09/12/10

Uma imensa sombra


Esta recensão de José Manuel Fernandes assinalada pelo António é uma verdadeira pérola, uma espécie de  porta de arrecadação que nos transporta directamente para o interior da cabeça do seu autor.
Não faria mal a ninguém ler um pouco Lenine antes de enveredar pela via do disparate. Bem sei que os académicos liberais e conservadores andam muito mal habituados - duas a três décadas de hegemonia por via administrativa costuma ter esse tipo de efeito - mas apesar de tudo esperar-se-ia um pouco mais de arrojo e sofisticação. Porquê brincar à seriedade historiográfica para reproduzir - pela enésima vez - todos os lugares comuns da guerra fria? Isto, por exemplo, é embaraçoso:
"Lenine desprezava as ideias liberais que influenciaram a democracia social do Ocidente", disse-nos Archie Brown numa entrevista por email. "A sua doutrina, ideologicamente focada na tomada revolucionária do poder e na construção do socialismo, não admitia princípios como a divisão de poderes, pesos e contrapesos, um pluralismo político genuíno ou a responsabilização política".
 O totalitarismo estava contido, basicamente, no facto de Lenine não ser um liberal. A isto se resume  grande ideia de alguém com "enorme erudição e uma grande mestria na escolha dos detalhes".
O meu ponto é bastante simples. Se analisarmos os escritos de Lenine - afinal uma componente essencial da expressão dos seus pontos de vista, a par das decisões práticas tomadas antes e após a tomada do poder - poderemos encontrar citações à medida de todos os programas e objectivos. Pela simples razão de que as condições em que Lenine escreveu e os combates políticos em que esteve envolvido têm uma enorme amplitude, diversidade e complexidade. É por isso que uma aproximação filológica ao seu pensamento deve ser um trabalho histórico, capaz de situar cada formulação e posição no seu devido contexto. Penso que estas e outras coisas ainda serão ensinadas (ou, vá lá, debatidas) em Oxford, agora como em 1917. 

Lenine considerava inviável um quadro político liberal na Rússia saída do Czarismo. Mas ao fim e ao cabo, poder-se-à considerar o que existe actualmente na Rússia, desde 1991, um quadro político liberal? Como o meu raciocínio é um pouco menos tortuoso do que o de José Manuel Fernandes, não estou pronto a afirmar que Ieltsin e Putin dão razão a Lenine. Limito-me a constatar que estas coisas não se resolvem simplesmente dividindo a humanidade entre a equipa dos liberais e a do resto do mundo.
Vou dar um exemplo de como Lenine formulou a questão da democracia , nas condições da luta clandestina contra o Czarismo, para se poder ver o contraste entre o fantoche autoritário glosado por Fernandes e o concreto revolucionário russo do início do século XX (pense-se o que se pensar sobre as suas ideias a este ou outro respeito). É notório, neste texto de 1905, que Lenine está basicamente a polemizar com posições que ele próprio virá a defender em 1917 contra os  Mencheviques (desde logo, a ideia de que a Rússia não estaria «madura para a revolução»). Entre um momento e outro iniciou-se a I Guerra Mundial e apenas esta deslocação bastaria para ilustrar o carácter complexo, variado e até contraditório dos escritos de Lenine, que resultam mais dos problemas do seu tempo do que de uma qualquer inclinação natural por esta ou aquela posição:
O grau de desenvolvimento económico da Rússia (condição objectiva) e o grau de consciência e de organização das massas do proletariado (condição subjectiva, indissoluvelmente ligada à objectiva) tornam impossível a libertação imediata e completa da classe operária. Só os mais ignorantes podem não tomar em consideração o carácter burguês da revolução democrática que está a processar-se; só os mais cândidos optimistas podem esquecer como as massas operárias conhecem ainda pouco os fins do socialismo e os métodos para o realizar. Mas todos nós estamos persuadidos de que a emancipação dos operários só pode ser obra dos próprios operários; sem a consciência e a organização das massas, sem a sua preparação e a sua educação por meio da luta de classe aberta contra toda a burguesia, não se pode sequer falar de revolução socialista. E, como resposta às objecções anarquistas de que adiamos a revolução socialista, diremos: não a adiamos, antes damos o primeiro passo na sua direcção pelo único método possível, pelo único caminho certo, isto é, pelo caminho da república democrática. Quem quiser chegar ao socialismo por outro caminho que não seja o da democracia política, chegará inevitavelmente a conclusões absurdas e reaccionárias, tanto no sentido económico como no político.
Duas Tácticas da Social-Democracia na revolução democrática, Obras Escolhidas, Vol. I, Edições Avante!, p.391

Quem quiser encontrará nas suas extensas «Obras escolhidas» muito material com o qual apresentá-lo fundamentalmente como alguém com um pendor autoritário e obcecado pela violência. Mas quem pretender entender - e não meramente condenar - a natureza das suas reflexões terá necessariamente que dar conta da força de muitos dos seus argumentos. Mesmo que isso venha borrar a pintura de um maníaco obcecado pelo poder.
A obra clássica onde se pescam habitualmente as  suas tiradas ditatoriais é  o texto da sua polémica com Kautsky. E elas de facto abundam por ali, tantas que até custa escolher. Mas eu prefiro uma outra, muito pouco citada e cuja actualidade não deixa de surpreender:
Tomai as leis fundamentais dos Estados contemporâneos, tomai a sua administração, tomai a liberdade de reunião ou de imprensa, tomai a «igualdade dos cidadãos perante a lei», e vereis a cada passo a hipocrisia da democracia burguesa, bem conhecida de qualquer operário honesto e consciente. Não há Estado, nem mesmo o mais democrático, onde não haja escapatórias ou reservas nas constituições que assegurem à burguesia a possibilidade de lançar as tropas contra os operários, declarar o estado de guerra, etc, «em caso de violação da ordem», de facto em caso de «violação» pela classe explorada da sua situação de escrava e de tentativas de não se comportar como escrava.
A revolução proletária e o renegado Kautsky, Obras Escolhidas, Vol. III, Edições Avante!, p.16

2 comentários:

josé manuel faria disse...

Os camaradas não têm vergonha de estarem atrás do "Adeus Lenine" na votação do "Combate de Blogs"

Ricardo Noronha disse...

Nós não temos qualquer vergonha. Boa sorte nessa luta absolutamente fundamental.