09/08/19

Esquerda versus direita, luta de classes versus guerras culturais

Helena Matos, no Blasfémias, cita João Távora, do Corta-fitas: «A questão que deixa livre o terreno para o crescimento do BE aqui referido por José Manuel Fernandes é que ela deixou de ser a economia – esse assalto fica adiado para futuras núpcias, se a coisa se proporcionar. O BE socialdemocratalizou-se (o modelo económico obrigatório em Portugal) e cavalga, entranhado com outros “progressistas” nas redacções dos media de massas (Observador incluído), a batalha cultural.»

De há uns anos para cá, variantes dessa conversa são muito populares à direita (ver, já agora, este artigo do José Carlos Alexandre n'A Destreza das Dúvidas e a minha resposta), de que a esquerda (ou alguma partido de esquerda específico) abandonou as questões económicas e a luta de classes e só se preocupa com causas fraturantes/guerras culturais/políticas de identidade; mas a mim é a direita quem me parece viver quase completamente obcecada com questões como “revista académica feminista publicou artigo sobre a masculinidade dos icebergs”, casas de banho, “boas festas” vs. “feliz natal”, “ideologia do género”, etc. , enquanto, pelo menos no século XXI é a esquerda que parece pôr as questões económicas no centro do programa político; desde a crise financeira de 2008 e a crise das dívidas soberanas a seguir, isso parece-me indiscutível; mas mesmo desde a "Batalha de Seattle" em 1999 e a luta contra a "globalização capitalista" que a questão económica parece ser preponderante na agenda da esquerda. Mas, pronto, admito que nos anos 90 (e antes, nos anos 60, pelo menos nos países mais desenvolvidos), a esquerda (ou partes dela) estivesse efetivamente mais concentrada nos costumes do que na economia.

Mas vamos deixar-nos de paleio e tentar comprovar isto empiricamente; abaixo, tenho os 10 artigos mais recentes (por volta das 13:45 de hoje) do Esquerda.net e do Blasfémias; tentei classificá-los em quatro rubricas - ambiente, economia (incluindo tudo o que tenha a ver com luta de classes ou com o "Estado Social"), cultura (tudo o que tenha a ver com "guerras culturais", imigração, raças e etnias, "costumes" ou lei-e-ordem) e outros (tudo o resto, mas acabou por incluir muitas coisas relacionadas com o aspeto mais institucional da política)

Esquerda.net:

Alterações climáticas obrigam a repensar agricultura e alimentação do planeta (ambiente)

É tempo de acabar com as injeções de liquidez (economia)

INEM entrega socorro aos bombeiros por falta de técnicos (economia)








Blasfémias:




É isto (outros)

Nausea (economia)






Pelas minhas contas, o Esquerda.net tem 4 artigos sobre "economia" (no tal sentido amplo), 4 artigos sobre "outros", 1 sobre "cultura" e 1 sobre "ambiente"; já o Blasfémias tem 4 artigos sobre "outros" (incluindo aquele a que estou a responder), 3 artigos sobre "cultura" e 3 sobre "economia" (inclui como "economia" - na sub-variante "Estado Social" - posts do tipo "Os outrora activistas fazem uma bandeira com uma alteração legislativa irrelevante  - Já não precisa esperar para voltar a casar - e se calam com a regressão da qualidade de vida do povo - Consultas a grávidas recusadas em Lisboa", embora também tenham uma componente de "cultura").

Ou seja, confirma-se a minha impressão original - o Blasfémias está muito mais obcecado com questões culturais e menos interessado em questões económicas de que o Bloco de Esquerda.

De qualquer maneira, como já escrevi noutros sítios, isso faz sentido, em termos de comportamento racional - o programa económico da esquerda é popular, o cultural nem tanto, logo é natural que a esquerda tenda a enfatizar a economia e a direita a cultura.

Mas então o que leva a direita a alimentar a fantasia (que talvez fizesse sentido há uns 25 anos, mas completamente desfasada hoje em dia) que a esquerda abandonou a economia e só se preocupa com "questões fraturantes"? A hipótese mais simples é que mesmo isso faz parte da campanha para levar o debate político para as guerras culturais, onde a direita está mais à vontade; mas ocorre-me que possa haver outro fator em ação - grande parte dos comentadores de direita (tal como os de esquerda) vivem (independentemente da sua classe social de origem) numa elite social, económica e política que é onde estão concentrados os para aí 1 ou 2% da população que simpatizam com o programa económica da direita e com o programa cultural da esquerda. Ou seja, talvez entre os amigos e conhecidos deles haja mesmo muitas pessoas a votar BE por causa dos "costumes" (ainda que sem grande entusiasmo pela agenda económica) e outras a votar CDS por causa da economia (ainda que sem grande entusiasmo pela agenda "de costumes"?).

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