31/08/13

Brasil, uma contradição em processo

Quem lê Vias de facto acompanha provavelmente a situação social e política no Brasil – e os debates que ela suscita – através da leitura de Passa Palavra. O texto «A revolta e o seu duplo» faz parte de um conjunto que constitui o número de Agosto de uma revista brasileira, Sinal de menos, dedicado na sua totalidade ao movimento de Junho de 2013.


Paulo Marques pretende demonstrar que o que o que ocorre no Brasil não é uma luta, mas várias lutas, algumas com conteúdos de classe e anticapitalistas, mas outras, feitas pela classe média, expressam conteúdos conservadores, quando não fascistas. Noutros termos, este movimento é uma contradição em processo !
De assinalar, também neste mesmo número de « Sinal de menos », dois artigos. Resistência e o direito à cidade, de Daniel Cunha que descreve o movimento do Passe livre e do Bloco de luta pelo Transporte Público em Porto Alegre, « uma das melhores concretizações dos protestos de Junho », « mostrando que ele se imbrica em um mosaico mais amplo de lutas urbanas pelo direito à cidade que questiona o modelo urbanístico e o consenso político estabelecidos. »
A mobilidade do inferno proletário : a vida nos trens da hiperperiferia de São Paulo, de Claudio R. Duarte, « narra a vida do proletariado urbano usurpada pelo tempo de transporte nos trens suburbanos da Grande São Paulo. Ele apresenta um pouco do mal-estar social geral que veio a furo com as Jornadas de Junho. »
 




A revolta e seu duplo
Entre a revolta e o espetáculo

Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.
Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.
Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.
- Rumi (1207-1273).

1) Prognósticos retardados de uma crise.
Em 2008, durante um processo de formações políticas e debates efetuado em sindicatos, arriscamos proceder a algumas previsões um tanto imprevisíveis e vagas sobre a ulterior evolução nacional de um processo de crise mundial que mal se deflagrava. Ante a análise do arrebentamento da bolha imensa de capital fictício da economia norte-americana, que desnudaria a crise estrutural do processo de valorização historicamente estreitado pelo aumento do trabalho morto em relação ao trabalho vivo, nós prognosticávamos como possibilidades reais postas aos movimentos sociais o próprio conjunto de respostas capitalistas à crise: a tentativa de redução do valor da força de trabalho; a inflação enquanto mecanismo intensificador da exploração e redução indireta dos salários; a instituição e intensificação de uma acumulação predatória com padrões de acumulação primitiva através de guerras, incluindo uma molecular guerra civil urbana generalizada com despejos de comunidades; a intensificação da especulação imobiliária e de um crescimento econômico guindado a créditos e construção civil financiada a investimentos de capital fictício; aumentos dos preços de alimentos, energia, transportes e aluguéis; aumento da repressão e contrôle social com uma militarização progressiva da sociedade e um fascismo difuso; aumento da violência e formas de barbárie social de desintegração, incluindo escaladas das violências de gênero e racistas; a criminalização dos movimentos sociais e do protesto; a precarização maior das relações de trabalho; e a possível fuga da consciência social de grupos para discursos moralistas e salvacionistas de seitas religiosas ou a salvadores políticos fascistóides. Abria-se a Caixa de Pandora.1
O que não podíamos prever é que, com a crise, gerou-se um momento de fuga dos capitais dos centros afetados para as periferias capitalistas, intensificando o crescimento dos “BRICs” – o mecanismo auxiliar da mais-valia absoluta como válvula de escape sistêmica. No caso brasileiro, após uma intensa onda de lutas contra as reformas previdenciárias e de precarização trabalhista impostas pelo governo do Partido dos Trabalhadores em 2007, ao ano de 2008 sucedeu o refluxo e intensa desmobilização das lutas sociais, gerada pelo aumento do consumo a crédito e do emprego precário, do assistencialismo social e certa ascensão de camadas mais baixas da classe trabalhadora (paralela à precarização da classe média, constituindo um nivelamento social “por baixo”). Um curto surto de crescimento econômico no Brasil preencheu os poros de tempo social livre dos indivíduos com mais trabalho e tempos gastos com estudo e qualificação, gerando uma imensa fragmentação social dos coletivos e refluxo das lutas sociais. Reuniões, assembléias e até saraus passaram a se esvaziar, enquanto todos estavam a correr atrás de novos trabalhos e sobrevivência, ou mais estudo e qualificação. O crescimento econômico gerado pela gestão de crise da tecnocracia petista desmobilizou as lutas sociais e retirou o povo das ruas, além de aniquilar as oposições sindicais e greves. Paralelamente, inchavam os cargos de sindicalistas no aparelho de estado; as ações e compras de fundos de pensão por sindicatos; a cooptação de lideranças de movimentos sociais; a formação de estratos de novos ricos de uma tecnocracia de “esquerda” rival da anterior tecnocracia tucana pela gestão do mesmo; a cooptação e burocratização de ativistas sociais e culturais em políticas de integração capitalística da arte e cultura via financiamento estatal. O “Espetáculo do Crescimento” trouxe o marasmo social.
 [-] www.sinaldemenos.org
2) O Crescimento do Espetáculo.
Porém, este surto de crescimento era efêmero, fenômeno de crise global e da fuga dos capitais para locais de predomínio da modalidade de exploração de mais-valia absoluta e trabalho precário, e guindado a crédito. Não possuía qualquer base estrutural sólida, apesar dos pesados investimentos do governo federal em obras de infraestrutura do PAC e IIRSA2, e o alarde sobre a descoberta de jazidas de petróleo, configurando um desenvolvimentismo a crédito e um incipiente projeto de imperialismo brasileiro sobre a América do Sul e África Ocidental guindado a capitais de empreiteiras e apoio de figuras como Eike Batista e Edir Macedo. O crescimento do espetáculo teve vida curta, e gerou considerável intensificação da exploração do trabalho e da violência contra as periferias e povos indígenas. Enfim, a crise chegaria ao Brasil.
Com a eclosão e rápida disseminação do atual ciclo mundial de lutas sociais pela Europa, Mundo Árabe, Estados Unidos, Índia, Indonésia e muitos outros países, esta onda de lutas e suas formas organizativas peculiares haveriam de afinal chegar às terras tupiniquins - embora em formas nada autóctones, mas muito globalizadas e replenas de contradições.
Com o progressivo fim do crescimento, apenas no primeiro semestre de 2013, a Bovespa teve perdas variantes de 22 a 25%, e analistas apontavam senão uma estagnação, um possível risco de crescimento negativo - o "pibinho" de Mantega principiava a derreter. A inflação, bem mascarada pela imprensa, chega afinal aos dois dígitos; o preço do pão chega ao absurdo de entre cinco e seis reais o quilo, a batata de quatro a cinco reais o quilo, além do preço de ovos e outros gêneros alimentares populares como tomates irem às nuvens. E sobreveio então a onda de aumento de preços de transportes.
Como prevíamos, o valor da força de trabalho começou a ser atacado e devorado por uma inflação geral, que está no estopim das revoltas sociais – fato também quase nunca mencionado pela imprensa. Além disso, as obras da Copa do Mundo fizeram extrapolar os despejos de comunidades e a violência policial contra as favelas; as obras desenvolvimentistas do PAC e IIRSA deflagraram um verdadeiro terrorismo do
desmatamento predatório e tomada de terras indígenas por barragens – além do ataque dos fazendeiros e do agronegócio, tão fomentado pelo governo federal, às terras indígenas. A onda de lutas sociais autônomas já começa subterraneamente em fins de 2010 e em 2011, com as imensas greves selvagens nas obras do PAC, a começar pela hidroelétrica de Jirau, parando mais de oitenta mil trabalhadores, forçados a se autoorganizar às margens de um sindicalismo governista e pelego que corroborava a exploração – iniciava-se uma série de greves que se extende até o presente momento. Houve relatados e mal esclarecidos desaparecimentos, prisões e torturas de grevistas em áreas amazônicas de canteiros de obras. Sindicalistas iam de carro oficial pedir aos trabalhadores que não parassem as obras do PAC. Tais obras estavam sendo guindadas a trabalho semi-escravo, com direito a falta de banheiros e surtos de malária, além de verdadeiras prisões de exploração de mulheres em prostituição ao redor dos canteiros.
Além do mais, uma “primavera indígena” de lutas, também pouco midiatizada, se sucede, desde as lutas no sul da Bahia e os episódios quase palmarianos de cacique Babau3 (que foi preso), além da tragédia dos assassinatos e suicídios de índios guaranikaiowá (curiosamente, muitas vezes “atropelados” em estradas de terra) em Mato Grosso do Sul. Além disso, greves também ocorreram nas obras da Copa, em diversos estádios – por vezes motivada até por comida podre4 servida aos operários. Uma característica fundamental de todas estas lutas, muito pouco faladas pela imprensa golpista, e ainda menos pela imprensa governista, é sua acentuada autonomia de organização em relação aos sindicatos burocráticos e partidos políticos institucionais. Jornalistas enfocam apenas as reivindicações, e raras menções são feitas ao fato de os trabalhadores estarem a se organizar à margem do sindicalismo oficial – como ocorre também com greves de motoristas e cobradores de ônibus em muitas cidades. Ao ataque ao valor da força de trabalho, sucedeu a resposta do proletariado.5


 3) A eclosão da Onda: a “Revolta do Vinagre”.
Após um processo nacional de abusivos aumentos nos preços de transportes, a luta social em Porto Alegre foi de forma inédita vitoriosa em reduzir o valor da tarifa de ônibus, deflagrando uma onda nacional de lutas sobre o preço das tarifas de ônibus e metrô que se espalhou pelo país. Não se trata mais do que da luta sobre o valor da força de trabalho, achatado pelo aumento dos preços, e um processo que faz lembrar as lutas italianas de auto-redução de preços e tarifas dos anos 60-70.
Após uma jornada de protestos do Movimento Passe Livre com uma frente de lutas em São Paulo, seguida por uma brutal repressão que culminou no trágico dia 13 de Junho, no qual manifestantes eram detidos apenas por portar garrafas de vinagre, a onda de revolta pareceu ter seu estopim. Uma radicalização generalizada tomou conta da capital paulista, da cidade do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, Distrito Federal, Salvador, Belém e outras cidades, culminando em violentos enfrentamentos com a polícia e ataques diretos dos manifestantes a prédios públicos, empresas, bancos e ônibus. Foi quando, subitamente, os protestos, principalmente em São Paulo, após uma comoção gerada por uma repressão violenta que culminou em dezenas de detenções e feridos, obtiveram uma imensa adesão e milhões de pessoas saíram às ruas em todo o país. Porém, alguma mutação um tanto estranha estava em curso.

4) Quando a Revolta vai para o Vinagre. Surge a Revolta das Coxinhas. De
68 a 64.
Originalmente, manifestantes empregavam a expressão “coxinha” para se referir a fardados. Porém, os desdobramentos do processo de luta produziram um efeito curioso: que coxinha passasse a ser um designativo irônico e pejorativo para a classe média conservadora em geral.
A classe média, uma esfinge sociológica, a nosso ver é uma categoria um tanto polêmica e de existência fundamentalmente simbólica e ideológica. Se definimos classes como funções sociais coletivas em posições ocupadas dentro do processo de produção (definição de Marx, e que não necessariamente implica apenas estatutos jurídicos de propriedade, pois a apropriação também pode se dar por relações informais de contrôle burocrático), teríamos a rigor dois campos – capitalistas (burguesias e tecnocracias gestoriais) e trabalhadores. Já a definição jornalística do senso comum e de algumas teorias sociológicas define as classes por níveis de renda e consumo, pela superfície do mercado, fetichizando as relações sociais. A chamada classe média seria, em nosso entendimento, uma zona de transição e indiferenciação entre o alto proletariado (setor da força de trabalho mais qualificado, exercedor de trabalho mais complexo, melhor remunerado, com maior consumo e nível de formação e sob o predomínio do regime de exploração da mais-valia relativa) e o baixo gestorialato da hierarquia administrativa empresarial. Incluem-se aí pequenos proprietários6 (pequena burguesia, e comerciantes), além de profissionais liberais e funcionários públicos. Entretanto, é preciso frisar que cada vez mais os pequenos proprietários estão sob os ditames de produtividade das grandes cadeias às quais sua atividade se integra; e que de forma idêntica as profissões liberais têm se proletarizado consideravelmente – como podemos ver nas firmas de advogados, médicos sob estruturas de hospitais privados e planos de saúde, etc. O funcionalismo público, em boa parte também sofre proletarização, é explorado pelo estado enquanto capitalista coletivo, e muitas de suas funções referem-se à manutenção das condições gerais de produção do capital, estando assim inseridas no trabalhador social agregado – é o caso dos professores, que produzem futuros trabalhadores. A classe média, entretanto, ideologicamente, se não é uma classe capitalista, tampouco se reconhece como classe trabalhadora, portando a ideologia do ressentimento e da ascensão social através do estudo e crescimento profissional. Esta é uma das maiores fraturas no interior da classe trabalhadora – a saber, entre os trabalhadores do setor de predomínio da mais-valia relativa e o campo da mais-valia absoluta (precários, exército de reserva).
Com a crise e arrocho do valor da força de trabalho através de impostos e inflação, especialmente aumento dos preços dos planos de saúde, uma classe média cada vez mais proletarizada e achatada reagiu à sua maneira peculiar. Saiu em massa às ruas, de verde e amarelo, em protestos com moldes conservadores concentrados no “combate à corrupção”, algumas reivindicações acerca de serviços públicos (especialmente de saúde e educação, uma vez que o seu rebaixamento social frequentemente leva a depender do SUS e colocar filhos cada vez mais em escolas públicas), e não faltando mesmo alguns grupos com demandas de extrema-direita, como a redução de idade penal, pena de morte, contra o aborto, e mesmo grupelhos fascistas defendendo a intervenção militar. Criou-se um mito de que o judiciário (que não é eleito e é um dos poderes mais conservadores, elitistas e patrimonialistas) deveria usurpar de forma golpista os poderes democraticamente eleitos – o que já vinha acontecendo desde o Caso Battisti, além dos grampos telefônicos, criminalização dos movimentos sociais promovida pelo Ministério Público e investigações arbitrárias (e sua intervenção no caso Mensalão acompanhada de sua neutralidade em relação a corrupções similares ligadas ao PSDB). Chegava-se a propagar pelo facebook fotografias comparando Joaquim Barbosa com Batman, e campanhas exigindo a renúncia de Dilma (mesmo sem acusação nenhuma contra ela), Temer, dos presidentes do congresso e senado. Além disso, a recusa dos partidos políticos vista nestes protestos verde e amarelos se dava através de um nacionalismo que misturava da (mais replena de boas intenções) ingenuidade e despolitização moralista ao grotesco e truculento antiesquerdismo; assim, os protestos eram forrados de verde e amarelo, palavras de ordem que diziam que um suposto gigante teria acordado, que “o povo acordou”, “sou brasileiro com muito orgulho”, “vem pra rua” e etc. O curioso é esta reação à redução do valor da força de trabalho e à crise, ocorrendo como parte de uma onda mundial de lutas num contexto internacionalista, se vestir de discursos nacionalistas e mesmo chauvinistas: “primeiro temos que consertar nosso jardim”; “dane-se a Turquia, eu quero saber é do Brasil” - como se as ondas atuais de luta não tivessem em comum uma reação generalizada da classe trabalhadora mundial aos ataques capitalistas que sofre como consequência do processo de crise do sistema produtor de mercadorias. A propósito, a comum fala da classe média acerca de consertar o jardim lembra a simpática figura do jardineiro do filme Muito Além do Jardim, interpretada por Peter Selers7. A classe média assustada com a proletarização saiu às ruas, mas suas demandas, ora oscilavam entre o pedido por serviços públicos, ora a tons fascistoides. O discurso do combate à corrupção, da forma como é veiculado (e, diga-se de passagem, foi uma cultura a qual o PT contribuiu muito, na medida em que, nos anos 90, trocou o discurso da luta de classes pelo da moralização da política), desvinculado da perspectiva classista, se transforma facilmente em discurso fascista e mesmo anticomunista. Ideólogos da direita raivosa, como Reinaldo Azevedo, a Revista Veja, Olavo de Carvalho (este último com assustador numero de adeptos), Arnaldo Jabor, José Nêumane Pinto e outros (até a famosa Rachel Sherazade, cujos comentários em nada lembram a personagem de Mil e Uma Noites), fazem discursos que associam a corrupção com uma esfera pública expandida (e, implicitamente, apregoam o privatismo dos serviços sociais e públicos, contra o “desperdício de dinheiro” do “comunismo” do estado. Tudo se reduz a “má administração”.). O discurso do combate à corrupção sob este viés moralizante praticamente confunde corrupção com comunismo – como se o PT, mais tecnocrático e capitalista que nunca, ainda tivesse alguma coisa de socialista. Assim, uma revoada conservadora tomou conta da Avenida Paulista, e não faltaram agressões violentas a militantes de partidos de esquerda, desde os pelegos governistas, até radicais como PSTU, oposicionistas como PSOL, fora a militantes de movimentos como a Uneafro e mesmo anarquistas. Vários militantes de esquerda foram internados e alguns em estado grave após serem espancados simplesmente por portar bandeiras – vários deles do PSTU. Aos gritos de “fora partido!”, se legitimava uma confusão política entre a justa recusa do aparelhamento dos movimentos sociais pelos grupos políticos partidários e posições fascistas de antiesquerdismo e anticomunismo (pois os ataques eram a tudo que lembrasse a cor vermelha – houve casos de pessoas que foram agredidas até por usar roupa vermelha inadvertidamente). Um bloco de anarquistas atravessou heroicamente marchando de braços dados em meio ao protesto nacionalista, levando pontapés, mas defendendo o anti-nacionalismo e cantando suas palavras de ordem, e saiu ileso na outra ponta da Avenida Paulista. A “família pobre” dos militantes libertários em meio a aquele protesto da classe média talvez tenha gerado perplexidade.
O fato é que foi amplamente divulgado a infiltração de grupos de extrema direita (integralistas, neonazistas, carecas, e mesmo juventudes do PSDB e DEM à paisana) para incitar agressões, mesmo portando facas, soco inglês e tacos – e se vitimizando quando levavam alguma bandeirada. Houve uma clara tentativa de uma extremadireita, aproveitando-se de certas mentalidades conservadoras da classe média despolitizada, apropriar-se dos protestos.
A esquerda ficou extremamente assustada, e chegou a se falar, em debates, sobre a possível atuação de fundações americanas como a CANVAS8 para tentar se apropriar da onda de lutas e desestabilizar o governo – fora que as demandas colocadas na internet pelas páginas mais populares do facebook eram marcadamente conservadoras – as próprias 5 pautas dos Anonymous fizeram muitos, perplexos, questionarem se se tratava de fato do verdadeiro grupo Anonymous. O MPL declarou não fazer mais mobilizações, assustado, mas depois voltou atrás. Assim, um processo de lutas sociais que se pautava em questões concretas – custo de vida, preços de tarifas, hospitais, escolas – sofria seu desvio politicista para demandas difusas e abstratas, como a luta contra a PEC 37 (conflito acerca justamente da judicialização da política).
Após uma enquete sobre os protestos que surpreendeu Datena, a própria grande mídia começou a falar muito bem dos protestos (em sua versão de verde e amarelo, obviamente), e a própria FIESP colocava a bandeira nacional sobre suas paredes, enquanto empresas dispensavam seus empregados e davam bandeiras brasileiras para irem aos protestos. Até as vuvuzelas eras ressuscitadas naquele alvissareiro momento da política nacional.
Assim, a “Revolta do Vinagre” de fato parecia estar “indo para o vinagre”, e se ensaiava uma revolta do Espetáculo, com apóio da Rede Globo, Veja, grande mídia e até de corruptos conhecidos como Renan Calheiros e Collor – o que empresta um tom
hilário a tudo. A classe média ensandecida em uma barafunda patriótica fazia assim sua “revolta dentro da ordem”, sentando no chão para “entregar os vândalos” e gritando “sem violência” aos quatro ventos. Não foram raros os casos de os próprios manifestantes imobilizarem supostos “vândalos” e os entregarem à polícia, ou os filmarem e delatarem. Era a “Revolta das Coxinhas”, a “coxice” conservadora tomando conta das ruas. Pelo menos era o que pela grande mídia passava, embora esta não fosse a realidade nas periferias, nem no Nordeste, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre e muitos lugares mais. A patriotada ao melhor estilo de 1932 na Paulista era exibida como sendo a regra geral; e mesmo revistas conservadoras e reacionárias como a Veja produziam novos heróis, de classe média e de direita. Era a revolta da classe média indignada por ter de pagar FGTS para suas empregadas – pobres, muitas vezes afrodescendentes, e que não iam aos protestos. Refundaram-se mesmo grupos como a Organização de Combate à Corrupção, Comando de Caça a Corruptos, Movimento Contra a Corrupção, União Contra a Corrupção, cujos fins de sigla sempre compunham o “CC”, emprestando um ar de refundação do Comando de Caça a Comunistas, sob novo nome, uma vez que hoje “comunismo” (e esquerdismo) são sinônimos de corrupção no discurso destes grupos.Mas esta apropriação fracassou. Convocou-se pelo Facebook uma pseudo-greve geral para Primeiro de Julho, à qual pateticamente ninguém aderiu. Não era incomum se entrar em um trem e ouvir alguém a dizer: “ei, por acaso você ouviu falar de uma tal de greve?” Líderes fascistóides convocaram para 10 de Julho um protesto pedindo uma “intervenção militar”, mas não reuniram sequer 30 pessoas na Cinelândia do Rio, nem oitenta na Avenida Paulista, em São Paulo – e ainda encontraram outras manifestações nas ruas e foram ridicularizados. O assustador Gigante Egoísta9 e fascista parecia estar ficando de novo com sono, e a classe média, orgulhosa de ter cumprido com seu dever (“avante brasileiros, sempre avante”), guardava suas mascaras de “V de Vingança” (fabricadas com mão de obra semiescrava em fabriquetas miseráveis) e voltava para casa, para curtir posts conservadores e moralistas no facebook produzidos pelos diversos grupos publicitários profissionais posicionados em pontos nodais da rede social não tão horizontal assim. Não era bem o movimento popular, nem revolucionários heróicos, mas o próprio Facebook e a inércia da passividade que provocaram a “revoada das coxinhas verdes”. Guy Fawkes se retorceria na tumba se soubesse.
Durante este tempo, talvez tentando-se imitar a derrubada de Allende, ensaiou-se um lockout que também não deu certo, no qual empresários de transportes fizeram caminhoneiros paralisar estradas, culminando no assassinato de um trabalhador autônomo que furou o bloqueio. E a classe média seguia adiante, pedindo pelo facebook a renúncia de Dilma (mas por qual acusação até hoje não se sabe).

5) Depois da patriotada, a vez da pelegada.
As forças de esquerda (incluindo as que como tal são conhecidas), assustadas com a “patriotada”, conseguiram o feito inédito de se unirem (fora da cadeia, único lugar onde as esquerdas sempre se uniram na história) em mais de 70 organizações para convocar um dia nacional de lutas para 11 de Julho. Da pelegada governista da CUT, Força Sindical, CTB (ligada ao PC do B), UGT (ligada ao PSD de Kassab), UNE; aos oposicionistas de esquerda CSP-Conlutas e Intersindical, junto ao MTST, MPL, MST (o último fragmentado, em parte governista, em parte oposicionista, em parte não se sabe mais) e muitos grupos, incluindo anarquistas e coletivos independentes, se tirou uma pauta comum de protesto. Porém, no dia, as centrais governistas, além de “darem para trás”, não trouxeram trabalhadores às ruas, mas pagavam dinheiro para pessoas engrossarem pequenos volumes e segurarem balões. Ações radicalizadas e populares só ocorreram nas periferias de São Paulo, com o MPL, MTST, Rede Extremo Sul, e outros movimentos sociais; enquanto isso, a polícia invadia a sede da Federação Anarquista Gaúcha e confiscava seus livros e supostos “materiais para fazer molotovs”.
Ficou evidente a total perda de credibilidade e base das centrais sindicais, que são verdadeiras estruturas empresariais gigantescas, mas sem trabalhadores e sem trabalho de base. Assim, fracassava a tentativa de apropriação das lutas também pela esquerda institucional dos partidos e sindicatos burocráticos. Após isso, a autonomia dos movimentos iria se reforçar ainda mais. Com o adormecimento do gigante, começaram as ocupações de câmaras e assembléias legislativas – em Porto Alegre, Belo Horizonte, São José dos Campos, fora muitas cidades mais. Surgiam organismos populares horizontais e autônomos de ocupação de prédios administrativos públicos, algo muito pouco noticiado pela mídia – e que começaram a formular projetos de leis populares.
Igualmente, a CSP-Conlutas e Intersindical (única central não institucionalizada e não aparelhada partidariamente) conseguiram fazer diversas paralisações; movimentos sociais bloqueavam rodovias por todo o país, e em revoltas comunitárias pedágios chegaram a ser incendiados; e além disso, até reivindicações como passarelas em estradas eram colocadas a público pela primeira vez, embora sempre existissem. Assim, a classe trabalhadora, de forma não-midiática, e autônoma, coloca sua multiplicidade de demandas concretas, em oposição aos programas abstratos e difusos dos candidatos a futuros gestores da direita fascistóide e da pseudo-esquerda governista e pelega.
Assim, fracassaram as tentativas de apropriação do movimento pelos grupos da direita conservadora, bem como da ala governista. A ala conservadora concentrou seus ataques ao governo e a denunciar os “vândalos” – uma quebradeira em Leblon era mais escandalosa do que a chacina de 14 pobres no Complexo da Maré e o desaparecimento de Amarildo, um operário. A pseudo-esquerda vitimizava-se alegando que todo e qualquer protesto era golpista, sem distinguir entre as revoltas sociais de base e as patriotadas de classe média. Chegou-se ao cúmulo de militantes do PC do B espancarem anarquistas no Rio de Janeiro e depois o Partido declarar apoio público a Cabral, no momento em que ele propunha leis que iriam perseguir protestos sociais e violar o sigilo de telefones e internet de ativistas. Mas o movimento social sofre, neste momento, mais uma mutação, com um importante acúmulo qualitativo, especialmente no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no qual a ação do Bloco de Luta pelo Transporte Público
conseguiu forçar o governador petista Tarso Genro a se desculpar com a Federação Anarquista Gaúcha (FAG) – embora não tenha devolvido os livros. Um outro fato histórico a ser considerado – pela primeira vez em talvez setenta anos, os jornais voltavam a falar em anarquismo e anarquistas – e é inegável que organizações autônomas e anticapitalistas como o MPL e a FAG tiveram um papel crucial de articuladores de lutas sociais, configurando um extravasamento do movimento social
em relação ao controle e aparelhamento de partidos políticos e burocracias sindicais inédito e histórico em nosso país.

6) Revoltas do individualismo encapsulado. Curtir ou não curtir: eis a
questão. Compartilhar? Apenas pelo Facebook!
O antipartidarismo presente no frisson verde e amarelo, de certa forma, expressa a condição social do individualismo extremado. O que saía às ruas não eram coletividades organizadas, mas mônadas egoísticas, cada uma com um cartaz querendo uma coisa diferente. As passeatas tinham a forma do facebook – cada cartaz individualizado sendo como um post individualizado na “news feed” da rede social. Em que pese esta autonomia dos quereres individuais, não havia de fato auto-organização na revolta espetacular da superfície de todo o processo (o que já era bem diferente nas revoltas sociais de fundo, menos midiáticas e associadas ao vandalismo). Uma catarse coletiva dos muitos “eus” aprisionados em bolhas, com seus computadores e celulares, ansiosos por algum tipo de vivência coletiva e real, se transformava em um carnaval fora de época, com tons de micareta e copa do mundo, com uma perplexidade de quem nunca viu tanta gente nas ruas, realmente criando uma “situação” debordiana, no mau ou pior sentido do termo. Assim, “#vem pra rua”, e “tira foto no protesto pra botar no facebook” (paródia de um funk bem conhecido). Talvez o episódio mais pitoresco tenha sido o encontro, pelas ruas, de um grupo da classe média conservadora que voltava para casa, com um grupo de pixadores e skatistas – que estavam em sua área e eram rapazes oriundos de periferia. Uma vez vendo os rapazes a “pichar” algo, o grupo patriota começou a gritar “vândalos, vândalos!”. Os rapazes reagiram em provocação pichando ainda mais, e correram o grupelho direitoso para fora dali; este, retornou com mais colegas e amigos, mas acabou por levar uma sova daqueles rapazes da periferia. Este episódio virou uma espécie de lenda emblemática que ilustra o processo. Enquanto isto, verdadeiras milícias fascistas circulavam pela região dos arredores da Avenida paulista, agredindo homossexuais e pessoas identificadas como supostos “esquerdistas”.
A negação do político nos protestos – uma vez que se agrediam portadores não apenas de bandeiras, mas até de faixas de movimentos sociais e cursinhos populares para afrodescencentes – aparece como afirmação da atomização capitalista individualística e reforço do mito da “neutralidade política”, que nada mais é do que a
ideologia dos gestores e tecnocracias em estado mais puro. Quantas vezes Serra e Alckmin, para espanto de todos, acusaram greves de servidores e movimentos sociais de serem movimentos “Políticos” (o que causa estupefação)? As palavras “Política”   “Político” parecem assumir sentido pejorativo e desqualificativo – talvez, porque justamente signifiquem conflito social e luta de classes – sendo a negação do político o epifânio da ideologia da neutralidade instrumental da técnica, da administração, e da forma-mercadoria reinante. Reinaldo Azevedo apressou-se em, como sempre faz, descobrir que o Movimento Passe Livre hospedava sua página em uma ONG digital nomeada Alquimídia, que teria recebido mais de 700 mil reais do Governo Federal.
Logo, para ele, o MPL só poderia ser uma sigla petista e pertencente ao PT, como aliás, qualquer movimento social reivindicativo só poderia ser petista para ele e sua revista. Só não chegaram ao ponto de acusar a FAG de ser petista; mas na matéria “Organizadores do Caos”, a Revista Veja defendeu abertamente a identificação, investigação, monitoramento e perseguição a grupos anarquistas em geral.
E de outro lado, quantas vezes os gestores novos-ricos do PT se vitimizaram durante o processo, colocando os protestos protofascistas e as lutas sociais de comunidades e classistas em um mesmo barco do “golpismo”?
Fica evidente, em toda a narrativa oficial que falsifica o processo de lutas, a imensa fragmentação social e também inchaço da virtualidade, a espetacularização das lutas. Quando a grande mídia passa a defender os protestos, alguma coisa só pode estar errada. Mas também, inúmeras vezes grupos manifestantes mais radicalizados rechaçaram a mesma mídia. Isso se devia ao fato de que não havia um único manifesto, mas um mosaico de manifestos do qual, a única certeza que podemos ter, é a de que “havia de tudo”.
A negação do político, como ideologia reificada do tecnicismo, é extremamente perigosa. Esteve presente em regimes fascistas, e esconde a ambição política das tecnocracias em regulamentar a sociedade de forma total, em uma soberania das empresas. Não existe vazio político, não existe apolítico, não existe neutralidade na luta de classes. Ou se está a defender um lado, ou o outro; o político é difuso, molecular.

7) A verdadeira recusa.
Entretanto, a verdadeira recusa das mediações políticas (partidos, sindicatos burocratizados) expressa na grande autonomia dos protestos de periferia, ocupações e lutas mais radicalizadas não pode e não deve ser confundida com o individualismo conservador antipartidário. Coexistem, nesse processo de lutas, todos estes momentos.
Nos protestos facebookianos mais fascistóides que pregam a “revolta dentro da ordem”, a negação do político (e da esquerda, das classes sociais) é a ideologia da tecnocracia e da judicialização da política. Porém, o novo caráter das lutas sociais de fundo e de base, tão incompreendido e silenciado na grande mídia, apresenta uma recusa diferente. Não são lutas apolíticas, mas profundamente políticas. São talvez, a verdadeira oposição de esquerda, de grupos de trabalhadores se auto-organizando como podem, recusando as burocracias partidárias e sindicais, a falsificação midiática, e chegando a profanar, com seus protestos, a divindade do futebol e mesmo a visita do Papa, e perguntando por Amarildo e por todos que são vitimizados pela violência do Estado. Esta iconoclastia de setores sociais precários e também de certos setores mais qualificados em precarização – em estado de revolta – realmente representa a percepção de que estão a surgir novas formas de fazer política, a partir de baixo.
[-] www.sinaldemenos.
8) Um aspecto importante a ressaltar.
Lutas por serviços públicos também são lutas sobre o valor da mercadoria força de trabalho. É fundamental perceber isto, para entendermos como formas de consciência limitadas da luta de classes fazem com que o ataque comece reivindicando serviços e direitos sociais ao capitalista coletivo, o Estado. Isto também é luta de classes – se considerarmos a produção capitalista como um imenso trabalhador social agregado e expandido à totalidade social, uma fábrica social. Igualmente, se a demanda do “combate à corrupção” pôde ser colocada pela direita fascistóide, a denúncia das máfias de transportes, dos desvios de dinheiro de hospitais e, principalmente, dos gastos da Copa e em construção de pirâmides do PAC, podem ser formas de problematizar a corrupção como inerente aos grupos empresariais e à própria reprodução da estrutura de classes. É o momento em que os empresários, de bons moços apolíticos e que aparentemente nada tem a ver com isso tudo, aparecem como beneficiários das malhas de apropriação informal e patrimonial dentro do Estado.

9) O mosaico.
A heterogeneidade das revoltas, enfim, se apresenta como expressão da própria fragmentação dos trabalhadores gerada pela atual estrutura de divisão social do trabalho. Há lutas de “classe média” e lutas de favelas ocorrendo simultaneamente, embora as últimas tenham crescido e as primeiras definhado nas últimas semanas.
Permanecem nas ruas setores da classe média mais progressistas, aliados às demandas GLBTT, grupos feministas, em protestos contra a Copa, contra despejos e lutas de favelas e comunidades vítimas de massacres. Em Salvador, não faltaram relatos de prisões e tortura de manifestantes pobres. No Rio de Janeiro, o Estado massacrou trabalhadores na favela do Complexo da Maré, deflagrando protestos, especialmente após o desaparecimento de um operário pobre em uma comunidade (Rocinha).
Espantosamente se uniram, nas ruas, pessoas de comunidades pobres indignadas com a violência do Estado e a militarização, além da falta de hospitais e os gastos da Copa, com pessoas mais politizadas e de maior formação e nível de estudo, em um mesmo protesto.
Seria um ensaio de processo de recomposição de classe, ainda que em níveis restritos?
Se há uma dicotomia clara de lutas entre os protestos da classe média e os das comunidades, esta divisão por sua vez é cindida também. Setores mais progressistas da classe média se organizam ao redor dos movimentos GLBTT e feministas contra o conservadorismo religioso no Congresso Nacional, e grupos que contestam o aumento da repressão. Por outro lado, nos setores de trabalhadores precários, há uma imensa hegemonia conservadora representada por um imenso bloco de Igrejas Evangélicas.
Estas, em grande parte, exortaram seus fiéis a não participarem de protestos – sob o
discurso Paulino da “obediência às autoridades, que são instituídas por Deus” (chega-se a dizer que protestar é “pecado de rebelião”, equivalente a “feitiçaria”). Mas isto também não impediu de que muitos evangélicos estivessem nas ruas misturados aos demais protestos. Mas espantosamente, as igrejas, que são instituições poderosas que
controlam parcelas do Congresso Nacional e bilhões de reais em patrimônio, silenciaram sobre as revoltas – exceto por algumas declarações de Silas Malafaia apoiando os protestos “contra a corrupção” e criticando a “militância gay” (porém, a bancada evangélica encontra-se dividida entre um setor governista e um de oposição. O próprio Marco Feliciano fez campanha para Dilma, antes de criticá-la). Se o campo das igrejas evangélicas representa uma ala conservadora no interior do precariado, a contradição de classes também se apresenta dentro das igrejas, nas quais uma base de fiéis mais pobres, com renda de 1 a 3 salários mínimos, é politicamente dirigida (e sustenta com seus dízimos) por um estrato de pastores e pregadores que constitui uma verdadeira camada de novos ricos e uma classe média conservadora e monopolizadora das exegeses religiosas. O discurso que aposta na subjetividade mercantil e na idolatria do trabalho abstrato e da economia enquanto deus-dinheiro também encontra seus limites e contradições na crise capitalista que condena à pobreza e limita a prometida ascensão social de milhões de fiéis pobres, que muitas vezes encontram em sua solidariedade mútua mais assistência do que em seus pastores e igrejas.
A classe media se divide, nos protestos, em setores que vão do espectro progressista ao mais conservador (este último de maior peso e presença na mídia).
Podemos concluir, grosso modo, que a totalidade dos protestos expressa o próprio mosaico da divisão do trabalho da força de trabalho nacional, com suas demandas e contradições, e conflitos inter-classe. Se a autonomia de determinados setores de luta
poderia ser animadora, a fragmentação social expressa também demonstra a solidez da dominação capitalista sobre a mesma força de trabalho, que impõe grandes desafios às lutas sociais. Enquanto pessoas pobres reivindicavam hospitais, grupos de médicos levavam demandas contraditórias, que iam desde questões de falta de infraestrutura em hospitais, enquanto a grande mídia apimentava a discussão com uma apologia contra a importação de médicos cubanos (que seriam “espiões comunistas”, segundo a Revista Veja, ainda em clima de Guerra Fria). Até mesmo acupunturistas protestavam pelo direito a exercer seu ofício, que as associações de médicos querem restringir a diplomados.

10) O duplo caráter das revoltas.
Podemos dizer que temos diante de nós, dentre o citado mosaico, duas vertentes de luta contraditórias. De um lado, os protestos mais conservadores, apoiados pela mídia e englobando a classe média mais conservadora e grupos fascistóides, cuja pauta central é o moralismo político (enquanto fachada para um radical anticomunismo e antiesquerdismo), e cuja frágil organização se dá pela publicidade dos virais de facebook10, onde a “opinião pública” é a mais perfeita expressão da preguiça individual.
Podemos dizer que mesmo no âmbito das direitas e das demandas conservadoras, há
uma verdadeira indigência intelectual: considerar o PT “comunista” e tratar as coisas
em termos de guerra fria indica que as direitas, tanto quanto as esquerdas em geral, andam bastante desatualizadas ideologicamente, embora seu apelo ao emocional e irracional seja muito sedutor a uma população despolitizada à espera de redentores, dentro da imensa renúncia de si religiosa da ideologia do trabalho. É necessário ressaltar, que ao lado do partido da imprensa golpista, há também o partido da imprensa governista e os novos ricos das burocracias sindicais e partidárias petistas no poder, a tentar se apropriar dos protestos, e veiculando também sua propaganda através de blogueiros profissionais. O discurso oficial tenta colocar o conflito social como um problema de “governo e oposição” ou conflito entre tucanos (“apartidários”, “apolíticos”, amamentados com glicerina em tenra infância e com gosto de sabão de coco) e petistas (mensaleiros, corruptos, “vermelhos”) que se autovitimizam também, desqualificando qualquer critica feita por um viés de esquerda como algo que faria “o jogo das direitas”.
Mas, longe desta oposição ser luta de classes, é uma luta intestina de ambas as tecnocracias concorrentes à gestão do mesmo projeto de administração da crise do capital. Se o PSDB reprime os protestos, Agnello (DF), Tarso (RS) e outros governos petistas os reprimem com igual violência e truculência. Cabral integra a base do governo federal, que conta com Sarney, Collor, Maluf, ruralistas, Katia Abreu, Chalita (opus Dei, que foi alvo de greves de professores), Delfin Neto, Kassab e seu PSD, enfim, toda a velha ARENA. O PT no poder abriu mão dos trabalhadores, para, sob uma casca de aparente esquerda, incluir dentro de si as velhas elites de sempre – a metáfora geológica da pseudomorfose na qual uma rocha erodida fica oca e é preenchida por segmentos de outro tipo de rocha, configurando uma rocha com aparência de outra.11 O Lulismo, para além de continuidade das políticas tucanas de flexibilização trabalhista e previdenciária, abriu mão da luta de classes e das organizações de base, para integrar poderosos empresários como Eike, a Gerdau, empreiteiras, agronegócio, uma tecnocracia de analistas, e o messianismo católico (foram-se embora as comunidades eclesiais de base, ficou a estrutura de Igreja). Um misto de PRI mexicano com traços peronistas. Esta opção política teve um preço muito caro – a desmobilização da luta de classes e dos movimentos sociais de base, que permitiu o avanço da direita raivosa e conservadora como resposta.
Temos, porém, um processo geral, molecular, de disseminação de imensa variedade de protestos sociais de forte caráter independente e autônomo, reivindicando coisas aparentemente pontuais, mas que são muito mais perigosas para a acumulação capitalista do que as pautas difusas do exercito brancaleone anti-corrupção e do governismo pelego. Reivindicar reduções de tarifas afeta muito mais diretamente o aparato de poder (o mesmo que sustenta a corrupção) do que reivindicar moralizações administrativas. A corrupção, problema estrutural e endêmico da gestão da sociedade produtora de mercadorias, se apresenta intimamente ligada à estrutura de reprodução de classes, e uma mescla das modernas formas de dominação burocrático-racionais com as carismáticas e patrimoniais de poder pessoal, um fenômeno peculiar de formações capitalistas de periferia. Uma reforma agrária afetaria muito mais os grupos envolvidos na “corrupção” do que pautas políticas abstratas de reforma política ou “caça a corruptos”. Tal é a inocuidade do discurso anticorrupção, que a proposta de tornar a corrupção crime hediondo foi defendida pelos mais corruptos do aparato político.
A mesma censura feita por Lênin aos sindicatos e movimentos sociais russos, de que estes teriam caráter apenas de luta econômica e uma incapacidade de se erigir a níveis de luta política, reaparece no discurso das direitas fascistóides (e também da pseudo-esquerda no poder), sempre tendo em comum negar a capacidade política dos trabalhadores e dos movimentos sociais. A Revolução Russa e todo o processo de autogestão dos sovietes não ocorreram por programas políticos, mas foi detonada por
reivindicações sensíveis, como alimento, acesso a terra, fim da guerra, da militarização e repressão, etc. Foi justamente o programa proposto pelo Partido bolchevista que destruiu as formas comunais e introduziu a modernização recuperadora via capitalismo de estado. Curiosamente, as direitas políticas hoje atacam os protestos pontuais (“não são apenas vinte centavos” – este é um mote muito contraditório e que permite margens muito grandes de interpretação), acusando-os de querer apenas reivindicações imediatas e não ter um “programa” ou “projeto” geral e nacional “contra a corrupção”. A classe média conservadora tende a desprezar as lutas comunitárias em geral. A pseudoesquerda governista, por sua vez, se vitimiza atribuindo aos protestos um caráter de puro golpismo e também acusa sua falta de “direcionamento político” (governista, é claro). O mais curioso é que, justamente quando se introduzem as demandas abstratas e difusas, é que os protestos perdem sua força e seu foco original nas reivindicações concretas e reais – este é o típico golpe das burocracias sindicais, que formulam pautas de reivindicações extensas com uma ou duas dezenas de itens, de forma a tirar o foco das lutas e enfraquecer o movimento (e permitir aos burocratas sindicais negociar a portas fechadas com o governo – como a direção da APEOESP sempre faz com governos do PSDB; uma boa campanha centrada apenas na redução de alunos por sala ou em salários maiores mobilizaria muito mais o professorado do que as “pautas” confusas, extensas e abstratas das burocracias sindicais). Justamente o que cabe perceber aqui é que o desvio das demandas sociais concretas para “programas anticorrupção” ou demais programas abstratos de reformas institucionais ou políticas constitui justamente a tentativa de enquadramento das lutas sociais, sua recuperação capitalista e conversão das lutas em mecanismos da própria acumulação do capital – e, no caso atual, em meras demandas de administração de crise em formas repressivas. Cabe lembrar que, em países tidos como modelos de “gestão séria” e baixa corrupção – como a Alemanha, por exemplo – se encontra a mais eficiente máquina de exploração da força de trabalho, sob os mecanismos da mais-valia relativa. O “combate à corrupção”, como lugar-comum, se torna mais fácil e cômodo do que criticar as estruturas do estado e do poder político separado, e as relações de exploração de classes (nos casos de “corrupção política”, as cifras são sempre de milhões. Os lucros das empresas, obtidos sobre a exploração da força de trabalho, são da cifra de bilhões. Entretanto, nada se fala a respeito disso; o “político corrupto” torna-se o escândalo espetacular, enquanto o empresariado permanece invisível e incólume, por detrás.). Revela-se, enfim, como um programa que nada mais visa que a melhoria do próprio funcionamento capitalista e do controle social.
Lutas por demandas sensíveis e concretas em uma miríade de protestos de base; de outro lado, reações fascistóides pedindo pautas abstratas de moralização, judicialização da política e militarização. Afinal, não temos diante de nós a dialética entre a afirmação das necessidades sensíveis e úteis oposta à generalidade sistêmica do trabalho abstrato, na forma de uma dicotomia de vertentes?

11) Perspectivas parciais.
A crise de fato se instala e tende ao agravamento. Com ela, a agudização dos conflitos sociais e da reação de criminalização do protesto social. É possível vislumbrar, como resposta capitalista, o aumento da inflação (especialmente sobre alimentos e aluguéis, além de energia e água) e da crise de financiamento do Estado. Igualmente para manutenção do atual projeto de administração da crise e capitalismo de empreiteiras, o aumento da repressão e militarização social para viabilizar a Copa e as Olimpíadas. É preciso injetar o capital fictício em alguma coisa, para que este dinheiro não evapore ou derreta.
Coloca-se diante da esquerda e dos movimentos sociais, em primeiro lugar, a urgente necessidade de fazer circular as lutas – circular as noticias, informações e contatos entre movimentos diferentes, rompendo o bloqueio de informações, possibilitando uni-las pela base em programas práticos que permitam um acúmulo de poder social dos trabalhadores e uma recomposição política da classe para os enfrentamentos sociais – como o fez o Bloco de Luta pelo Transporte Público, em Porto Alegre. Para longe de se tratar de uma “crise de direção”, o movimento social padece da fragmentação colocada pela própria organização do trabalho e engenharia social capitalista. O esvaziamento das bases coloca em crise as lutas sociais em geral, fazendo as direções de movimentos se descolarem das bases e estarem em crise permanente (ao invés de revolução permanente). E as novas modalidades de luta, por sua vez, com seus princípios e práticas de organização em rede, autônomas e basistas, questionam as formas tradicionais de fazer política e as direções políticas separadas das bases.
Estaremos diante do ressurgimento de um movimento social autônomo? Isto é uma questão que só poderá ser respondida, como ressaltou certa vez o pensador Marco Fernandes, se as esquerdas fizerem o trabalho de base12, a sua lição de casa que há muito não fazem – porém, as Igrejas Pentecostais a fazem, e muito bem. E não sabemos ainda quais serão as consequências políticas que os modelos de subjetivação postos pelo pentecostalismo irão surtir sobre o cenário político nacional a médio e longo prazo, embora aponte para um conservadorismo tenebroso. Entretanto, a Marcha para Jesus deste ano teve quase metade a menos de fiéis, o que agrava nossa incógnita acerca da capacidade política ou de uma potencial crise das mesmas organizações religiosas.
Em segundo lugar, se coloca a necessidade de discutir os paradigmas das lutas, reabrindo uma esfera pública de debate. Não nos encontramos atualmente em um contexto de modernização que justifique os programas desenvolvimentistas das esquerdas tradicionais, mas justamente diante da crise da valorização capitalista que coloca em cheque estes mesmos projetos de modernização. O atual potencial “assalto proletário” à sociedade de classes que parece se desenhar, internacionalmente, expressa perfeitamente a rápida internacionalização das lutas e o esgotamento das formas tradicionais de fazer política – mediações partidárias tradicionais, burocracias sindicais corporativas. Uma imensa quantidade e maioria de trabalhadores passam sua vida entre empregos, requalificações e períodos de desemprego sucessivamente, não possuindo base sindical ou condição social fixa. Sua mobilidade permanente, que expressa o apogeu do trabalho abstrato, só permite que a contestação social se radicalize a patamares novos e mais generalizados. Entretanto, ante esta nova situação da composição de classes, e de crise estrutural capitalista, parece haver um vazio de compreensão teórica e uma perigosa ausência de um projeto emancipatório e
desmercantilizador que ofereça uma alternativa à barbárie que se desenha para os futuros tempos. Antes, a consciência dos movimentos ainda fica presa ao estreito limite das reformas sistêmicas e propostas que dependem da lógica do dinheiro como um a priori pressuposto. É este vazio teórico que também precisa urgentemente ser resolvido.
As atuais lutas no Brasil também expressam um forte caráter espontâneo, o que é admitido até mesmo pelos especialistas em monitoramento internáutico. Mas a mesma classe em luta enfrenta, cada vez mais, a reação capitalista da criminalização, da vigilância eletrônica sobre as redes e a repressão qualificada. Além disso, impera a
ilusão das redes sociais enquanto instrumento de organização. Na verdade, elas são esferas de debate ideológico, de circulação de informações e sobre lutas, de articulação; porém, elas não substituem as relações sociais no cara-a-cara, a boa e velha organização de base. Por isso, o gigante dos pés de barro foi dormir. É um tanto curioso que favelas e comunidades com menor acesso a redes estejam fortemente engajadas em lutas. Na verdade, é possível a falsificação de uma revolução meramente espetacular feita por redes sociais, de forma passiva. Estas, funcionam como elemento que une o separado enquanto separado, parafraseando Debord. Certamente a revolução não será televisionada, nem mesmo via facebook. Antes, as redes funcionam também como um imenso panoptismo social que permite a vigilância, a classificação, a catalogação, a monitoração, e mesmo a antecipação e manipulação de revoltas sociais através de equações e estudos de comportamento.
As lutas sociais vão encontrar também obstáculos no conservadorismo fascistóide de muitos setores da classe média; e na recuperação capitalista das lutas e reivindicações. O próprio movimento Black Block, recentemente surgido no Brasil, tem passado por um processo de tentativa de espetacularização midiática. A truculência governista, e as tentativas de aparelhamento dos movimentos por representações burocráticas partidárias e sindicais, quando não surgidas do interior do próprio movimento, são outro risco. Estruturas de ONGs e financiamento governamental também podem ser armadilhas de aparelhamento de movimentos e cooptação de lideranças.
É sobre este terreno, complexo e contraditório, que poderá ocorrer ou não uma recomposição das lutas e a reformulação consistente de uma crítica social no Brasil.

Paulo Marques





1 Artigo de Afrânio Castelo, sobre a crise mundial, intitulado “A Caixa de Pandora”, publicado em 28 de Outubro de 2008, pelo PSOL Ceará. Afrânio CASTELO. A Caixa de Pandora. 28/10/2008. In http://www.psolceara.org.br/biblioteca/artigos/92-caixa-de-pandora-artigo-de-afro-castelo (último acesso em janeiro de 2009).
2 IIRSA é a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, um projeto internacional de integração entre governos da América do Sul, capitaneado pelo governo brasileiro, com o objetivo de formar uma malha de condições gerais de produção capitalistas no âmbito do continente. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) se integra dentro deste panorama mais amplo do IIRSA, que é apontado por movimentos sociais como um processo predatório ao meio ambiente, e de preparação de uma rede de infraestruturas para um projeto de desenvolvimento econômico que expressaria um imperialismo brasileiro sobre a América do Sul – e com braços laterais à África Ocidental. Ver o libreto acerca do plano, divulgado pelo Encontro Latino Americano de Organizações Populares Autônomas (ELAOPA): <http://www.elaopa.org/sites/default/files/LibroIIRSA.pdf>. As
obras da Copa e Olimpíadas, de certa forma, se inserem também na expansão de malhas infraestruturais para o desenvolvimento capitalista – integrando empreiteiras e pesados investimentos a crédito governamental. O IIRSA é criticado pela devastação ambiental, pelo incentivo ao agronegócio e à monocultura, pelo ataque às terras de povos indígenas e camponeses, pela precarização trabalhista (“chinesificação” da força de trabalho), e conforma uma base material infraestrutural destinada a uma posterior expansão de empresas, indústrias e atividades econômicas diversas para áreas amazônicas, com a utilização de mão de obra barata e qualificada e plataformas de infraestruturas de baixo custo. O processo de expansão do ensino superior público e políticas de financiamento da educação básica dos municípios pelo MEC, assim como o aumento dos gastos em educação básica se destinam também à produção desta base infraestrutural para uma tentativa de expansão capitalista continental integrada, processo iniciado pelas políticas do Programa para a Promoção da Reforma Educativa na América Latina e no Caribe (PREAL), realizado sob a coordenação do Banco Mundial e durante o governo FHC,
ao qual o governo petista deu perfeita continuidade. É interessante notar que grande parte da atividade missionária neopentecostal sobre nações indígenas também se concentra nestas áreas, além da África Ocidental.
3 Cacique Babau é Rosivaldo Ferreira da Silva, líder de um movimento indígena Tupinambá do Sul da Bahia, preso diversas vezes por organizar movimentos e ações indígenas contra latifundiários. Ver mais informações em <http://www.midiaindependente.org/pt/red/2010/03/467485.shtml> (2010).
4 Ocorreram greves nas obras da maioria dos estádios da Copa, com especial destaque para a greve do Maracanã, em Setembro de 2011, motivada por falta de condições sanitárias e pela distribuição de comida podre aos trabalhadores. O próprio deputado Romário criticou duramente as condições detrabalho a que estavam sendo submetidos os operários. Não se trata exatamente do Encouraçado Potemkin, mas dentro do “encouraçado tupiniquim” em plena Terceira Revolução Industrial, o capitalismo ainda é aquele.
5 Se este não é dotado de nenhuma natureza metafísica ou messiânica enquanto classe revolucionária, nem mesmo pode surgir uma emancipação social de sua condição dada a priori enquanto momento do capital como força de trabalho; é justamente em resposta à violência da exploração e à opressão da organização do trabalho, e também por ser característica básica de todas as sociedades e grupos humanos possuir o político e o poder político enquanto atributos próprios (fato mais que comprovado pela pesquisa antropológica), é que esta classe trabalhadora acaba por se recompor politicamente e se auto-organizar, constituindo relações sociais de luta horizontais, igualitárias e solidárias em direto confronto com o sistema, que potencialmente podem se projetar em direção aos meios de produção, autogerindo-os e iniciando embrionárias formas de novas relações sociais, de novo tipo, potencialmente desmercantilizadoras. Das duas vidas do proletariado – enquanto força de trabalho para o capital, e enquanto proletariado político e em condição negativa à sua condição, é que se trata. Uma das preocupações maiores deste artigo foi justamente esta – buscar “separar o joio do trigo” no atual processo de lutas sociais, ao analisar o duplo caráter, a forma contraditória das lutas em curso, ao invés de simplesmente apologizar as lutas ingenuamente, ou as desqualificar por completo. Se, como afirmou Kurz ao referir-se aos processos de luta recentes (em um de seus últimos textos), não há revolução em parte alguma, também não significa que o sistema não esteja a ser confrontado por diversas lutas sociais de novo tipo. A tarefa de uma teoria crítica lúcida seria, então, analisar as potencialidades, limites e contradições das lutas sociais. Cabe lembrar, ainda, que Robert Kurz inúmeras vezes, em textos mais conjunturais e menores, defendeu a necessidade das lutas por direitos sociais, aumentos massivos de salários e pensões, e por demandas sensíveis e concretas, colocadas de forma a problematizar o debate sobre os limites do sistema em crise e a possibilidade da afirmação das necessidades vitais sensíveis contra a violência da abstração fetichista do sistema. A possibilidade de uma “transcendência” em relação às formas sistêmicas fetichistas só pode se dar pelo processo de tensionamento interno da imanência em suas contradições concretas e reais.
6 Dois comentários pertinentes. Primeiro, que o setor de microempresários que compõe certa parte da classe média em parte se encontra integrado e subordinado a cadeias maiores de franquias e conglomerados comerciais que absorvem a mais-valia produzida por estes setores. Porém, cabe ressaltar que o patronato de microempresários exerce muitas vezes uma exploração brutal de trabalho precário que respeita menos qualquer direito trabalhista do que as grandes empresas. É o setor que mais clama pela redução de carga tributária, entendendo-se, nas entrelinhas, pela redução dos custos trabalhistas com seus empregados. Uma das maiores contradições dos protestos da classe média é exigir redução de impostos e ao mesmo tempo “serviços públicos Padrão-Fifa”, uma vez que serviços públicos são justamente subsidiados por impostos. Não seria de se surpreender que boa parte da classe média considerasse absurda uma proposta como a Tarifa Zero, por considerar que seria “custeada pelo
contribuinte”. Na verdade, ela atinge o uso do automóvel, questiona radicalmente o individualismo nas
grandes cidades, e questiona o mais sagrado dogma da classe média: a meritocracia. Afinal, como a classe média “que trabalha, paga seus impostos e sustenta o país” iria suportar ter de ver os pobres poderem se locomover gratuitamente, pagos pelo contribuinte? Por isso a Revista Veja, grande ideóloga da classe média nacional, chama a proposta do Passe Livre universal de “utópica e irrealista”. Segundo aspecto a ressaltar: entretanto, cabe notar que a Tarifa Zero, por outro lado, implicaria um perfeito funcionamento das condições gerais de produção capitalistas, na medida em que facilitaria o fluxo de força de trabalho e mercadorias de forma mais livre através do aumento da modalidade urbana (e mesmo o desbloqueio do trânsito, permitindo a aceleração urbana). Assim, é uma reivindicação que pode ser perfeitamente apropriada e recuperada pelos gestores capitalistas, bem como pode constituir um campo de formação de novos gestores à esquerda. Talvez o aspecto mais importante da luta não seja a reivindicação em si, mas a forma de organização horizontal e autônoma adotada pelos movimentos de luta pelo transporte público, configurando potencialmente novas relações sociais de luta. A inovação destas lutas, neste caso, se encontra mais na forma, do que nos conteúdos reivindicados. Finalmente, a simples reivindicação de redução de preços, por significar a luta sobre o valor da força de trabalho, parece afetar mais o sistema do que projetos de lei que podem ser capitalisticamente recuperados, constituindo novos espaços para acumulação e redução de custos. Para as empresas, a gratuidade do transporte também pode significar uma redução de custos pagos aos trabalhadores na forma de valetransporte.
É preciso analisar, portanto, dialeticamente este processo, em sua implicação contraditória – as apropriações ou usos sociais possíveis segundo perspectivas de classe antagônicas.
7 O leitor assista ao filme e tire suas conclusões: Muito Além do Jardim (Being There, 1979), com Peter Sellers, produção de Andrew Braunsberg e filme de Hal Ashby.
8 CANVAS, Center for Applied Nonviolent Action and Strategies, fundação patrocinada por republicanos e democratas, criada por dois jovens membros do movimento que derrubou Slobodan Milosevic, na Sérvia, em 2000. Tal fundação dá cursos e treina oposições políticas sobre estratégias para derrubada de governos através de táticas de rua, propaganda, agitação publicitária e desobediência civil, tendo atuado em diversas revoltas pelo mundo árabe e inclusive na Venezuela. Ver o artigo Revolução à Americana: Documentos vazados pelo WikiLeaks mostram como age uma organização que treina oposicionistas pelo mundo afora – do Egito à Venezuela. in <http://www.apublica.org/2012/06/revolucao-aamericana/# sthash.RUj31Yst.dKUHVxBe.dpuf> (último acesso em Junho de 2013). Possui manuais com suas táticas e cursos: <http://www.canvasopedia.org/images/books/CANVAS-Core- Curriculum/CANVAS-Core-Curriculum-web.pdf>. A análise das redes sociais permite a especialistas utilizá-las como termômetros de descontentamento popular e antecipar ondas de revoltas, mesmo utilizando softwares. Grupos profissionais ligados às direitas políticas podem perfeitamente aproveitar e tentar direcionar politicamente ondas de protestos, segundo suas finalidades, utilizando-se de agitadores profissionais, publicitários e difusão de virais em redes sociais. Entretanto, como analisamos, esta tentativa de apropriação dos movimentos no Brasil pelas direitas não parece ter funcionado. Nada substitui o chão-de-fábrica, o velho trabalho de base, e a velha rádio-peão.
9 O Gigante Egoísta é um conto de Oscar Wilde, referente à história de um gigante egoísta e antissocial, que vivia em um palácio tenebroso e afugentava as crianças, até que se tornou amigo delas e em seguida morreu feliz.
10 É oportuno lembrar que outdoors com os dizeres “#changebrasil” foram vistos no exterior em jogos de futebol transmitidos pela televisão.
11 Mauricio TRAGTENBERG. Rússia atual: produto da herança bizantina e do espírito técnico norteamericano. Publicado em Folha Socialista, 5 de abril de 1954, disponível in <http://www.scielo.br/pdf/es/v29n105/v29n105a02.pdf>, versão republicada pela Educ. Soc., Campinas, vol. 29, n. 105, p. 969-977, set./dez. 2008. Neste artigo, Tragtenberg analisa como a União Soviética possuía apenas uma casca aparente de socialismo, cujo conteúdo era preenchido pelas formas da igreja ortodoxa russa mescladas ao gestorialismo tecnicista. Tragtenberg sempre analisou a URSS enquanto um capitalismo estatal. Adotamos aqui a comparação de que o processo do PT (e da CUT) foi similar: o esvaziamento de seu conteúdo social original, composto de trabalhadores, com a intromissão e preenchimento deste vazio por tecnocratas, burocratas sindicais, analistas e gestores. E, finalmente, com a aliança com elementos das direitas políticas e grandes grupos capitalistas dentro da composição de sua base de governo. Esta é a metáfora geológica da pseudomorfose por ele utilizada, na qual uma rocha escavada pela erosão é preenchida por outra, configurando uma formação que parece uma rocha por fora, mas constitui outra por dentro. Parece-nos perfeitamente atual.
12 Entrevista de Marco Fernandes para a Revista Sinal de Menos #5: A crise do PT e do trabalho de base no Brasil. In <http://sinaldemenos.org/2011/02/24/sinal-de-menos-5/> (2011).
[-] www.

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