. A
tarefa de uma teoria crítica lúcida seria, então, analisar as potencialidades, limites
e contradições das lutas sociais. Cabe lembrar, ainda, que Robert Kurz inúmeras
vezes, em textos mais conjunturais e menores, defendeu a necessidade das lutas
por direitos sociais, aumentos massivos de salários e pensões, e por demandas
sensíveis e concretas, colocadas de forma a problematizar o debate sobre os
limites do sistema em crise e a possibilidade da afirmação das necessidades
vitais sensíveis contra a violência da abstração fetichista do sistema. A
possibilidade de uma “transcendência” em relação às formas sistêmicas
fetichistas só pode se dar pelo processo de tensionamento interno da imanência
em suas contradições concretas e reais.
6 Dois comentários
pertinentes. Primeiro, que o setor de microempresários que compõe certa parte
da classe média em parte se encontra integrado e subordinado a cadeias maiores
de franquias e conglomerados comerciais que absorvem a mais-valia produzida por
estes setores. Porém, cabe ressaltar que o patronato de microempresários exerce
muitas vezes uma exploração brutal de trabalho precário que respeita menos
qualquer direito trabalhista do que as grandes empresas. É o setor que mais
clama pela redução de carga tributária, entendendo-se, nas entrelinhas, pela
redução dos custos trabalhistas com seus empregados. Uma das maiores
contradições dos protestos da classe média é exigir redução de impostos e ao
mesmo tempo “serviços públicos Padrão-Fifa”, uma vez que serviços públicos são justamente
subsidiados por impostos. Não seria de se surpreender que boa parte da classe
média considerasse absurda uma proposta como a Tarifa Zero, por considerar que seria
“custeada pelo
contribuinte”. Na verdade, ela atinge
o uso do automóvel, questiona radicalmente o individualismo nas
grandes cidades, e questiona o mais
sagrado dogma da classe média: a meritocracia. Afinal, como a classe média “que
trabalha, paga seus impostos e sustenta o país” iria suportar ter de ver os
pobres poderem se locomover gratuitamente, pagos pelo contribuinte? Por isso a Revista Veja, grande ideóloga da classe
média nacional, chama a proposta do Passe Livre universal de “utópica e
irrealista”. Segundo aspecto a ressaltar: entretanto, cabe notar que a Tarifa Zero, por outro lado, implicaria
um perfeito funcionamento das condições
gerais de produção capitalistas, na medida em
que facilitaria o fluxo de força de trabalho e mercadorias de forma mais livre
através do aumento da modalidade urbana (e mesmo o desbloqueio do trânsito,
permitindo a aceleração urbana). Assim, é uma reivindicação que pode ser
perfeitamente apropriada e recuperada pelos gestores capitalistas, bem como
pode constituir um campo de formação de novos gestores à esquerda. Talvez o
aspecto mais importante da luta não seja a reivindicação em si, mas a forma de organização horizontal e autônoma
adotada pelos movimentos de luta pelo transporte público, configurando
potencialmente novas relações sociais de luta. A inovação destas lutas, neste
caso, se encontra mais na forma, do que nos conteúdos reivindicados. Finalmente, a simples reivindicação de redução de
preços, por significar a luta sobre o valor da força de trabalho, parece afetar
mais o sistema do que projetos de lei que podem ser capitalisticamente
recuperados, constituindo novos espaços para acumulação e redução de custos.
Para as empresas, a gratuidade do transporte também pode significar uma redução
de custos pagos aos trabalhadores na forma de valetransporte.
É preciso analisar, portanto,
dialeticamente este processo, em sua implicação contraditória – as apropriações
ou usos sociais possíveis segundo perspectivas de classe antagônicas.
7 O leitor assista
ao filme e tire suas conclusões: Muito
Além do Jardim (Being There, 1979), com Peter Sellers, produção de Andrew
Braunsberg e filme de Hal Ashby.
8 CANVAS, Center for Applied Nonviolent Action and Strategies, fundação patrocinada por republicanos e democratas, criada por dois jovens
membros do movimento que derrubou Slobodan Milosevic, na Sérvia, em 2000. Tal fundação dá
cursos e treina oposições políticas sobre estratégias para derrubada de governos através de táticas de rua,
propaganda, agitação publicitária e desobediência civil, tendo atuado em diversas revoltas pelo mundo árabe
e inclusive na Venezuela. Ver o artigo Revolução
à Americana: Documentos vazados pelo WikiLeaks mostram como age uma organização
que treina oposicionistas pelo mundo afora – do Egito à Venezuela. in <http://www.apublica.org/2012/06/revolucao-aamericana/# sthash.RUj31Yst.dKUHVxBe.dpuf>
(último acesso em Junho de 2013). Possui manuais com suas táticas e cursos:
<http://www.canvasopedia.org/images/books/CANVAS-Core- Curriculum/CANVAS-Core-Curriculum-web.pdf>.
A análise das redes sociais permite a especialistas utilizá-las como termômetros de descontentamento
popular e antecipar ondas de revoltas, mesmo utilizando softwares. Grupos profissionais ligados às direitas
políticas podem perfeitamente aproveitar e tentar direcionar politicamente ondas de protestos, segundo suas
finalidades, utilizando-se de agitadores profissionais, publicitários e difusão de virais em
redes sociais. Entretanto, como analisamos, esta tentativa de apropriação dos movimentos no Brasil pelas
direitas não parece ter funcionado. Nada substitui o chão-de-fábrica, o velho trabalho de base, e a velha rádio-peão.
9 O Gigante Egoísta é um conto de
Oscar Wilde, referente à história de um gigante egoísta e antissocial, que vivia em um palácio tenebroso e
afugentava as crianças, até que se tornou amigo delas e em seguida morreu feliz.
10 É oportuno
lembrar que outdoors com os dizeres “#changebrasil”
foram vistos no exterior em jogos de futebol transmitidos
pela televisão.
11 Mauricio
TRAGTENBERG. Rússia atual: produto da
herança bizantina e do espírito técnico norteamericano. Publicado em Folha Socialista,
5 de abril de 1954, disponível in <http://www.scielo.br/pdf/es/v29n105/v29n105a02.pdf>, versão
republicada pela Educ. Soc., Campinas, vol. 29, n. 105, p. 969-977, set./dez. 2008. Neste
artigo, Tragtenberg analisa como a União Soviética possuía apenas uma casca aparente de socialismo, cujo
conteúdo era preenchido pelas formas da igreja ortodoxa russa mescladas ao gestorialismo tecnicista.
Tragtenberg sempre analisou a URSS enquanto um capitalismo estatal. Adotamos aqui a comparação de que
o processo do PT (e da CUT) foi similar: o esvaziamento de seu conteúdo social original, composto
de trabalhadores, com a intromissão e preenchimento deste vazio por tecnocratas, burocratas sindicais,
analistas e gestores. E, finalmente, com a aliança com elementos das direitas políticas e grandes grupos
capitalistas dentro da composição de sua base de governo. Esta é a metáfora geológica da pseudomorfose por
ele utilizada, na qual uma rocha escavada pela erosão é preenchida por outra, configurando uma formação
que parece uma rocha por fora, mas constitui outra por dentro. Parece-nos perfeitamente
atual.
12 Entrevista
de Marco Fernandes para a Revista Sinal
de Menos #5: A crise do PT e do trabalho de base no Brasil. In <http://sinaldemenos.org/2011/02/24/sinal-de-menos-5/> (2011).
[-] www.
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