21/06/10
Sobre a política e os seus aproveitamentos
por
Miguel Cardina
A ausência de Cavaco (e de Jaime Gama) do funeral de Saramago, sendo um pormenor, não me parece tão irrelevante quanto isso. Aqui nesta casa e em outros tegúrios, o assunto tem sido discutido com alguma animação. Reconheço que a grandeza de Saramago e a comoção popular que a sua morte causou são bem superiores à recusa do PR em interromper as suas férias nos Açores. Sou sensível ao argumento daqueles que acham que Saramago esteve muito bem acompanhado pelos seus e que Cavaco (e Gama) não fizeram falta. Só que a questão não está na falta que Gama e Cavaco possam ter feito, mas na ausência que Saramago fará ao país e à literatura. E se os dois dias de luto nacional são a expressão disso mesmo, o normal seria que as duas mais altas figuras da nação estivessem presentes e não se fizessem representar por coroas de flores, Guilherme Silva e homens da Casa Civil. As declarações com que Cavaco justificou a sua ausência - «nunca o conheci publicamente, só dos livros» - roçam o insulto e são típicas da figura quando apanhada sem guião. Como lembra o Daniel Oliveira, «se Aníbal Cavaco Silva tivesse comparecido no funeral de José Saramago muitos diriam que se tratava de hipocrisia. Mas, ainda assim, o Presidente da República tinha de ir e aguentar com dignidade essa acusação. Porque as críticas que lhe fariam, pondo em causa o homem, deixariam intacta a instituição que ele representa. Porque quem lá estaria não seria Cavaco Silva. Seria o Presidente da República Portuguesa». Assim, ao contrário do meu companheiro Miguel Serras Pereira, que aponta armas a Louçã e Soares, acho que neste caso o «aproveitamento político» (coisas de difícil e subjectiva aferição quando os assuntos são políticos, como é o caso), está sobretudo do lado do transitório presidente, que pisca os olhos aos seus naturais sectores católicos e conservadores, desgostosos com a sua promulgação do casamento gay e esquecidos da apertada e familiar companhia que proporcionou a Ratzinger na sua visita a Portugal. A ausência do sr. Aníbal ofusca a última despedida a Saramago? Nem por isso. Mas lembra-nos o presidente que ainda temos.
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4 comentários:
Caro Camarada Miguel C:
já que insistes, vejo-me obrigado a retomar também o tema.
Lendo este teu post e os posts e trocas de comentários que o precederam, pergunto-te o seguinte:
Porque é que não houve tanto barulho quando, nas cerimónias fúnebres, de "grandes escritores", como Sophia e outros que citei, não só não contaram com a presença do PR como foram muito mais discretas do que as de Saramago?
Dir-me-ás que Saramago foi Prémio Nobel - e Sophia e os outros, não. É isso? É que, se não é isto, não vejo que outro motivo possas invocar. Podes pessoalmente achar que Saramago é o maior de todos eles, mas não me parece que isso seja argumento que colha. Sem sombra de desprimor para Saramago, não se pode dizer taxativamente que o seu contributo para a língua e cultura portuguesa tenha sido maior do que, por exemplo, o de Sophia ou Eugénio de Andrade, ou…
O escândalo da ausência (que alívio!) de Cavaco ficou a dever-se, a meu ver, quase exclusivamente ao facto de F. Louçã e M. Soares, a terem declarado inaceitável. Nem sequer Jerónimo ou Carvalhas quiseram comentá-la em termos semelhantes.
E o que acontece é que, por ocasião das cerimónias fúnebres de Sophia, ou Abelaira, ou Cesariny, ou…, não houve líderes partidários que se tenham lembrado de tirar dividendos da ausência do PR. Aliás, tanto quanto me lembro, nunca esse problema foi levantado como agora acontece tão desatsradamente.
E voltamos ao único argumento que te resta: o do Nobel. Mas sobre esse já argumentei o suficiente, faltando-me só pedir-te que tenhas em conta que brandi-lo é prestar um mau serviço à memória do próprio Saramago: devemos lê-lo e lembrá-lo pelo que escreveu, pelo valor intrínseco da obra que nos deixa e não por ter sido nobelizado (aspecto, apesar de tudo, acessório). Se o comentários oportunistas de F. L. e de M.S. me irritaram tanto, foi precisamente porque sobrepunham ao propósito de chamar a atenção para a obra de um escritor como Saramago a insistência em aspectos que desviavam a atenção devida à obra e secundarizavam a voz do seu autor.
Abrç
miguel sp
Caro Senhor Miguel Serras Pereira,
Nao se trata de individualizar - e através do Nobel - a figura de Saramago como representante da cultura portuguesa. Trata-se apenas de reconhecer - e, neste caso, através da figura do PR - aquilo, aqueles, os homens e as obras que presentificam a cultura portuguesa. O facto de outros nao terem merecido tal reconhecimento, nao é argumento. O argumento seria "exigir para todos".
Anónimo,
se é isso que está em causa, então peça-se à Presidência da República e outras autoridades que, nestas ocasiões, patrocinem, por exemplo, sessões de leitura sobriamente encenadas e integradas nas cerimónias fúnebres… Assim, prestariam homenagem, mas deixariam, como seria justo, o primeiro plano à voz ou obra do homenageado.
Sob os outros aspectos, acho que, na discussão com os meus amigos Joana Lopes, João Tunes e Miguel Cardina, já fui respondendo.
Saudações republicanas
msp
Miguel,
Acho que podemos continuar esta discussão ad infinitum porque estamos a partir de sítios diferentes. Eu não quero discutir o valor literário de x ou y. Nem acho que Cavaco deva ter capacidade ou assessoria para essas contas. E sim, no jogo institucional (no qual Cavaco tão zelosamente se mexe) o Nobel é um prémio evidentemente único que justificaria que ele fizesse uma pausa na observação das belezas dos Açores. E isso foi assumido - de outra forma não se teriam decretado dois dias de luto nacional.
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