Retomando o debate, que atingiu entretanto um elevadíssimo nível, com posts aquém e além mar, gostaria de chamar a atenção para um pormenor que me parece estar a ser desvalorizado.
Sem dúvida que as imagens não falam por si e é preciso fazê-las falar, dar-lhes profundidade, densidade e contexto, o mesmo é dizer, sentido. Mas a possibilidade de elas possuírem uma força que resiste às palavras deve também ser equacionada e chamar a essa força «totalitarismo» ainda é permanecer numa posição de denúncia que pouco nos ajuda. As palavras que codificam o real possuem, também elas, uma pretensão de o resumir a si mesmas, como se apenas existisse aquilo que cabe no discurso.
Ora a imagem da criança morta remete poderosamente para um recanto obscuro das nossas consciências ao qual raramente nos atrevemos a ir. Não sei se existe tal coisa como «o mal absoluto» mas, a existir, ele terá um rosto desta natureza, desfigurado pela irreversibilidade da morte e pelo espaço vazio que a circunda. E se semelhante imagem cala, é precisamente porque aquilo que ela nos transmite dificilmente poderia ser traduzido em palavras. O desconforto que nos transmite resulta tanto do excesso que transporta como da insuficiência que exprime. Nenhuma narrativa seria capaz de lidar satisfatoriamente com esse excesso. A força e a fragilidade contidas na fotografia não seriam maiores nem menores por via de uma mediação. E essa mediação, se situada num domínio puramente inteligível e reflexivo, seria sempre feita à custa de um significado que o ultrapassa.
Gostaria que o nosso debate seguisse outro caminho, ultrapassasse a oposição entre palavras e imagens para chamar a si uma dimensão política de outro tipo.
Aquela criança não foi morta num qualquer cenário solene onde se encena a Grande História. Ela morreu no espaço confinado onde decorria a sua vida quotidiana. A narrativa que ela compõe não possui qualquer final redentor. Confronta-nos simplesmente com a materialidade de uma vida que deixou de o ser, por via de um conflito que ultrapassou há muito as causas que o originaram. Se transformada em símbolo desse conflito para fortalecer as posições de uma das partes (por mais justas que elas sejam), a criança morta estará a ser instrumentalizada abusivamente e a sua imagem será facilmente absorvida pela voracidade dos ecrans. Radicalizar a leitura desta imagem passaria antes pela consideração do que ela nos diz sobre o conflito, sem se resumir a ele. Todas as histórias que não passam de um rodapé noticioso e que não se deixam resumir a episódios da «questão israelo-palestiniana», embora façam parte dela. As nossa posições acerca do fundamentalismo islâmico, da legitimidade do Estado de Israel, do uso da violência, do programa nuclear iraniano ou da expressão da solidariedade não podem dispensar esse mergulho no concreto, sob pena de nos esquecermos de que estamos a falar de pessoas reais e não apenas figuras do Direito Internacional e cálculos geo-estratégicos.
A dor, o sofrimento, a raiva e o ódio são caminhos perigosos? Sem dúvida. Mas uma imagem destas deve levar-nos a considerar que talvez já seja tarde para semelhantes cautelas e que, apesar de todos os perigos, é necessário percorrer semelhante caminho, encarar nos olhos a mulher com cabelos de serpente que o guarda. Porque é bem possível que estejamos já a transformar-nos em pedra, à força de evitar o seu olhar.
6 comentários:
Caro camarada Ricardo,
tudo bem, mas…não vamos politicamente a lado nenhum, ou vamos ao acaso, se nos limitarmos a isso a que justamente chamas " um recanto obscuro das nossas consciências ao qual raramente nos atrevemos a ir".
É que um "rosto desta natureza" - o do "mal absoluto" ou do que este sugere ainda que não o nomeando bem -, precisamente porque nos confronta com "A dor, o sofrimento, a raiva e o ódio" pré- ou meta-políticos, corre o risco ou de desencadear o círculo vicioso de que fala o JPC ou de fazer com que nos limitemos ao comprazimento - intimista, contemplativo, catártico - no horror, privatizando-o em termos "morais" em vez de o enfrentarmos politicamente.
2. Nota marginal: tudo o que dizes sobre o excesso que na imagem "cala" é justíssimo, mas não deixa de ser reflexivo, pensado, elaborado, orientado pela exigência de uma acção dotada de sentido ou suscitada pela exigência de (re)criação de sentido. Caso contrário, o que uma imagem como a que discutimos suscitaria seria meramente reflexo e reactivo: fechar os olhos, rasgar a fotografia, arrepelar os cabelos, fecharmo-nos como um porco-espinho, etc., etc.O silêncio que o excesso irredutível à normalização narrativa, ao encadeamento causal, e por aí fora, é um silêncio que só existe depois do sentido e em função da sua criação, ainda que o confronte com os seus limites, a sua precariedade última, a sua vulnerabilidade incolmatável.
É por isso que, se não queremos que o horror nos vença, seja tornando-nos seus agentes, seja tornando-nos seus espectadores à distãncia, se queremos combatê-lo, só a reflexão em armas e em acto (o escudo de Perseu, criado e feito pela mão humana e não dado nem imediato) torna possível - sem garantias absolutas nem vitória garantida em cada confronto singular - empreendermos essa acção.
Abraço para ti
miguel sp
Eu penso que concordamos no essencial mas estamos a sublinhar uma diferença.
Eu não acho que se trate de nos «limitarmos» ao impacto da imagem, mas antes de nos confrontarmos com ela sem esse espaço de recuo, distância de segurança, mais ou menos implícita na figura do escudo de Perseu que, e isso é importante, precisamente evitava olhar a Medusa nos olhos pelo receio de se transformar em pedra. É preciso vencer esse medo. Olhar o abismo sem ter medo de que ele nos esteja também a observar.
Enfrentá-lo politicamente.
Sim, Ricardo. Tens razão. Mas voltamos ao princípio: é tão reflexivo e dotado de sentido ou apostado na criação de sentido dizer, como fazes (em termos que me lembram o que o Castoriadis diz sobre a necessidade de aprendermos a olhar o sem-fundo - nem redenção - da nossa condição mortal), que devemos "Olhar o abismo sem ter medo de que ele nos esteja também a observar", como dizer o que eu disse sobre um "fazer" e uma acção que "mergulham de olhos abertos" e se assumem como o que são, desencantando o mito e o terror (se a metáfora do "escudo de Perseu" te dá a ideia de um mecanismo de defesa, não insisto nela: não foi assim que o entendi).
"Enfrentando-o politicamente": ao "mal absoluto", e reconhecendo-o como criação histórica que é, "desencantando-o" de modo a que a sua representação ou imagem não nos paralise. É isto? Então, cem por cento de acordo.
Abraço
miguel sp
Ricardo Noronha,
citação sua: "Se transformada em símbolo desse conflito para fortalecer as posições de uma das partes (por mais justas que elas sejam), a criança morta estará a ser instrumentalizada abusivamente e a sua imagem será facilmente absorvida pela voracidade dos ecrans." Parece-me que chegamos ao ponto de entendimento essencial relativo à origem deste debate - o post do Renato - e que sto significa um recuo em relação à tua primeira réplica. Ou não?
Quanto ao teu comentário acerca da impermeabilidade da linguagem política, pode ser que haja um exagero meu na formulação (não haverá em todas estas trocas de comentários um exagero propositado? não é desses exageros e da radicalização que se faz o debate?) mas se leres outra vez o teu primeiro post acerca deste assunto penso que identificarás nele a sobreposição da necessidade de tomada de posição política em relação a todas as outras de dimensões de problematização. Abraço.
Acho que é isso. Não dispenso a reflexividade e a racionalidade. Acho apenas que elas devem ter a noção das suas limitações e que se deve evitar contrapor-las às emoções.
Um abraço classicista.
Debate interessantíssimo. Só 3 notas – um pouco tardias.
1. Quando me referi a um uso totalitário de imagens violentas, referia-me a um que nelas visse ora uma evidência que dispensasse palavras, ora um choque que as tornasse impronunciáveis e pretendesse passar sem a mediação da palavras ao plano da acção. Em ambos os casos, aposta-se numa resposta meramente patológica que potencia tacitamente mais violência e prolonga o círculo vicioso da vingança.
2. Disto não decorre que seja totalitária a força de imagens de que a palavra não pode dar conta, traduzir... Estamos de acordo. (Um aparte: que post tão dionisíaco-lyotardiano este que escreveste, Ricardo!)
3. A “mediação” – a que eu próprio me referi no “No comments”, num sentido um pouco diferente do do post do Nuno Ramos de Almeida – dizia respeito à passagem a um plano de acção política: da denúncia da imagem à acção política deve sempre passar-se pela palavra. Penso que estamos de acordo. Eu não pensaria a mediação como um necessário dar razão da imagem pela palavra (que, de resto, pode, no limite corresponder a uma violência da palavra sobre a imagem). Eu também não oporia o regime das imagens ao das palavras, nem submeteria um ao outro, mas insistiria na necessidade da sua articulação.
Abraço.
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