07/07/10
A propósito de quase nada, Torga
por
Luis Rainha
Nas discussões em torno dos anónimos mais ou menos “famosos” da nossa blogosfera, há um santo padroeiro muito invocado, geralmente em vão: Miguel Torga. O Valupi tem-se excedido no zelo torguista: «Miguel Torga era conhecido, logo não era anónimo, apesar do pseudónimo», «“Valupi” é um nome meu, como outros que tenho. “Miguel Torga” não é também um nome de Adolfo Correia Rocha?»
A resposta tem de ser ambígua: sim e não. A professora Maria da Assunção Monteiro chega ao ponto de propor uma nova categoria para descrever a estratégia de identificação deste escritor: “alterónimo”. Isto porque Torga foi apresentado aos leitores (em A Terceira Voz) pelo seu irmão Adolfo Rocha: «Com um ósculo vo-lo entrego. Chama-se Miguel Torga. Somos irmãos e temos a mesma riqueza. Mas há dias reparámos nesta coisa simples: para que aos vossos olhos um de nós surgisse Cristo, necessariamente o outro tinha de fazer de Judas. E eu sacrifiquei-me. (...) despeço-me da cena e dou a minha palavra de honra que não reapareço...» Consequência: «só para efeitos legais (...) eu me resigno a ser aquele que, cheio de remorsos, se enforcou numa figueira e, dela pendente, jaz ad aeternum, morto, comido dos bichos e com a língua de fora... – ADOLPHO ROCHA». Mesmo de forma retroactiva, todas as obras de Rocha foram assumidas pelo seu irmão sobrevivo, Torga. Até a correspondência com amigos surge por vezes com esta mesma assinatura. O que não impediu que nos Diários irrompessem por vezes menções ao ostracizado Dr. Adolfo...
Assim descreve Torga esta peculiar vida dual: «Dividido desde então em duas metades, desigualmente responsabilizadas - uma, condenada à cruz de uma existência emblemática, rectilínea, coerente, sem transigências de nenhuma ordem, e a outra cingida apenas à ética profissional e às leis da civilidade - assim tenho atravessado os anos, ora a assinar livros, ora receitas, fiel a uma dicotomia absurda, na íntima mortificação de ter sido um carrasco de mim mesmo.»
Tal configura operação muito mais profunda e complexa do que a simples edificação de um pseudónimo, máscara utilitária para preservar o nosso vero rosto. Em Torga, observamos a criação de um outro Eu, através de uma operação de desdobramento que chega a reivindicar as obras anteriores ao evento fundador do novo ente. E esta estratégia em nada é esconsa ou subterrânea: foi feita às claras, face aos seus leitores, sem segredos. A partenogénese literária resultou assim em duas metades, fraternas mas desiguais: o escritor, nascido sem biografia, puro e pronto para o chicote do algoz, e o médico, o das “receitas”, o Judas que expôs ao calvário o seu próprio irmão.
Como aponta a referida autora, esta gestação mereceu a Eduardo Lourenço um comentário: «institui como sujeito dessa criação, não um banal pseudónimo, ainda menos um eu-outro, consciente da sua fragilidade ôntica e sem autêntica existência, mas um Eu-Mito que é já, em si, visão do mundo e consciência da sua missão no Mundo.» Essa mitologia ficou logo cifrada no nome escolhido para este peculiar baptismo: “Miguel” – de Unamuno, de Cervantes, de Molinos – e “Torga”, da planta bravia que se imbrica com as rochas, lançando raízes inamovíveis mesmo nas paisagens mais desoladas. Os mais elevados voos da imaginação, o apego mais radical à Terra.
Tudo isto ultrapassa em muito a ideia de pseudónimo. Mas tudo isto também tem muito mais interesse do que as nossas guerrinhas de alecrim e manjerona.
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9 comentários:
Luis,
este vai já para a minha antologia. O outro (Pavia) dizia que "só há saída pelo fundo", e tu aqui sais ou reentras pelo fundo na blogosfera. Dás-lhe a volta. Não acontece todos os dias.
Homenagem e abraço
miguel sp
Rainha, muitíssimo bom!!
Viva, caro Miguel Serras Pereira!
É bem verdade! E um bem haja para quem, em boa hora, foi acordar o Rainha, esse lambão, como o gato, e teimoso como o Vicente!!
O texto é fixe, o preconceito é que é inútil. A escolha de Torga para exemplo não passou de comodismo ao correr da pena, um exemplo de reconhecimento fácil e universal, pelo que esta biopsia da escolha de Torga não passa de oportunismo pueril. De resto, o vaidoso, como bem sabemos, és tu. Quem está preocupado com famas alheias, és tu.
Contudo, e porque o texto é fixe, colhe lembrar que há algo de similar na opção por "Valupi" - em si já um pseudónimo - o qual tem um fundo existencial na sua génese e valor simbólico enquanto nome - história por mim contada faz tempo, embora nada te cobre por não a conheceres ou lembrares, obviamente.
Não há maneira de te convencer a largar o sofisma: um pseudónimo que se pode relacionar com um indivíduo concreto e identificável, que não passe de uma alcunha, não é uma máscara que esconde, é uma máscara que revela. Mas o texto é fixe.
Valupi,
se o uso de um pseudónimo lhe é tão indiferente, poderia revelar o seu nome original em texto.
"Sofisma" portanto é sugerir que um pseudónimo é sempre menos revelador do que o nosso nome, sobretudo tendo em visa as repercussões nas nossas esferas pessoais. OK. Estás quase a convencer-te.
Ricardo Alves, quem te disse que não revelo o meu nome original em texto?
__
Luis, por alguma razão que só tu poderás explicar, insistes em recusar o que te digo. Mas repito: não há segredo algum à volta do pseudónimo; a minha família, amigos, colegas de trabalho e patrões convivem com o Valupi sabendo que convivem com o Valupi - isto é, comigo, pois eu também sou o Valupi para todos os efeitos de assunção autoral, moral e judicial.
As repercussões na esfera social são exactamente as mesmas para quem usa nome civil das que são para usa pseudónimo se existir conhecimento do sujeito em causa. É o caso comigo.
Aliás, vir de ti este discurso da burca e do nicab é particularmente infeliz à luz do nosso passado. Nunca te pedi qualquer segredo ou reserva, sequer discrição, a respeito da minha pessoa civil. O mesmo para todos os outros colegas do Aspirina. Qualquer um pode espalhar livremente no seu círculo social o que sabe do Valupi.
Valupi,
toda a gente sabia que o Miguel Torga era o Adolfo Rocha. Até vinha nos livros, na letra miudinha.
A questão com o pseudonimato nos blogues é diferente. As pessoas da sua esfera pessoal podem saber quem é o Valupi. Algumas outras da blogo-esfera podem também saber. Mas 90% dos leitores do seu blogue não saberão.
Pelo contrário, quem escreve com o nome por que é conhecido na vida pessoal e profissional, permite que quem ler o que escreve faça todo o tipo de ligações. E isso requer uma coragem que, desculpe lá, os «pseudónimos» não têm.
Valupi,
Obecado ou não com a tua fama, certa parece ser a hiperinflação da importância que atribuis a ti mesmo.
Esta polémica só te atinge como dano colateral; o tema do anonimato na blogosfera não se restringe a ti; e nenhum dos argumentos aduzidos por mim te tem a ti como referencial único. Desvelas tudo aos teus próximos? É fácil conhecer o teu nome civil? Ainda bem para ti.
Mas não é só de ti, nem sobretudo de ti, que se fala quando se fala de anonimato. Como bem sabes, aliás.
Repito: se me vi envolvido nesta discussão foi apenas porque tu achaste que eu te estava a condenar ao olvido porque... linkei um post teu tem te mencionar o nick.
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