14/11/10

Tota mulier in uterus?

Numa evocação comovida do Almirante sem Medo, a jornalista de ferro volta à carga sobre o assunto, confessando estar saturada de escrever sobre os abusos policiais, pelo que, depois de ter denunciado tantos, não se lhe pode pedir sem crueldade mental que denuncie agora novas configurações dos mesmos, exercidos sobre cidadãos em função das suas pertenças político-partidárias.
Mas a saturação não é tudo. Acresce que, no seu entender, é faltar ao respeito às raparigas que a bófia obrigou a despirem-se na esquadra referir a sua filiação partidária, cuja menção ofuscaria a dimensão propriamente sexista da violação:

considero que o relevar no denunciado abuso policial uma suposta perseguição a um partido em vez do atentado à dignidade daquelas raparigas é também atentar à dignidade das raparigas. parece-me aliás tudo isto tão óbvio que me faz impressão que haja quem não o entenda, a não ser que a dificuldade resida no mesmo tipo de problema -- o de querer por força tintar de partidarite aquilo que é transparente.

Recapitulando, que a matéria é confusa: as vítimas violadas não devem ser consideradas alvos de um abuso agravado por terem sido perseguidas pelo facto de serem de um partido da oposição e, no mesmo acto, humilhadas enquanto cidadãs sexuadas. Pelo contrário, referir as suas convicções políticas é desvalorizá-las enquanto mulheres — que, como se sabe, para o serem plenamente, não podem ser mais nada, pois, como o velho brocardo rezava: Tota mulier in uterus. E, ao mesmo tempo, referi-las como violadas enquanto mulheres, ou portadoras de corpos uterinos, exige que se cale a sua condição de militantes ou simpatizantes do PCP. Ou seja, os dois aspectos da violação perpetrada pela bófia, segundo a jornalista de ferro, não só não podem somar-se, mas também, eis que, por assim dizer, se anulam um ao outro.

2 comentários:

Ana Cristina Leonardo disse...

é por estas e por outras que eu gosto mais da yourcenar do que da duras. ou seja, a yourcenar borrifava-se de alto para a "condição feminina", quer dizer, era vagamente misógina (vou deixar de lado o adriano que deu cabo do templo, mas a verdade é que eu sempre preferi a obra ao negro)

Miguel Serras Pereira disse...

A Obra ao Negro, claro que sim, Ana - e de muito longe! Nunca mais voltei de a ler, por mais que lá tenha ido, e as vezes já forammais de meia-dúzia nos últimos trinta e tal anos. Depois, certas partes da sua geologia - e alguns contos, nem todos. Não será o caso das Memórias, mas, como dizia o David M.-F., seu grande admirador, lá que há coisas um bocado estilo pompier na M. Y,. las hay. Mas não têm importância, a não ser para os espíritos devotos, que precisam de santos protectores e quadros de honra.