O que mais valoriza “Sussurros” (*) é a sua forma particular de abordar a opressão comunista durante o período da tirania de Estaline e que eleva este livro do historiador e professor Orlando Figes à qualidade de peça única e incontornável na historiografia sobre a opressão de Estado em versão totalitária. De facto, Figes não enveredou nem pelo desfolhar dos episódios repressivos nem se deteve a entrar na polémica sobre as estatísticas das vítimas e dos carrascos. Exceptuando o tratamento detalhado e central de uma figura de primeira grandeza da vida pública soviética, o escritor Konstantin Simonov, a obra, ao longo das suas mais de setecentas páginas, ocupa-se das figuras comuns, quer dos represaliados (sobretudo estes) como dos coniventes e agentes da opressão, baseando-se em testemunhos orais ou em documentos obtidos, através de uma longa e aturada investigação desenvolvida na antiga URSS junto dos sobreviventes da época estalinista. Ou seja, Figes aborda a opressão contaminante do quotidiano dos cidadãos soviéticos sobretudo nos anos 30 e 40 do século XX e que, de uma forma absolutamente cega, ceifava a eito a sociedade no seu conjunto [escravizando e liquidando intelectuais e pequenos proprietários ou artesãos, por “crime” de pertença de classe; certas nacionalidades suspeitas de “infidelidade étnica atávica” para com a hegemonia russa em que assentava a estrutura multinacional soviética; comunistas e quadros soviéticos dos vários escalões ao sabor dos caprichos absurdos e arbitrários de quotas para cumprir metas de purgas; finalmente, os familiares (mulheres e filhos) dos reprimidos nos casos anteriores e que pagavam por “crime” de serem familiares de “inimigos do povo”]. No fundo, os alvos da repressão estalinista, conforme a uma lógica absolutamente paranóica, eram todos os cidadãos, incluindo os próprios mandantes e agentes da repressão. E, assim, cada cidadão soviético tinha como principal preocupação de sobrevivência, além de confiar no factor sorte, situar-se “correctamente” perante a repressão, sobrevivendo-lhe. E, claro, nem todos se saíam bem, no arbítrio dos acasos, das delações e das embirrações, para além das fatalidades de origens e pertenças. Milhões, muitos milhões, saíram-se mal. Uma parte fuzilada após tortura, a maioria constituindo o exército do trabalho escravo que industrializou a URSS, colectivizou a agricultura, produziu as grandes obras, cumpriu os planos quinquenais, construiu o socialismo, um socialismo de miséria, escravidão, fome, opressão. E, para além dos efeitos imediatos do sistema do GULAG, eventualmente a parte mais grave da repressão, o sistema repressivo, ao tornar aleatória a escolha dos alvos, feriu profunda e irreversivelmente a psicologia, a cultura e o estado emocional dos soviéticos. Até aos tempos actuais, passados vinte anos desde a queda do comunismo. E é nesta compreensão que o livro de Figes atinge uma intensidade e relevância única na historiografia sobre o estalinismo, ao descer do público para o privado, dos dados globais da repressão para as feridas desferidas nas pessoas, nas famílias e nos afectos. A monstruosidade da sociedade estalinista, afinal uma mero caso demonstrativo do que é o comunismo enquanto governo, em que após a fase de sedução social e política invocando os mais nobres ideais e aspirações humanas e sociais se transforma em máquina brutal de conservação de poder, em que o “terror vermelho” se inclui necessariamente no menu do trajecto de domínio, fica melhor exposta pela metodologia utilizada por Figes do que todos os tratados sobre a superestrutura da tirania estalinista. Mas, não havendo história grátis, é bom que se tenha o estômago bem preparado para encaixar os murros emocionais que “Sussurros” proporciona perante as dimensões insuspeitas e reveladas sobre onde chega, pode chegar, a perfídia humana politicamente organizada e cinicamente invocando a defesa suprema dos trabalhadores, do povo, da humanidade.
Terminada a leitura de “Sussurros”, percebida e sentida a lógica brutal do GULAG, ainda com as emoções em sangue, julgo que uma questão tende a assaltar cada um dos seus leitores: o que distinguiu o aparelho carcerário, de campos e de liquidação montado na URSS, dirigido por comunistas, do melhor conhecido aparelho repressivo e de extermínio montado pelos nazis? Julgo que o livro de Figes não deixa escapatória à constatação inevitável de que enquanto a repressão nazi foi selectiva e os seus alvos foram sempre pública e previamente anunciados (os judeus, os homossexuais, os comunistas, os social-democratas, os democratas, as minorias, as etnias consideradas inferiores), a repressão comunista ameaça toda a sociedade, todos os cidadãos, incluindo (!) os comunistas. Por isso mesmo, Estaline pode considerar-se o construtor de uma sociedade única, a do totalitarismo autofágico. Fica para outra altura a discussão sobre o como e o porquê de que quando as experiências comunistas se desviam deste modelo, o do Estado-Polícia desenvolvendo-se em espiral paranóica, estas falham automaticamente e destroem ... o comunismo.
Naturalmente que está subentendido o conselho para quem ainda não escolheu o livro de oferta de natal para um amigo alérgico à mentira e à opressão.
(*) – “Sussurros”, Orlando Figes, Aletheia Editores.
6 comentários:
Belíssimo texto de recensão histórica e uma magna e inquestionável clareza,a que se junta muito rigor e objectividade. Só que o autor,Orlando Figes,disparatou e fez uma campanha de promoção do livro na Amazon. UK- na Primavera deste ano- demencial e usando pseudónimos para aumentar as vendas dos seus produtos... O que caiu muito mal nos meios intelectuais britânicos e passou mesmo para as colunas do The Guardian e do Daily Mail...O filão é gigantesco- o dos Estudos Russos- eu conheço melhor o sector francês que já anda a divulgar os Arquivos do Kremlin.Por exemplo, Robert Service, de Oxford,um dos grandes biógrafos de Lénine, Staline e Trotski, tem um volume que aborda/ evoca/ sinaliza aprofundadamente os mesmos temas que o presente livro de O .Figes- " Comrades "-e não nos podemos esquecer dos textos de Alexander Solsnijétzine capitais:" O Arquipélago do Goulag " e os últimos sobre a URSS e o Judaísmo. Niet
Niet, quanto ao que diz sobre o autor: e daí? O mensageiro interessa-me pouco se a mensagem é boa. Se há alguma dúvida sobre a veracidade do conteúdo, isso sim é importante.
leituras coincidentes
-:)
Joana Lopes, minha cara: Há que contextualizar as questões e não " despejar ",literalmente, como eu já vi por aqui ter sido feito - e parece que surtiu efeito, ò céus!- textos e opiniões sem o minimo dos enquadramentos. O J. Tunes leu o livro e disse de sua justiça,com a " verve " e o grão narrativo que lhe é peculiar, nada a especular, que bom se tudo fosse como ele o pratica. Agora que o Figes perdeu muita credibilidade na " praça " universitária inglesa por causa das recensões " inventadas " por ele, isso é um facto indesmentível.
Digamos, no entanto, que isso pertence ao depois dos " Sussuros ". Niet
Niet,
Eu também publiquei agora no Brumas um texto, «de minha justiça», sobre o mesmo livro, de que gostei muito. Mas, repito: se OF inventou recensões sobre a sua própria obra é eticamente lamentável, mas não altera o conteúdo da mesma...
Joana Lopes: Tudo bem! Sabia que sobre Estaline parece que há mais de 120 mil livros ? Mas o rigor histórico impõe-se-nos, claro. É essa a minha perspectiva, desde há muitos anos.Niet
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