Neste campeonato de dialécticas em torno do futebol, encontro-me quase sempre off-side. Sou imune à beleza de tal desporto e, por consequência quase inevitável, a orquestra de racionalizações, teorizações e complexificações em redor do fenómeno não me tange qualquer corda sensível.
Agon ou ludens? Afirmação de desigualdades ou arena niveladora? Não sei se escolhi as minhas respostas preferidas; mas só o ler coisas como «entendo o comunismo como a subtracção total da política a qualquer forma de jogo, de disputa entre juízos ou propostas» já me compensou o tempo gasto a acompanhar as discussões (parto do princípio que coisas ainda mais divertidas, como uma suposta incompatibilidade entre a esquerda e a ideia de competição, sejam apenas brincadeiras).
Já no prolongamento, vi saltar um avançado do banco para marcar um golo de belo efeito, singelo como só as supremas obras de arte da bola são (esta podia ter aprendido com o Rui Santos, se soubesse mesmo quem é que ele é). O João Pedro Cachopo veio rematar a questão para uma outra grande área: «a indústria, o espectáculo (naquele sentido que a gente não gosta), o engodo, o fanatismo, a parvoíce, os domingos desportivos», sem esquecer, claro essa magna criação dos nossos dias futebolizados, o comentador.
Uma indústria como sistema de geração de engodos. Uma poderosa máquina de fabricar alienação. Este, para mim, é o mais importante jogo. Ignoro se as sociedades tendem a erigir estas elaboradas fantasias de forma planeada e telecomandada, estratégia de anestesia dos cidadãos gizada num qualquer cubículo subterrâneo, ou se o pathos da vida contemporânea as segrega de forma inelutável, como uma chaga que nunca cicatriza não pára de escorrer pus.
Certo é que o futebol é mesmo um mundo substituto perfeito para quem se vê perdido nas complicações da existência mais ou menos real que define a nossa felicidade, a nossa liberdade, a nossa ambição de igualdade. O futebol (ou o cricket, ou o curling, ou qualquer desporto profissional transformado em espectáculo de massas) fornece aos oprimidos um terreno epistemológico com regras simples, horizontes alcançáveis e pulsões transparentes: qualquer um pode ser um perito, qualquer um sabe acalentar sentimentos fortes, todos partilham uma esfera de significado, técnicas e paixões – sem passarem por chatices como o estudo, a observação, a sedimentação de ideias próprias, a empatia face às feridas do outro. Um mundo dividido em tribos. Uma ágora que se satisfaz em improfícuas discussões sobre a última transferência ou o próximo derby. E o adepto empenha neste ersatz toda a sua vontade, muita da sua paixão; até que alguns começam, insidiosamente, a ver em tal fio a sua principal ligação ao mundo.
Grande golpe de cabeça, JPC: «o engodo, o fanatismo, a parvoíce». Não são subprodutos inocentes, ganga que se pode separar de algum valioso minério. São sim os nomes de um mundo oblíquo que não cessa de angariar imigrantes, um mundo cuja órbita intersecta a do nosso planeta de quando em vez, mas que serve precisamente o objectivo de deixar este último entregue a quem sempre teve o seu leme nas mãos. O «ritmo do sistema de ferro» de Adorno e Horkheimer tem hoje o seu compasso marcado a golpes de vuvuzela.
10/07/10
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2 comentários:
Brilhante texto, Luis.
Não é todos os dias que se lêem admissões de ignorância tão penetrantes como esta tua:"Ignoro se as sociedades tendem a erigir estas elaboradas fantasias de forma planeada e telecomandada, estratégia de anestesia dos cidadãos gizada num qualquer cubículo subterrâneo, ou se o pathos da vida contemporânea as segrega de forma inelutável, como uma chaga que nunca cicatriza não pára de escorrer pus".
Pois bem, o que se segue não é necessariamente uma objecção, mas diz o seguinte: resta, sem contestar a pertinência e o salutar "desencantamento" que a tua reflexão propõe, o quid do futebol que a sua função ou funcionamento não esgota. A sua indústria será uma "poderosa máquina de fabricar alienação", mas dizendo-o ainda não dissemos nada sobre o que faz com que o futebol seja futebol e não jogo de vídeo.
O poema "Alguns Toureiros" do João Cabral que aqui publiquei há poucos dias ainda (http://viasfacto.blogspot.com/2010/07/alguns-toureiros-um-poema-de-joao.html#comments) pode servir-me agora de muleta (passe o jogo verbal): não está em causa que a tourada tenha sido - e de que maneira - na Espanha franquista, e antes, e depois, processada numa "poderosa máquina de fabricar alienação", ou que Manolete tenha sido mascote da ditadura e tomado partido durante a Guerra Civil pelos sublevados. São factos indiscutíveis. O que o poema de João Cabral mostra ou pelo menos sugere vivamente é que há na arte do toureio qualquer coisa que não foi processável pelo sistema que a industrializa, um resto ou um excesso insistente que não se deixa reduzir e cintila como exercício de criação e inspiração criadora, que torna jogo o terror do mito, criação humana o fatum primitivo do confronto - dentro e fora parte - com o animal.
Ora, um dos pontos mais interessantes dos textos do Zé Neves e do Ricardo - bem mais interessante do que a minimização do elemento agonístico que os tenta por vezes - tem justamente a ver com isto. O futebol não é inteiramente processável, um pouco do mesmo modo que a beleza dos olhos da amada não é redutível ao funcionamento deles como órgãos de visão e menos ainda ao eventual horror do mundo histórico que lhes coube contemplar, por muito que as condições que presidem ao espectáculo do mundo histórico intervenham também na formação dos gostos do amante e nos critérios do belo que são seus . E talvez a luta contra a "poderosa máquina de fabricar alienação" passe também por aprendermos a reconhecer esse resto ou excesso que, entre outras coisas, contestam a sua omnipotência (a magnificação dos poderes da dominação e a idealização do oprimido - mas isto seria matéria para outro post - são duas faces da mesma péssima moeda).
Dito isto, o problema que levantas é, de facto, um aspecto maior da questão. É no modo de produção, administração e consumo da indústria do futebol e na reconciliação que induz com a alienação quotidiana que está o problema e não no maior ou menor grau de presença do elemento agonístico ou competitivo dentro do jogo. Do mesmo modo que o problema da indústria produtora de brinquedos não está em produzir mais ou menos brinquedos de guerra ou mais ou menos "barbies" e "kens" mais ou menos correctos, mais ou menos "argumentos" de play station mais ou menos pacíficos ou guerreiros.
Bom, desculpa as divagações descosidas destas impressões de leitura, que contrastam tão tristemente com o rigor do teu post. Se for caso disso, voltamos a falar melhor.
Abraço para ti
miguel sp
Miguel,
Tenho o palpite de que esta indústria vai acabar por dispensar a existência física de jogadores e de jogos. Mas, até lá, é precisamente a presença dessa parcela de inexplicabilidade que leva à adopção do futebol, ou da tourada, ou do futebol americano, pela máquina. Esta precisa de metafísica como de pão para a boca, pois os cidadãos estão dela esfomeados; logo, serve-a aqui e, em quantidades mais indigestas, nas igrejas.
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