01/11/10

Trabalho, Economia e Autonomia Democrática

A discussão que tem vindo a travar-se entre o Zé Neves, o Nuno Ramos de Almeida, o Nuno Telles , o Miguel Madeira,  o anti-cervejista Filipe Moura e já mais do que uma vez comentada por este deles e vosso concidadão, levanta uma questão importante, que parece saudável tentar explicitar um pouco melhor, tanto mais que pouco tem sido frontalmente abordada no conjunto do debate (ver, além dos posts citados, aqueles para que eles remetem). Explicitá-la equivale a formular um problema que sobra, apesar de tudo, depois da desmistificação "semântica" inteligentemente operada pelo Miguel Madeira da dicotomia entre "desalienação" e "abolição" do trabalho.

Esse problema tem a ver com a transformação da economia que, na perspectiva da extensão da autonomia democrática, devemos propor-nos. E parte da seguinte pergunta: será possível e desejável instaurar o funcionamento "comunista" das esferas económica e do trabalho à margem de regras explícitas e de decisões vinculativas do conjunto dos cidadãos? Ou a economia e o trabalho podem e devem ser objecto do exercício governante de todos e cada um dos cidadãos de uma sociedade autónoma?

A primeira alternativa - a do "comunismo" como estádio superior do socialismo e da democracia - supõe que é possível e desejável desregular integralmente quer o acesso aos bens comuns e indivisos, não apropriáveis individualmente, quer a apropriação por parte de cada um dos bens que o livre desenvolvimento das suas necessidades (projectos, propósitos, conveniências, etc.) o leve a desejar. E desregular ao mesmo tempo a participação dos cidadãos livres nas actividades de gestão e produção económicas - desvincular todos e cada um de quaisquer decisões políticas, ainda que radicalmente democráticas, relativas ao governo do trabalho e da economia. A dificuldade desta proposta e a objecção maior que levanta é que só é concebível, por um lado, em condições de abundância e disponibilidade de recursos rigorosamente ilimitadas, e, por outro, numa situação em que as leis ou regras de acesso e apropriação explicitamente deliberadas, decididas e vinculativas, até nova ordem, para o conjunto dos participantes na sua adopção, seriam substituídas pela interiorização sem resto de uma moral automática e definitiva - definitivamente posta fora de discussão ou de contestação. Ora, esta interiorização seria o perfeito oposto da autonomia quer no plano colectivo, quer no da esfera individual.

Resta, portanto, a segunda solução e a via da autonomia democrática. Esta significa, como bem escreveu o Manuel Resende num comentário ao post já referido, intitulado Re: Semântica do trabalho, com que o Miguel Madeira respondeu ao sempre abstémio Filipe Moura, que: "Assim como não abolirá as dores de cabeça, o socialismo, ou o comunismo, ou a sociedade da autonomia, como quiserem, não abolirá todos os constrangimentos. Bem basta que permita abolir a expropriação da vontade colectiva pelo interesse privado, restituindo aos indivíduos a possibilidade de determinarem em conjunto a repartição das tarefas [consideradas necessárias]".
Bem vistas as coisas, com efeito, a autonomia significa que nos damos as nossas próprias instituições e leis, sabendo que o fazemos, e mantendo a possibilidade de as discutir, criticar e contestar, e não que passaremos a ser todos tão moralmente educados que não precisemos - nem possamos, de facto - de deliberar e decidir das leis presentes ou futuras, e que excluamos, de uma vez para sempre, todos e cada um, quaisquer pulsões menos recomendáveis aos olhos da ordem estabelecida.

Foi no mesmo sentido que escrevi,  comentando a intervenção acima citada do Nuno Ramos de Almeida, qualquer coisa que gostaria de repetir aqui à laia de conclusão provisória:

A questão de fundo que levantas – e que subjaz à troca de ideias entre o Nuno Teles e o Zé Neves – nem por isso deixa de ser a boa. Eu traduzi-la-ia nos termos de uma pergunta: como democratizar que trabalho e que economia? – sendo que a democratização da economia, instância governante primordial das nossas vidas hoje, é condição necessária e prioritária da democratização das instituições, da superação da exploração e da dominação hierárquica e classista.
O que é necessário é que sejam os seus agentes a decidir igualitária e livremente do lugar – e no lugar – do trabalho e da economia. E isso não me parece que seja possível através simplesmente de uma maior intervenção do Estado, ou das teses do “Estado estratego”, caras a certos ladrões de bicicletas.
É, com efeito, necessário distinguir liminarmente “estatal” e “público”, estatização e publicização democrática da actividade e direcção da economia. Tornar o domínio da economia espaço público governado através da participação democrática e da extensão dos direitos da cidadania activa à esfera da produção e do trabalho, das decisões sobre o investimento e o consumo, é coisa que exige por certo a subordinação da economia ao poder político, ou, mais precisamente, a transformação do exercício da actividade de produção e direcção da economia em exercício político governante. Mas o que importa aqui – e faz a diferença – é a natureza do poder político em causa. Porque poder político e exercício político, isso a economia já o é, e tem vindo a ser cada vez mais, por muito que tente apresentar-se como neutra, exercício técnico-científico à margem de considerações normativas e juízos de valor. Resumindo muito, eu diria que a superação da exploração, da dominação e da alienação na e através da economia política passam, pois, pela extensão instituinte do regime de poder democrático da cidadania governante contra a lógica estatal e administrativa, hierárquica e classista, da distinção estrutural e permanente entre governantes e governados. Só um poder político exercido por cidadãos que só consentem ser governados mediante a participação igualitária de todos e cada um no exercício governante poderá transformar o lugar do trabalho e da economia nas nossas vidas, conjugar livre e responsavelmente a sua necessidade, recriá-los como momentos e dimensões de um espaço público comum que garanta um máximo de autonomia tanto no plano colectivo como ao nível individual.

6 comentários:

nunocastro disse...

com o devido respeito, parece-me que esta discussão sofre de miopia.

como bem via o velho Marx no seu Grundrisse, e depois, o mais recente Keynes colocou em letra da forma e decantada de marxismo, não se chega a lado nenhum - nem a democratização do trabalho, e menos ainda da economia - sem saber o que fazer do "dinheiro".

enquanto nenhum dos autonomistas de circunstância souber dar uma resposta cabal para o problema fulcral - o "dinheiro"! - ficaremos sempre com belas evocações do admirável mundo novo, mas que levam sempre a caminhos para parte nenhuma (partindo do princípio que se quer realmente chegar a algum lugar...

Niet disse...

Caro e fogoso M. S. Pereira: A questão da Autonomia posta nestes termos esbarra- é o termo, no meu entender -com o labirinto da lógica dos limites e atributos que remete para a Teoria dos Conjuntos e a avassaladora filosofia positiva-analítica( com inferências determinantes para a Lógica Quântica). Claro que, Castoriadis, se desdobrou a interpelar Peirce, Carnap e a família Quine, mas a " filigrana " interpretativa esbatia-se pela outra lógica: a da luta de classes protagonizada pelos Conselhos Operários. A todo essa monumental " deconstrução " se junta a crítica do marxismo/leninismo e seus esquemas filosóficos e estratégicos. Bom Vento! Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Nuno Castro,
não tenho a certeza de ter compreendido bem a sua questão. No entanto, recorrendo a um texto de Castoriadis, que já ontem citei mais amplamente, num comentário ao post do Miguel Madeira versus Filipe Moura, talvez possamos procurar por aqui um começo de resposta, tranquilizando de caminho as apreensões do segundo dos dois formidáveis polemistas que acabo de citar:
"(…) não pode existir uma sociedade complexa sem, por exemplo, meios impessoais de troca. A moeda desempenha esta função, e é muito importante deste ponto de vista. Que se retire à moeda uma das suas funções nas economias capitalista e pré-capitalista - a de instrumento de acumulação individual de riquezas e de aquisição de meios de produção -, de acordo, é outra coisa. Mas enquanto unidade de valor e meio de troca, a moeda é uma grande invenção, uma grande criação da humanidade. Vivemos em sociedade, há uma colectividade anónima; exprimimos as nossas necessidades e as nossas preferências estando dispostos a gastar tanto por certo objecto e não por certo outro.
"[No que se refere ao 'mercado de trabalho':] Aí temos, com efeito , um problema. A minha posição é que [numa sociedade democrática] não poderemos ter (…) mercado de trabalho, uma vez que não poderá existir uma sociedade autónoma se se mantiver uma hierarquia dos salários e dos rendimentos. Manter essa hierarquia é manter todas as motivações deo capitalismo, do Homo aeconomicus, e voltaríamos à barafunda de sempre.
(…) Não há verdadeiro argumento económico e racional que nos permita dizer: 'Uma hora de trabalho deste homem vale três vezes a hora de trabalho deste outro homem'. Põe-se aqui todo o problema da crítica da teoria do valor, quer dizer da ideia de que é possível imputarmos o resultado da produção a este ou àquele factor, em termos definidos. Mas, na realidade, essa imputação é impossível. (…) Não pode haver diferenciação do custo da mão-de-obra que tenha uma justificação racional ou sequer simplesmente razoável. (…)
"[Assim:] A actual distribuição dos rendimentos, tanto entre os grupos como entre os indivíduos, é simplesmente o resultado de uma relação de forças. Nada mais. O que cria, é claro, problemas, no que diz respeito, por exemplo, à disciplina do trabalho. Se a colectividade dos trabalhadores não for capaz de criar uma solidariedade e uma disciplina suficientes para que toda a gente trabalhe aceitando certas normas colectivas, confrontar-nos-emos com o verdadeiro cerne do problema, que é de natureza política. Quanto a isso, nada há a fazer, do mesmo modo que nada há a fazer, no domínio da democracia política, se as pessoas nãoo quiserem ser responsáveis pelas decisões da colectividade, participar activamente, etc. Isto não significa que seja necessário manter estruturas burocráticas e hierárquicas na produção - pelo contrário. (…) Cabe à colectividade tomar as decisões fundamentais. Pode delegar, mas compete-lhe eleger os seus delegados e revogá-los, se assim entender".

Saudações democráticas libertárias

msp

Miguel Serras Pereira disse...

Enciclopédico e generosamente impaciente camarada Niet,
um destes dias, creio, deverias sistematizar um pouco mais uma arqueologia (não foucauldiana, valha-nos Rosa e toda a tradição anarco-sindicalista no seu melhor) do pensamento da autonomia e de Castoriadis.
Aqui, a minha ambição é mais modesta e menos teórica: trata-se, não de proceder ao balanço do marxismo e/ou das correntes autonomistas e conselhistas, mas de propor uma plataforma política de democratização das instituições, com base na participação igualitária de todos no exercício do poder, assumido este como direito e dever primeiros - "não mais deveres sem direitos, não mais direitos sem deveres" -, como primeira responsabilidade e liberdade fundamental, organizadora, da cidadania governante (o que implica a sua extensão, desde o início, à esfera repolitizada e republicizada, ou "democraticamente republicanizada", da economia e do trabalho).

Abraço e viotos de propício vento

msp

Niet disse...

MS.Pereira, combatente do futuro e do ilimitado: Esta epígrafe pertence a um dos melhores poemas de um grande poeta, Adolfo Casais Monteiro, que considero um dos maiores do séc.XX, e que, fragmentariamente diz assim- cito de cor-" Não há palavras possíveis para nós! Tende piedade de nós que combatemos nas fronteiras do futuro e do ilimitado!". Belíssimo,não? Confesso que neste momento estou mais preocupado com o futuro do Brasil do que com as áleas micrológicas e siderais de fazer a Revolução, neste momento. Como leio também Negri,endereço-te esta tese, salvo erro do livro sobre Goodbye ao Socialismo, ele que tem aquele livro sobre o Grundisse de Marx, os Cursos da EN Superior de Paris, " Marx Au-delá de Marx "..."A partir do momento em que se começa a passar de uma economia da subsistência a uma economia do excedente, o trabalho cognitivo torna-se sempre mais fundamental e obtém-se uma produtividade que não se pode avaliar mais. É uma crítica radical da concepção economicista do real ". Para avaliarmos tudo isto, de razão imperfeita,como tenho aconselhado o nosso valoroso Mescalero, temos que partir de um legado teórico trabalhado e demarcado, que se pode construir a partir dos textos axiológicos de H.Lefebvre,J. Ellul ou mesmo Morin, para depois se avançar em passo firme para a autonomia crítica de Castoriadis, que envolve a " revisão " e a ultrapassagem de todas as imensas revoluções teóricas do séc. XX. Bom vento= Bon Vent=Bon Vin! Niet

Justiniano disse...

Mas, caríssimo MSP, ao invés de acumular a fungibilidade é bem possível acumular a infungibilidade que o problema é, em natureza, exactamente o mesmo!! Ou não será assim!!??