02/07/10

Em mais um aniversário da morte de Sophia (Porto, 6 de Novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004)

Retomo aqui o texto de uma comunicação intitulada As Condições da Poesia, que apresentei, na Universidade de Salamanca, numa sessão de homenagem a Sophia, nos finais de Junho de 2004, ou seja: poucos dias antes da sua morte, a 2 de Julho, desse mesmo ano.

Como consta do programa deste encontro em torno da obra de Sophia, a minha intervenção propunha-se por tema uma reflexão sobre as condições da poesia. Era uma maneira de tentar tornar digna da exigência reflexiva, da exigência de dar conta e razão que atravessa toda a obra poética que aqui nos reúne, a homenagem que aqui me proponho prestar-lhe. Com efeito, reflectir sobre as condições da poesia é falar daquilo que o facto de haver qualquer coisa como a poesia nos pode dizer sobre a nossa condição e sobre a condição do real de que somos parte, e é explicitar também que, a partir daí, se trata de, como nos diz Sophia, recomeçar “a busca/ De um país liberto/ De uma vida limpa/ E de um tempo justo”.
Não posso, por razões de economia horária, retomar aqui a reflexão a partir da poesia como repetição/celebração da criação humana da linguagem, a partir da imaginação metafórica e simbólica como prova ou testemunho da metamorfose ontológica que a criação da linguagem e a dimensão instituinte de cada língua consuma, a partir de cada poema e da singularidade da voz de cada poeta como ocasião - que é o tempo, no interior do tempo sem exterior, em que “o tempo apaixonadamente/ Encontra a própria liberdade” - do começo de um “mar novo”, que transforma o que somos e transforma o que é o mar, fazendo ser uma navegação que navega sem o mapa que vai fazendo, uma navegação nunca sabida ou já sida por nada antes do seu navegar. E optarei por me limitar a umas quantas questões, seguindo “o fio de linha da palavra” de Sophia, sobre as condições em que o encontro com o tempo se transforma, transformando a paisagem de que somos parte activa, nesse encontro com a liberdade, que só ele pode prestar justiça à verdade da poesia, quando a libertamos das funções ancilares ou do estatuto das excepções carnavalescas que confirmam a dominação como regra e do regime censório de restrição a priori do sentido a que a sacralização de qualquer lei heterónoma a condena. É, com efeito, o encontro do tempo com a liberdade que torna possível a Sophia fazer do poema “a minha explicação com o universo”, numa palavra cuja justeza, na minha voz, “reconheço por não ser já minha”. E, do mesmo modo, é neste encontro, assumido como “explicação com o universo”, que começa o “mar novo” da acção cuja busca é a de um “tempo justo”. Mas esta acção só é possível mediante aquilo a que Sophia chama “a atenta invenção do que foi dado”, recriando o tempo e o universo com que nos explicamos, depois, sempre depois, de “o rei (…) morto e o reino dividido”, quer dizer, quando reconhecemos que “o tempo/ Como um monstro a si próprio se devora”, que as rosas “morreram com o tempo que as abria” e que, finalmente, “Tudo quanto acontece é solitário/ Fora de saber fora das leis/ Dentro de um ritmo cego inumerável/ Onde nunca foi dito nenhum nome”, acrescendo, apesar de o tempo ser também inicial e nascente, que, como lemos noutro poema, “o instante não pára de morrer”.
É contra e a partir deste fundo de “um ritmo cego inumerável”, do “caos mais antigo do que os deuses”, da ausência de lei última, da destruição e do vazio incolmatável do tempo, é contra e a partir do abismo deste sem-fundo – caos de um vazio que todo algum absorve e que faz com que não haja ser que seja tudo, e caos da metamorfose ontológica incessante a partir da qual tudo existe e desexiste – é contra e a partir daí que podemos tentar instaurar uma relação justa com as coisas, relação que teremos de criar, reinventando atentamente o que, nós próprios incluídos, foi dado, e assumindo a responsabilidade dessa criação, que nada nos prescreve ou garante, mas que, nunca sendo embora criação de tudo, nos acompanha como consubstancial potência de metamorfose indefinida.
O que tão sumariamente procuro assim resumir deixa-nos já entrever duas dificuldades maiores da arte de navegar, forçosamente sem o mapa que fazemos, daquilo a que Castoriadis chama o “projecto de autonomia” e a cuja abertura indefinida, na “solenidade e risco” que “em cada gesto ponho”, as navegações da arte poética de Sophia nos introduzem. A primeira está na tentação por assim dizer natural, ou naquilo a que Bruno Bettelheim chamaria a “sedução psicológica”, do recalcamento ou denegação do caos e do vazio ou do nada que é a presença real do tempo no sem-fundo de todo o todo e de todo o tudo. Mas a condição da “explicação com o universo” em termos de uma verdade que liberte, a condição da busca do “tempo justo”, a condição de fazermos qualquer coisa como isso a que Sophia se refere quando diz, num poema chamado “25 de Abril” que somos livres quando “habitamos a substância do tempo”, passa pelo reconhecimento da nossa própria mortalidade, bem como pela de tudo aquilo de que somos feitos e podemos fazer ser. Parafraseando livremente Eduardo Lourenço, poderíamos dizer que teremos de escolher, entre Deus e o tempo, qual é a sombra de qual, e que teremos de concluir também que, reduzindo a presença real de um a aparência ou ilusão a presença real do outro, ou a ideia de criação divina é, como lhe chama Lourenço “a sombra do tempo” (sombra projectada pelo tempo e sombra que o esconde ou reduz), ou é “a antiga linha clara e criadora/ do nosso rosto voltado para o dia”, entre outras coisas, que não passa de um efeito óptico derivado da “sombra de Deus”.
Bem sei que Sophia não põe esta alternativa e que, se a sua obra afirma como nenhuma outra a exigência de reconhecermos que somos nós que, justamente para habitarmos a substância do tempo, teremos de assumir a responsabilidade por aquilo que criamos, tornando-o criação de liberdade, o nome de Deus como “Senhor” não deixa, num certo número de poemas suficientemente importantes, de ser explicitamente invocado, do mesmo modo que a crença na imortalidade ou ressurreição pessoais. Não posso demorar-me aqui neste aspecto, mas digamos que, uma vez que nada nos poemas em causa parece desmentir ou corrigir, o que os outros nos dizem nos termos que vimos, estamos perante um “salto da fé” que não desautoriza nem invalida o que Sophia diz ser “o tempo onde não moras” (…), “Porque tu és de todos os ausentes o ausente” – “salto da fé” que não torna menos impossível ou inconsistente com os termos que vimos serem o da “minha explicação com o universo” aquilo a que, uma vez mais Eduardo Lourenço, chama “o lugar impossível de Deus”. Embora possa ser invocado – “Escuto mas não sei/ Se o que oiço é silêncio/ ou deus” -, e até destinatário das preces da nossa impotência – “Dai-nos, Senhor, a paz que vos pedimos /A paz sem vencedores e sem vencidos” -, a verdade é que Deus não fala nos poemas de Sophia nem é seu interlocutor: não há palavra ou acção sua que intervenha ou responda no diálogo da voz do poema consigo próprio nem na proposta de diálogo que endereça a quem o lê. É caso para dizermos que - exemplarmente, sem dúvida - o “salto da fé” jamais quebra o “silêncio de Deus”. Com efeito, é só na condição de esse lugar impossível permanecer vazio, deixar subsistir o “caos incorruptível” e “mais antigo do que os deuses”, que a criação de liberdade e a liberdade de criação podem acontecer – como tudo o que acontece “solitário”, “fora de saber fora das leis”. Deus não pode ser nem garantir a lei que teremos de ser nós próprios a darmo-nos, sabendo que o fazemos, para que a livre navegação do poema possa presidir à construção, que será quotidiana ou não será, de uma “cidade da realidade encontrada e amada”, como essa cuja porta “é feita de dois barcos” e sob cujo signo aprendemos a ser “atentos a todas as formas que a luz do sol conhece/ E também à treva interior por que somos habitados/ E dentro da qual navega indicível o brilho”.
Mas uma outra dificuldade se põe ao encontro do tempo com a liberdade, e é a que consiste num mecanismo de defesa perante a hubris ou desmesura das paixões que nos habitam e instauram como horizonte nas relações da humanidade consigo própria a ameaça permanente da guerra mortal de todos contra todos, como da luta de morte cada um consigo. Também aqui a sacralização tanto religiosa como, por exemplo, científica da lei e da heteronomia traduzem o medo e a insegurança perante o sem-fundo ou abismo que, além de marcar o nosso corpo-a-corpo com o mundo, nos assombra internamente. E também aqui, uma vez que ceder ao caos pulsional seria a morte, tanto ao nível do indivíduo como da espécie, se torna aparentemente mais fácil e aparentemente mais seguro domar a “treva interior por que somos habitados” e cegarmo-nos ao mesmo tempo ao seu brilho indicível, mediante a sua subordinação a um princípio proclamado a salvo da sua efeverscência magmática, que explicarmo-nos com elas, não perdendo “o fio de linho da palavra” que é condição desse “primeiro tema da reflexão grega” que Sophia nos diz ser a justiça.
Se estas duas dificuldades, no entanto – a de assumirmos a mortalidade e o tempo como ser e não-ser de tudo e a de assumirmos que a nossa condição é trágica não só porque as nossas melhores criações são mortais, mas também porque podemos criar o monstruoso e o horror –, não têm propriamente solução, pois nunca poderão ser dissipadas de uma vez por todas, não invalidam essa “busca de um tempo justo” que nos poemas de Sophia encontramos em acto: tornam-na, pelo contrário, mais premente e decisiva, e é por isso, de resto, que aqueles para quem a “busca da justiça continua”, guardam esses poemas consigo um pouco como Walter Benjamin queria que nos valéssemos da história feita no presente sempre mortal em que a fazemos - ou seja como uma “recordação tal como cintila no instante de um perigo”. A sobrevivência não é tudo, e a vida bem pouca coisa seria senão fóssemos capazes nela de uma condição livre e criadora cuja salvaguarda enquanto dura sejamos capazes de investir ainda que à custa da sobrevivência, e não há, de resto, instituição da sociedade que não afirme bens maiores que a sobrevivência, e foram talvez os gregos os que souberam afirmar primeiro que esses bens devem ser tais que continuem a primar e a ter na acção que os afirma justificação suficiente, até mesmo quando, ou sobretudo quando, não há depois. Comentando o estásimo da Antígona de Sófocles que afirma o humano como o mais terrível do terrível (deinos), aquele de entre os mortais e os imortais que mais é ocasião de terror e maravilha, Castoriadis sustenta que este terrível é o da autocriação humana, e adianta os exemplos da linguagem e do pensamento, nos seguintes termos: “A linguagem e o pensamento não são atributos ‘naturais’, dados ao homem: o homem (…) enisnou-os a si próprio. (…) O homem não ‘tem’ a linguagem e o pensamento: deu-os a si próprio, criou-os para si próprio, ensinou-os a si próprio”. Explica depois que ao contrário de Platão, que considera que só podemos aprender o que é já conhecido, ou saber o já sabido, ou, em última instância, ser o já sido, e que só há conhecimento verdadeiro, saber verdadeiro, ser verdadeiro fora do tempo, idênticos a si mesmos, sidos de uma vez por todas, pelo que só obedecendo a esse saber e a esse ser que reduzem o acontecimento e o tempo a ilusões podemos validar uma lei que nos salve de nós próprios, “Sófocles afirma claramente – e é de novo Castoriadis quem fala – aquilo a que chamei o círculo da criação, em que a actividade pressupõe os resultados que faz ser: o homem ensina-se a si próprio uma coisa que não sabia e, desse modo, aprende aquilo que tem de ensinar”. Retomando a questão dos bens que podem dar sentido a uma vida mortal – apesar de todo o “Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo” -, poderíamos dizer que também eles nos confrontam com um círculo da criação semelhante, enquanto, entre esses bens, conta como condição decisiva da acção que os cria e reitera, a actividade por meio da qual, segundo Sófocles na leitura de Castoriadis, o homem ensinou a si próprio ou aprendeu consigo próprio, recriando o caos pulsional da “treva interior por que somos habitados” e do seu “indicível (…) brilho”, as “paixões que criam as cidades”, e, dentro delas instituem, o tema da justiça como reflexão primeira nessa “atenta invenção do que foi dado” que é condição comum da cidadania democrática em acto e da reflexão em que a poesia toma consciência de si própria como “explicação com o universo”.
É, sem dúvida, assim que, mobilizando ao mesmo tempo a absoluta singularidade de um timbre capaz de solicitar por ressonância a singularidade mais íntima e mais única de cada um, a voz do poeta se consuma nessa “palavra alada, impessoal”, que mantém vivo, renovando por dentro dos seus usos e costumes a invenção anónima e comum da linguagem presente em cada língua, o exercício de uma liberdade que informe esses outros usos e costumes que, só eles, poderão ser o húmus ou caldo de cultura da plena cidadania pela qual saibamos governar e ser governados por leis que sejam explicitamente obra e responsabilidade nossas. Tal é essa outra condição da plena afirmação da poesia que consiste na construção quotidiana da “cidade da realidade encontrada e amada”, cujo projecto se confunde com o dessa criação de uma “relação justa” com o real, inseparável da “…busca / De uma vida limpa/ E de um tempo justo”.

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