14/09/10

Odiar o monstro para melhor o comer

No seu último artigo de opinião na edição em papel do Expresso, Henrique Raposo critica a ideia comum de que existiu uma ruptura entre o Estado Novo e a democracia. Em alguns aspectos terá razão, noutros a convicção é verdadeiramente difícil sustentar. Depende da óptica e do objecto em análise. Mas avancemos porque Henrique Raposo convoca fenómenos concretos em auxílio da tese da continuidade: a ADSE, a lei das rendas e a Administração do Estado. O texto acaba por mostrar que os dois primeiros exemplos estão ali mais ou menos para despistar e que o alvo verdadeiro é o "monstro" do "Estado social", "criado por Soares e Cia." e equiparado a uma "versão XXL do Estado salazarista". O autor chega mesmo a considerar que o país tem "uma democracia pluralista encaixada num Estado autoritário", numa lógica não explicitada de que menos Estado significa menos dependência e, portanto, mais liberdade.

A relação entre Estado e sociedade no século XX português é um terreno vasto e cuja análise explica muito daquilo que somos e como agimos. É verdade que o 25 de Abril não produziu uma ruptura efectiva em várias áreas do Estado. Mantiveram-se chefias e, sobretudo, práticas. O Estado não deixou imediatamente de ser um domínio burocratizado que se podia contornar se existisse uma porta de entrada: um primo, um conhecido, uma cunha. No entanto, em aspectos importantes da sua arquitectura, o Estado repressivo e colonial distinguiu-se do Estado legado na sequência do 25 de Abril. Não só se democratizou em alguns níveis, como a massificação do ensino, o serviço nacional de saúde e as novas políticas sociais serviram para mudar a face do país. Para melhor.

Actualmente, e ao mesmo tempo que o país parece ter uma relativa satisfação com a ideia de "serviço público", permanece uma imagem negativa do funcionário público. Não espanta: numa sociedade com elevados índices de pobreza, aquele que tem trabalho, um vínculo laboral e uma maior protecção contra a exploração (contra as horas extraordinárias não pagas, por exemplo) é secretamente invejado. Isto não significa que não existam problemas na Administração Pública ou que não se possam encontrar caminhos legítimos de "racionalização dos recursos". Este é um debate que é longo e complexo, mas que já agora não deve esquecer os dados: se Portugal tem um Estado autoritário devido ao elevado número de funcionários públicos, então a Suécia, a Dinamarca, o Reino Unido, a Bélgica, a Finlândia, a Holanda, a França, a Alemanha, a Hungria, a Eslováquia, a Áustria, a Grécia, a Irlanda, a Itália, a Polónia e a República Checa vivem num fascismo puro e duro. Na grande maioria dos países europeus, o peso percentual dos funcionários públicos é maior do que em Portugal.

Existe efectivamente entre nós uma cultura de dependência do Estado. Que é anterior ao Estado Novo, atravessou a ditadura sabendo dela beneficiar, e permanece sob múltiplas formas na actualidade. É a cultura dos empreendedores viciados no investimento sem risco. Essa lumpenburguesia - como recentemente lhe chamou João Rodrigues - tem no Estado o seu verdadeiro seguro de vida, ora porque através dele negoceia, nem sempre de maneira transparente, ora porque se alimenta da privatização de serviços sem concorrência, frequentemente lucrativos enquanto estavam na mão do Estado. Saúde, educação, segurança social, águas, correios... são estas as fatias do bolo monstruoso.

[Publicado inicialmente no Aparelho de Estado]

2 comentários:

Miguel Madeira disse...

Um aparte acerca da "imagem negativa do funcionário público" - não é raro ouvir alguém dizer mal dos funcionários públicos e, logo a seguir, acrescentar algo como "nada tenho nada contra os funcionários públicos realmente úteis - policias, professores, enfermeiros, etc.; esses, nem os considero bem como funcionários públicos".

Ou seja, mesmo o desprezo pelos funcionários públicos parece ser largamente por uma "função pública" largamente imaginária.

Miguel Cardina disse...

Nem mais, Miguel.