01/07/10

iPorra

 Há uns anos (muitos, para lá de duas dezenas), ter em casa um computador Apple equivalia a um secreto estandarte de distinção. Labutar de olhos vesgos face a um SE, navegando pelos abismos digitais dos seus impressionantes 20MB de disco; cobiçar o supersónico FX; pagar fortunas por maquinetas que se intitulavam Low-Cost... e anda por cima ter acesso a um mundo secreto, incompreendido, longe da vista dos hoi polloi. Que mais poderia um jovem nerd querer?
Era como ter no pulso um calibre El Primero, ou ouvir LPs num Xerxes: formas discretas de exibicionismo, reivindicações codificadas de status e conhecimento. Só outros iniciados reconheciam a insana profundidade do nosso bom gosto; ter um Mac algures no escritório era garante de receber perguntas tontas e emitir sorrisinhos de satisfação armada aos cucos. Pertencia-se a uma espécie de confraria de Jedis da informática.
Depois, chegaram os iPods e os iPhones. Agora, o mercado aguarda ansiosamente a chegada das iToasters e dos iFreezers. Toda a gente tem no Steve Jobs um amigo célebre mas muito lá de casa; mesmo que ignorem o pobre Wozniak e heróis mal queridos como Amelio, a quem coube colar os cacos do primeiro consulado de Jobs (acabando, ironicamente, por lhe comprar o NeXTstep).
Hoje, não há bimbo endinheirado que não exiba o seu iPhone de 5 em 5 minutos. A propósito de mostrar um novo jogo idiota ou a forma interessantíssima como se toca no ecrã e coisas desatam a acontecer. De repente, ter um gadget com a maçãzinha ratada resume-se a uma afirmação de novo-riquismo parolo. Imagino que a Cinha jardim já não dispense o dela; e que a Assembleia da República tenha uma concentração destas engenhocas superior à do n.º 1 de Infinity Loop. Nem aqui no remanso da blogosfera escapamos à infestação: até legendas como “Foto tirada com o meu iPhone” já vi por aí. Num destes dias, ainda tenho de tapar o meu iMac com uma burqa e pintar o MacBook de preto, disfarçando-o de Dell ou coisa que o valha.
Isto tudo porque hoje sonhei que os iPhones tinham apanhado uma maleita qualquer que os levava a explodir nas pochettes e nas Louis Vuitton dos seus donos. Acho que acordei a sorrir.

2 comentários:

Filipe Moura disse...

Essa do "estandarte de distinção para nerds" tem muito que se lhe diga... Nem sabia o que era um "gadget" (mesmo agora nem sei se sei muito bem) até o inevitável "Ípsilon" começar a entrevistar os pseudointelectuais do costume com a pergunta "qual é o seu gadget favorito?" Que merda é esta?
Da minha modesta parte, tenho um Nokia dos antigos (tinham todos o mesmo carregador) e o meu Toshiba ainda é o mesmo com que escrevia os textos para o Blogue de Esquerda. Um dos melhores físicos portugueses, o Vítor Cardoso http://centra.ist.utl.pt/~vitor/?page=home , nem sequer telemóvel tem.

Anónimo disse...

Acontece, Filipe Moura, que não ter telemóvel hoje equivale (em caganças por metro/cúbico) a um "receber perguntas tontas e emitir sorrisinhos de satisfação armada aos cucos" por se ter um Mac há 20 anos atrás.