16/06/10

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O terror da imagem diria respeito ao seu uso. A violência que estaria em causa nesse terror – num uso totalitário da imagem –, excederia a violência real que se pode e deve mostrar – para denunciá-la.
Em que consiste esse excesso? Talvez faça sentido cruzar esta questão com a dialéctica entre “imagem” e “palavra” para que chamou a atenção o Miguel Serras Pereira. 
Reformulo a questão: em que medida é totalitário um certo uso da imagem?
O uso da imagem seria totalitário quando a imagem cala.
A imagem cala – quando se toma por uma evidência contra a qual não haveria argumentos.
A imagem cala – quando choca ao ponto de provocar afasia, quando emudece e, a termo, conduz à apatia que deploram aqueles que defendem que ela deve, antes de mais, chocar.
Há que salvaguardar que a imagem – mesmo se choca, mesmo se é violenta – não cala (nem gera berraria, entenda-se). Porque ao calar, a imagem obvia a palavra. Eis o cerne do seu uso ilegítimo.
Sim, será necessário que se passe das imagens à acção, da denúncia das imagens e das palavras à resistência real.
Mas sem a mediação da palavra, a passagem da imagem violenta à acção corre o risco de dar lugar a uma reacção meramente patológica que alimenta o círculo vicioso da violência.

3 comentários:

joão vilaça disse...

Caro João Pedro Cachopo (e Miguel Serras Pereira, também convocado para o debate), não tenho muito mais para acrescentar ao debate, até porque desenvolvi muitos dos meus argumentos na abaixo inscrita ao comentário do Ricardo Noronha. Concordo com quase tudo o que escreveu Duas objecções apenas.
1. sendo certo que devemos colocar a questão nos termos do "uso" (e instrumentalização) da imagem, não podemos rejeitar problematiza-la de uma forma ainda mais radical: ou seja, a que diz respeito à necessidade de, em cada momento, escolhermos a "imagem justa" como instrumento de representação e significação.
2. creio que é discutível, embora perceba o seu ponto de vista,tque o facto de nos calarmos peranne a imagem seja um sintoma uso totalitário que dela fazemos (não sei se percebi correctamente o que quis dizer, no entanto) precisamente porque me parece que por vezes são as imagens que nos devolvem um silêncio ou então que nos põe a flar através delas, com a sua própria voz - essas seriam as imagens "justas".
Queria fazer notar ainda que não estamos apenas perante a ameaça da "banalização" da imagem: em certos contextos, é a sua excessiva sublimação (e parece-me ser esse o caso) que conduz à sua total irrepresentabilidade e desfiguração.
Cumprimentos.

Miguel Serras Pereira disse...

Caros João Pedro e João Vilaça,
1. este post do João Pedro - que é uma segunda parte do anterior (O Escudo de Perseu) - associa a questão do uso da imagem à do regime da comunicação.
Foi a questão que eu próprio quis levantar na caixa de comentários do post em que publiquei o texto do João Vilaça sobre o uso das imagens.
Aí apresentava um exemplo do modo como os que defendem a tese da "verdade superior da imagem "imediata" que vale por mil palavras" são também "apologistas da onomatopeia e do urro antidemocráticos".(De facto, a imagem "imediata" nunca o é e limita-se, através da acção censória implícita de ideias feitas não questionadas, a recalcar a exigência de dar conta e razão, bem como a dimensão de criação e proposta, da palavra que rompe com o mito). E acrescentava, em termos esquemáticos e num registo polémico, aquilo que este post do JPC nos convida a pensar:
"Se a democracia reclama a abertura instituinte de uma praça da palavra substituindo à violência cega da guerra de todos contra todos e da imposição da lei pelo monopólio das autoridades hierárquicas competentes, e por isso subordina o recurso à violência legítima à supremacia da praça da palavra e das suas decisões responsável e igualitariamente deliberadas, os esbirros da violência do poder hierárquico e classista ou os candidatos ao seu exercício, degradam a palavra em instrumento de servidão e de bestialização regressiva e repressiva da comunicação, tornando a palavra de ordem sumária, a voz de comando do chefe, a propganda figuraativa e esquemática e por fim o urro pré/pós-verbal o seu método de 'luta ideológica' privilegiado".
2. O João Vilaça introduz aqui uma pista importante sobre o silêncio que observamos perante certas imagens. Fala, porém, parece-me, de um silêncio que não é o da mudez ou mordaça impostas pelo uso anti-dialógico da linguagem, que não é o do recalcamento da reflexão e da comunicação entre iguais. Tenho em vista qq. coisa como esse silêncio que é condição da comunicação "justa" que o Tito Cardoso e Cunha refere, por outras palavras, num dos seus escritos (que não tenho aqui à mão). Um silêncio que encontramos antes e depois - como condição e consequência, por assim dizer - tanto da imagem justa como da palavra justa, e que é como esse "vazio" (nascente) que Winnicott (no seu registo próprio) e G. Steiner (num outro) assinalam como condição que torna possível a "criação" de alguma coisa ainda não-dita e ainda não-sida (ao mesmo tempo que desmente e contesta a omnisciência do mito do saber absoluto, do "discurso inteiramente legitimado" e definitivo, ou, no plano ontológico, e como diria Castoriadis, da equação "ser = ser determinado".
3. "Navegavam sem o mapa que faziam", escreveu a Sophia. Não será isso que estamos a fazer aqui?

Abrç para ambos

msp

João Pedro Cachopo disse...

Caros João Vilaça e Miguel Serras Pereira

leio os seus dois pontos (do comentário do JV) menos como objecções do que como prolongamentos deste debate. Quanto a 1, gostaria apenas de precisar que a questão do “uso”, tal como a ela me referia, não se restringe apenas à “instrumentalização”, pelo que o “uso” remete justamente para o problema da escolha da «“imagem justa” como instrumento de representação e significação», o que, de resto, se articula com a mediação da palavra que introduzi neste post na esteira das reflexões do MSP.

O ponto 2 é mais complexo, e muito interessante. Ao procurar pensar o uso ilegítimo da imagem, ocorreu-me pensá-lo como recalcamento da palavra, mas, sem dúvida, isto não diz tudo acerca do “calar-se”, do “emudecimento”, do “silêncio”... Há, antes de mais, uma diferença entre “calar-se” e “ser calado”; e era a “ser calado” (amordaçado) que me referia ao falar de um “uso totalitário da imagem”. Mas o universo do calar-se – e do silêncio - é muito mais vasto, e ainda bem. Acrescento às pistas que ambos deram – sobre a justeza de um certo silêncio das imagens, ou sobre o silêncio como condição da palavra – algumas notas. Há o calar-se da escuta do que há (mesmo à beira do silêncio, que é música ainda, como disse Eugénio). O calar-se da escuta do outro, do acolhimento. O calar-se da prudência (ora da cobardia, do branqueamento, do “lavar as mãos”, ora da justeza, do amadurecimento, da reflexão). O calar-se do (pretenso) rigor epistemológico (final do “Tractatus” de Wittgenstein). O calar-se do luto. E ainda, entre outros que me escapam por certo, o calar-se da arte perante a barbárie: diria que a arte só fala vencendo esse calar-se, tornando-o fértil, tornando-se eloquente. É, entre tantas outras coisas..., o que está em causa no impressionante «Andrei Rubliov» de Tarkovsky, parece-me. E calo-me por agora. Com um abraço.