20/06/10

O que é e o que não é honrar um "homem de convicções e literatura" como José Saramago

Por mais que Francisco Louçã, exibindo a sua escandalizada e sempiterna devoção de catequista perante mais um atentado ao pudor e bons costumes, multiplique, como já qui foi referido pelo João Tunes, os seus apelos a Cavaco Silva "para que se faça representar no funeral de José Saramago, esquecendo a 'perseguição política' contra o escritor protagonizada por um Governo seu", e repita que "o chefe de Estado deve deixar para trás o passado e estar nas cerimónias fúnebres", a verdade é que a ausência do Chefe de Estado enquanto tal, acarretando a de Cavaco Silva enquanto sua expressão acidental particularmente ridícula, só pode honrar um "homem de convicções e literatura" como José Saramago e incentivar ao desejável convívio com a sua obra e com a criação literária em geral todos aqueles que, apostados em mais igual liberdade para todos, gostariam de ver o BE menos dirigente e mais cometido com a democratização efectiva do poder e da acção política comum e com a extensão das capacidades políticas dos cidadãos.

12 comentários:

Anónimo disse...

Não deixa de ser triste a posição de Cavaco. Afinal de contas é o Presidente da República e não uma pessoa qualquer... Que o Cavaco não quisesse lá estar (por estar de férias, porque não suporta o Saramago), tudo bem. Mas ele tem um cargo a desempenhar, e fica-lhe mal... pode ser que ainda o veja nos Açores a comer bolo-rei...

Miguel Cardina disse...

Não ouvi as declarações de Louçã e nem me parece relevante quem as produziu, mas sim o conteúdo: independentemente de gostar ou não de Saramago, Cavaco tinha de o dever de estar presente. Só posso concordar. Saramago foi o nosso único nobel da literatura, decretaram-se dois dias de luto nacional e incrivelmente até as nossas televisões colocaram a sua morte a rivalizar com a bola. Estavam milhares de pessoas e não estava o presidente da república - não por coragem ou verticalidade, mas por mesquinhez.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Anónimo e caríssimo camarada MIguel Cardina,

retomo aqui o que respondi à Andrea Peniche e ao Carlos Guedes precisamente a propósito do assunto (claro, Miguel, que sobre os traços peculiares do contingente chefe de Estado que é Cavaco Silva estamos de acordo, só que, a mim, a instituição da Chefia de Estado não me parece um ingrediente minimamente democrático).
Quanto ao fundo da questão, o que se passa é que me parece que vai sendo tempo de denunciarmos a própria instituição – democraticamente mais do que suspeita – da Chefia de Estado. A ser necessária uma magistratura simbólica da república para certos efeitos protocolares ou afins, um Presidente da República, que não fosse “chefe de Estado” (nem pelo título nem pelas atribuições arbitrais, executivas e moderadoras), de preferência tirado à sorte e com relativa frequência, seria mais do que suficiente.
Não são políticos competentes que nos faz falta e que pode fazer a diferença – mas antes cidadãos activos e responsáveis deliberando e decidindo entre iguais as medidas e leis por que se governem.

Abraço republicano - sem deus nem chefe

miguel sp

Joana Lopes disse...

Miguel (Cardina),
Escrevi há pouco, no Brumas, «Who cares?», a propósito da ausência de Cavaco no enterro, nem pouco mais ou menos pelas razões que o Miguel (SP) aqui invoca, mas, por um lado, porque de Cavaco pouco ou nada espero e, por outro (e aí julgo que discordo de ti), pela sobrevalorização do facto de ter morrido «um prémio Nobel».

Ana Cristina Leonardo disse...

não sou fã de nenhum dos referidos. mas só posso concordar com o que escreveu Luís Januário no A Natureza do Mal.
Hoje os jornais noticiam que Cavaco e Jaime Gama não irão ao seu funeral [de saramago, naturalmente].
Fazem mal. Porque Cavaco e Gama não são o senhor Silva e aquela viscosidade que encima o parlamento. São, como dizem os reclamantes indignados, pessoas a quem pagamos para isto. Para representarem o Estado nestas circunstâncias. Não nos interessa se o senhor Silva leu Saramago ou não. Não nos interessam as preferências literárias de Sua Viscosidade. Estar no funeral de Saramago faz parte do seu contrato individual de trabalho.

Miguel Cardina disse...

Neste caso, estou com o que escreveram o Luís Januário e a Andrea Peniche.

O Miguel Serras Pereira e a Joana Lopes desvalorizam a ausência de Cavaco de duas formas distintas: o Miguel achando que esta é uma oportunidade para denunciar a instituição PR, a Joana por nada esperar de Cavaco e pelo incómodo relativamente à entronização de um nobel.

Na verdade, podemos fazer uma crítica da função presidencial, mas seria um pouco como rejeitar uma lei que considerássemos justa porque foi aprovada pelo parlamento («burguês», não-democrático porque representativo e não participativo...). Ao não interromper as suas férias, Cavaco mostra o desprezo que tinha por Saramago, por um lado, e procura fazer esquecer o triste episódio protagonizado por Sousa Lara enquanto seu secretário de estado.

Julgo que nos compete denunciar isto e aqui também me afasto do "who cares" da Joana. O meu reparo não é o do conselheiro que acha que da próxima Cavaco deveria ter outro comportamento para melhor capitalizar votos futuros; é o da denúncia de alguém que não quer este presidente e que acabou de ganhar mais uma razão para não o querer. Não devo afirmá-la?

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Miguel Cardina,
a tua argumentação relativamente ao meu ponto original parece-me um pouco forçada. Mas adiante.
Quanto ao ponto da Joana - embora ela não goste das minhas razões, eu reconheço a pertinência das dela-, a tua posição parece-me indefensável.
Achas que o facto de um escritor serou não ser Nobel deve decidir da presença ou da ausência do PR nas suas exéquias? Então, qual é o critério? O da estatura literária? Sem desprimor para Saramago, achas que é líquido que ele tenha primado literariamente sobre Sophia ou Mário Cesariny ou Fiama ou Abelaira ou Eugénio, para não citarmos senão casos de autores falecidos mais recentemente (e perdoem-me se esqueço alguém mais, citando ao acaso)? E quem decide dessa importância em termos vinculativos no que se refere à presença ou ausência do PR?
Acresce que fazer uma jogada política com o assunto é lamentável e bastante circense - quer pensemos na argolada do F Louçã, quer na manobra mais astuciosa do Soares.
Acrescento umas linhas que escrevi num comentário ao lúcido post da Joana no Brumas: "Estou inteiramente de acordo com a tua oposição aos que fazem do facto de Saramago ser "o nosso único Nobel" motivo de orgulho ou argumento demonstrativo da importância da sua obra. Claro que o Nobel não o diminui, mas também não lhe acrescenta a estatura.
Diria qq. coisa de muito parecido sobre a pompa e circunstância das cerimónias fúnebres. Incomoda-me sempre a capitalização, mais ou menos calculada ou mais ou menos reflexa, das autoridades que põe a render os restos mortais de um autor ou artista como se estes fossem o seu legado mais importante. E acho lamentáveis as declarações de Mário Soares que defendeu, como se se queixasse de uma ofensa pessoal (mais uma, a somar-se à configurada pela recandidatura de Alegre), que Saramago deveria era ir para o Panteão Nacional. Mas, enfim…"

Abraço para ti

miguel sp

Joana Lopes disse...

Miguel (SP)
Não pretendi dizer que não «gostava» das tuas razões, mas sim que não me parecia oportuno ir tão longe e pôr em causa a própria função de Chefe de Estado.

E estou de acordo com o que dizes neste último comentário. Assistimos, durante todo o dia a um espectáculo lamentável que só pode ser explicado pela nossa pequenez um tanto provinciana: apenas tivemos, desde sempre, dois prémios Nobel, a Suíça, com muito menos população, já recebeu 27. Só por esse motivo se explica este chinfrim porque morreu um escritor (importante, é certo, mas não mais do que alguns outros) e, também, porque o PR não esteve presente. Saramago NÃO foi uma figura decisiva na nossa história.

Miguel Serras Pereira disse...

Camarada Joana,
tanto melhor, se discordavas mais da ocasião escolhida e do plano para o qual levei a discussão do que das razões de fundo.
Mas com o que dizes agora, estou de acordo. Talvez, não saiba bem quem foi ou não decisivo para a nossa história - o que sei, versão mais moderada mas concordante no essencial com a tua, é que o lugar histórico de um escritor não se mede por ter recebido ou não o Nobel. E que tens também razão ao denunciar a pequenez um tanto provinciana deste país que este episódio documenta bem.

miguel sp

Miguel Cardina disse...

Miguel, concedo que a minha objecção à tua posição possa ter sido forçada. Quis apenas realçar que me pareceu maximalista num contexto que não o reclamava, mas fi-lo com pouca mestria.

De qualquer modo, continuo a não concordar contigo e com a Joana. Podíamos discutir aqui se Saramago é ou não um grande escritor (parece-me um exagero negá-lo, mas há gostos para tudo). Agora, julgo que o ponto importante é precisamente aquilo que desvalorizam. Ouvi Cavaco dizer que nunca tinha conhecido Saramago, só dos livros e por isso não foi (teve pudor em dizer que a figura lhe era antipática). Só que o Cavaco não é qualquer um de nós. Como presidente deveria ter estado no funeral do nosso único nobel da literatura, o escritor mais traduzido no estrangeiro e que assim fez mais pela língua que muitas acções do instituto camões.
Talvez isto seja o resultado da nossa pequenez; mas reger as nossas acções em funções do que os outros são também não parece-me muito sensato: fingir que somos a Suiça não nos dá os 25 nóbeis em falta.

Miguel Serras Pereira disse...

Miguel Cardina, por favor, caríssimo, não interpretes mal o que eu disse. Não pus em causa a importância literária de Saramago. O que disse foi que ouytros escritores importantes, "decisivos", da história literária do século passado e deste - Sophia, Eugénio, Cesariny, Abelaira, etc._, que faleceram recentemente, não deram ocasião a tanta celeuma pelo facto de não terem tido pompa e circunstância nos seus funerais.
Disse também que considero ridículo afirmar que, no caso de Saramago, o PR tivesse de estar presente pelo facto de este ser o nosso único Nobel literário. Mas já não tivesse de estar presente no caso de escritores de primeira grandeza, só que não nobelizados.
Quanto às declarações de Louçã, exortando Cavaco a um acto de contrição pública, pareciam mais as de um devoto seminarista de antanho a denunciar a licenciosidade dos meios boémios, do que as de um "socialista revolucionário". Chocante, meu caro Miguel, para qualquer espírito democraticamente laico. E as de M. Soares, majestáticas, proferidas naquele tom de quem toma como agravos à sua digniidade pessoal as dores da pátria que lhe convêm, não me pareceram menos repulsivas. Um e outro fazem o que estamos habituados a que as autoridades façam, pondo a render, para seu prestígio próprio, os restos mortais deste ou daquele cidadão célebre, como se esses restos fossem o mais importante do seu conbtributo.
Por fim, deixa-me dizer-te que me estou nas tintas para os Nobel e não vejo que a quantidade dos que uma língua arrematou seja critério utilizável para avaliarmos da sua grandeza literária. Isto ainda não é o mundial de futebol, e mesmo aí…

Robusto abraço

miguel sp

Miguel Cardina disse...

Miguel,

A nota de dúvida sobre a grandeza literária de Saramago foi colocada mais pela Joana do que por ti («Saramago NÃO foi uma figura decisiva na nossa história»). Estava a responder aos dois e mencionei este aspecto. Que me fez de imediato lembrar o post do José Manuel Fernandes no Blasfémias, forçando desde já a entrada de Saramago na lista dos futuros escritores nobelizados esquecidos pela história.

Equiparas Saramago a outros escritores recentemente falecidos, o que é um exercício legítimo. O que já não é muito legítimo é achares que o Cavaco deve ter sensibilidade literária. Pecar por excesso, tudo bem; agora a ter um critério, o do Nobel parece-me aceitável. E, já agora, o da grandeza literária.

Ao ilibar-se Cavaco da representação de um país no funeral, iliba-se o rancorzinho que o antigo chefe de Sousa Lara ainda sente por Saramago. Cavaco não é o meu presidente, mas infelizmente também é. Por isso não deixo passar estas coisas em branco. Como diz o Luís Januário:

«Porque Cavaco e Gama não são o senhor Silva e aquela viscosidade que encima o parlamento. São, como dizem os reclamantes indignados, pessoas a quem pagamos para isto. Para representarem o Estado nestas circunstancias. Não nos interessa se o senhor Silva leu Saramago ou não. Não nos interessam as preferências literárias de Sua Viscosidade. Estar no funeral de Saramago faz parte do seu caderno de encargos.»