10/01/20

A laicidade é ilusória?

Há uns dias, o Esquerda.Net publicou "Laicidade: a ilusão de uma solução", de João Ferreira Dias; eu confesso que não percebi muito bem o que o autor queria dizer com o seu texto (mas não gosto do que suspeito* que ele quer dizer...), e estava há algum tempo a pensar em escrever um post sobre isso.

Talvez ainda escreva mais qualquer coisa, mas para já foco-me neste ponto, que me parece central à tese:
Uma das consequências do positivismo e das teorias da secularização, enquanto programa de “evolução civilizacional”, foi a crença no fim da religião. Há que dar razão a Glasner e Stark, autores que, com um intervalo de duas décadas, confluem afirmando a secularização como um mito de natureza sociológica e uma profecia falhada. A estes autores podemos juntar outros, como Fischter e Hadden que observam a secularização como uma ideologia da própria ciência, um dogma da disciplina sociológica. Lechner vai ao ponto de a considerar uma tese etnocêntrica ocidental. Enfim, apesar de ter sido criada como uma proposta académica, a secularização era e é, em rigor, uma espécie de aspiração filosófica do racionalismo ocidental.
Entretanto, no mundo real:


New survey reveals drop-off in religiosity across Arab world, especially North Africa - BBC Arabic attitudes survey reveals 46 percent of young Tunisians identify as 'not religious'

Uma coisa que noto é que quase toda a bibliografia de João Ferreira Dias, argumentado que a secularização é um mito, é do século passado - Glasner é de 1977, Stark de 1999, Fishter de 1981 e Hadden de 1987; mesmo há algumas semanas tinha lido um artigo sobre o abandono da religião pelos "millenials" (isto é, as pessoas na casa dos 30 e tais), que contrastaria com as previsões que tinha sido feitas no principio do século sobre o regresso da religião - mas o artigo era sobre os EUA, pelo que usá-lo como referencia poderia ser sempre o exemplo do tal "etnocentrismo ocidental"; mas pelos vistos também o mundo árabe (ou pelo menos o norte de África) está em maré secularizadora.

Editado às 18:05 de 2020/01/10: poderá argumentar-se que nada do que falo aqui tem seja o que for a ver com laicidade (o Estado não ser religioso), mas sim com secularização (os indivíduos não serem religiosos); mas como o argumento de João Ferreira Dias parece-me ser que não era possível a laicidade sem secularização, a secularização crescente é relevante para pôr em questão a sua tese de que a laicidade seria uma ilusão.

*posso estar completamente enganado, mas tenho o palpite que a ideia do João Ferreira Dias será algo como substituir a "laicidade" pela "multiconfessionalidade" - em vez de se exigir que deixem de haver padres católicos a benzer a inauguração de edifícios públicos, passar a exigir que sejam convidados também um pastor da IURD, um imã muçulmano, um xamã animista ou talvez um médium espírita.

4 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Ousaria pensar que a religião é um fenómeno transversal a toda a sociedade, algo como social, quero dizer, "religioso" tem atributos e características muito afins de "social". Acostumados a usar a palavra para os grupos sociais que partilham uma fé num deus e que "cultivam" doutrinas, ideologias, teologias e valores relacionados, estranharíamos que o fenómeno religioso nos fosse apresentado como típico de grupos sociais que partilham uma fé ou ideologia, ainda que sem deus, ou negando a existência de deuses mas, neste caso teríamos que admitir que o clubismo, o partidarismo, o nacionalismo, o patriotismo...são outras formas de religião, com ou sem deuses, podendo nós considerar que até o laicismo substituiu o deus da fundamentação das igrejas, por algo que, "mutatis mutandis" desempenha a mesma função de racionalidade legitimadora da ordem social.
No entanto, as diferenças entre o dogmatismo das religiões de deus e os dogmatismos, ou as dogmáticas, das religiões laicas, são abissais, em abono destas, na perspetiva crítica das respetivas doutrinas e concepções.
As religiões de deus têm um cunho totalitário, exclusivista e não dialogante, totalmente antidemocrático, que exige o monopólio da liberdade de dizer. As outras formas "laicas" de religião apresentam-se a elas mesmas como versões possíveis e compatíveis no tempo e no espaço, competindo entre si por uma hegemonia de razão e de bases de apoio, prescindindo de considerações de ordem sobrenatural e, aliás, rejeitando-as como horizonte, princípio ou critério de ação ou de sanção.

Miguel Madeira disse...

Uma coisa que eu tenho muita dúvida que faça sentido é a mania de considerar o confuncionismo como uma religião (será mais uma religião do que, p.ex., o maoísmo?).

joão viegas disse...

Ola Miguel e bom ano para ti e para os leitores do Vias de Facto !

Julgo conhecer razoavelmente bem o problema, nomeadamente na sua vertente juridica, e julgo que qualquer pessoa com experiência da questão sabe que se trata de um debate propenso à histerização, mormente por desconhecimento dos fundamentais. Tais como :

1. A secularização da sociedade parece-me irreversivel, em qualquer parte do mundo, muito embora não seja de todo incompativel com a subsistência de espaços sagrados, que são inevitaveis. Vamos dizer as coisas de forma simples : historicamente falando, o proprio aparecimento dos grandes monoteismos é um factor decisivo de secularização, talvez o mais importante...

2. A laicidade, de modelo francês (não me parece que exista outro), não é mais do que a separação do Estado e das igrejas, no proposito assumido, e de resto consagrado expressamente na lei de 9 de dezembro de 1905, de proteger a liberdade de crença e de culto. Quem julga que a laicidade significa algo como uma expulsão do religioso fora do espaço publico, ou o seu confinamento no espaço privado, esta redondamente enganado. A laicidade nunca teve esse sentido, nem poderia tê-lo num ordenamento juridico respeitador das liberdades fundamentais (entre as quais a de crença). Quem compreende isto chegara depressa à conclusão de que a diferença entre Estados laicos e Estados tolerantes (mas não laicos, tais como o RU, a Alemanha, etc.) não é tão grande como isso.

3. Filosoficamente, não vejo razão alguma para tratar o ateismo de maneira diferente das outras crenças "religiosas", no sentido de "relativas à religião". Na maior parte das vezes, trata-se da crença que deus não existe, uma posição agnostica, não dogmatica, sem pretensões a ser a 100 % justificada racionalmente. Que haja ateus mais fundamentalistas do que isso, não o nego, ateus que acham que podem justificar uma certeza absoluta de que deus não existe, etc. Mas, a meu ver, esta posição não os diferencia de alguns crentes religiosos, nomeadamente os crentes que aderem aos grandes monoteismos. Antes pelo contrario : aproxima-os.

4. O que digo acima não invalida de modo algum que os ateus sejam tendencialmente racionalistas. Eu sou-o, sem duvida nenhuma. Mais uma razão para defender que a expressão das crenças religiosas deve ser protegida a todo o custo. Um racionalista ateu, se quer ser consequente, so pode ver com bons olhos que as crenças religiosas procurem expressar-se no espaço publico, que é o espaço onde pode haver uma discussão racional. Isto, como é evidente, desde que seja de forma tolerante, respeitadora das liberdades dos outros.

Abraços a todos

Anónimo disse...

"que deixem de haver padres católicos"
O uso do verbo haver não é para todos.