12/11/10

Um Inverno que promete que ser longo


Parece estar a chegar ao fim um longo ciclo histórico iniciado a 25 de Novembro de 1975 e acelerado após a adesão à CEE, em 1986. Durante estes 35 anos, tanto a burguesia (a possível) como o regime liberal (aquele que se conseguiu arranjar) sustentaram-se na perspectiva de uma progressiva convergência dos principais indicadores económicos e sociais portugueses com os países mais desenvolvidos da Europa Setentrional.
E embora a imaginação não tenha sido o ponto forte da II República, soam já nostálgicas as expressões amiúde empregues noutros tempos, quando «A Europa conosco», «A Suíça do Sul», o «Pelotão da frente», entre outras ambiciosas miragens euro-desenvolvimentistas, deixavam estadistas e jornalistas com um brilhozinho nos olhos. Eram esses os dias gloriosos do cartão jovem, da europália e dos fundos de coesão, quando a paixão entre Lisboa e Bruxelas era tórrida e poucos se lembravam da factura que chegaria no final da festa. O fervor europeísta tinha não poucos acólitos, daqueles que trocavam de carro e compravam casas de férias, usavam bons fatos e não poupavam esforços a demonstrar que sabiam fazer-se pagar como o melhor estadista.
Mas de tão auspicioso começo parece ter ficado bem pouca coisa, visto que nos prometem agora sobretudo mais crise, recessão e sacrifícios, apelando ao secular espírito de resignação que tantas vezes serviu no passado, a quem governava esta ditosa pátria, para se esgueirar por entre as gotas da chuva. O aluno bem comportado da Comissão Europeia passa agora os dias virado para o canto, com orelhas de burro, sem autorização para ir ao recreio nem gelatina de ananás depois do almoço. É caso para dizer que não foi para isto que se fez o 25 de Novembro e, se o soubesse, talvez Jaime Neves não tivesse saído do Batalhão de Comandos da Amadora com a limpeza que se sabe.


Dizem-nos, com a desfaçatez própria de quem nunca encontrou vergonha que pudesse vir a perder, que vivemos acima das nossas possibilidades. E, entre a multidão de comentadores e analistas que se acotovelam para nos fazer engolir isso, é quase impossível descortinar quem se lembre de apresentar uma versão diferente, que avente a hipótese, por exemplo, de se dever a situação em que nos encontramos à burguesia portuguesa e aos seus homens de mão no aparelho de Estado.
Evidentemente que seria preciso não conhecer a oligarquia indígena para esperar dela tão perigosa sinceridade, pelo que os culpados devem forçosamente ser encontrados entre os suspeitos do costume: o povo, a arraia miúda, os trabalhadores («por conta de outrém»). Numa palavra, entre o proletariado.
Não se trata hoje, como noutros tempos, deste ter procurado fazer a sua revolução, sequestrando patrões, ocupando terras e desafiando tanto a propriedade como a autoridade do Estado. Parece que o problema é agora o da competitividade e o do défice das contas públicas, uma vez que qualquer operário num canto esquecido do mundo faz com gosto – e durante o tempo que for preciso – aqueles trabalhos que até há pouco cabiam em sorte aos portugueses (os que trabalham, evidentemente). Por outro lado, a burguesia vê com maus olhos esse dinheiro gasto em hospitais e escolas públicas, que se limita a tornar a vida um pouco menos insuportável e o futuro um pouco mais promissor.

E é por isso – por andarem demasiado alimentados e bem vestidos, com os filhos na escola e as férias pagas – que os trabalhadores portugueses vivem acima das suas possibilidades. Parece pouco convincente esta narrativa e, apesar do tempo perdido a elaborá-la, cada vez menos gente está disposta a deixar-se convencer. Bem se vê que são estes mesmos trabalhadores que fazem as delícias de patrões e gestores por essa Europa fora, onde trabalham em fábricas, estaleiros e hotéis, sem que passe pela cabeça de alguém sugerir que eles trabalham menos do que devem. Já a burguesia portuguesa é aquilo que se sabe e bastam poucos nomes para a descrever com propriedade: Jardim Gonçalves, Manuel Godinho, Dias Loureiro.
Há efectivamente um problema de competitividade e de défice que deve preocupar os trabalhadores em Portugal. Eles são muito pouco competitivos no que toca à sua capacidade de mobilização colectiva e dá-se o caso de existir aqui um gigantesco déficit de conflitos sociais. Tudo isso é muito pouco saudável, uma vez que faz esquecer à burguesia que a sua dominação tem um preço e que o trabalho é a condição da existência do capital. Uma amnésia em que ela é costumeira e que a levou a passar para o nosso canto da mesa a factura pela festa em que vive desde 1986.
É esta uma altura tão boa como qualquer outra para lho relembrar, imitando as melhores práticas de outros pontos da Europa. Essa greve geral que se prepara, como a cimeira imperialista que a precede, são oportunidades que não devem ser desperdiçadas. E se Novembro nos deixa a todos um travo amargo na boca, melhor seria que déssemos a provar ao lado contrário semelhante sensação e o desagrado que ela provoca. Seria a melhor maneira de iniciar um Inverno que, a todos os títulos, promete vir a ser bem longo.

2 comentários:

Anónimo disse...

É isso mesmo. Parabéns pelo texto!

Anónimo disse...

Excelente.http://viasfacto.blogspot.com/2010/11/um-inverno-que-promete-que-ser-longo.html#more