21/08/11

A esquerda, o anti-imperialismo e a "solidariedade internacionalista"

Normalmente, a esquerda costuma rejeitar a ideia de um país entrar com as suas tropas adentro de outro pais com um "mau governo" para colocar no poder um "bom governo" (um argumento clássico é "eu não achava bem que os americanos viesse cá derrubar o Salazar"). Mesmo os comunistas pró-soviéticos, quando a URSS fazia coisas dessas no Bloco de Leste, tentavam arranjar sempre alguma desculpa para demonstrar que a "soberania nacional" não estava sendo violada (p.ex., quando a URSS invadiu o Afeganistão - recorde-se, com o objectivo inicial de substituir um regime comunista de "linha dura" por um que fosse mais "brando" - durante os primeiros dias disseram que estavam lá a pedido do governo afegão, até se tornar público que o líder comunista local havia sido morto pelos invasores).

Mas, por outro lado, a esquerda não tem normalmente nada (muito pelo contrário) contra George Orwell ou Christopher Caudwell lutando ao lado dos republicanos espanhóis ou Jaroslav Dombrowsky ao lado da Comuna de Paris, isto para não falarmos nas t-shirts mais populares entre os jovens esquerdistas (Byron e Garibaldi e as causas porque lutaram já saíram de moda há muito, mas creio que também eram populares entre os "radicais" do seu tempo).

Mas haverá uma grande diferença entre um exército estrangeiro entrar num país para mudar o seu regime politico-social e um estrangeiro alistar-se como voluntário num movimento rebelde? Ou será apenas uma diferença de grau? Note-se que isto não é uma crítica - porque, grosso modo, também é essa a minha posição: o meu "gut feeling" é exactamente esse, de que um Estado ir mudar o regime de outro é "imperialismo", mas um simples individuo juntar-se a movimento revolucionário no estrangeiro é "solidariedade internacionalista"; mas confesso que sinto alguma dificuldade em racionalizar esta posição.

Uma possivel maneira de justificar essa aparente contradição seria argumentar que os indivíduos têm direitos que os Estados não têm (posição que, p.ex., um anarquista poderá defender sem dificuldade, mas que me parece mais complicada para, digamos, um comunista ortodoxo).

No entanto, ocorrem-me algumas razões para voluntários internacionalistas serem diferentes de exércitos estrangeiros:

a) Voluntários estrangeiros, mesmo quando organizados em unidades próprias (como as Brigadas Internacionais em Espanha) estão integrados na "cadeia de comando" dos revolucionários locais, pelo que continuam a ser estes a dirigir o processo; pelo contrário, exércitos estrangeiros estão sob a autoridades dos seus governos, dando a estes poder sob o desenrolar do processo

b) Uma brigada internacionalista  normalmente é mais fraca militarmente (sobretudo em meios humanos) que a parte "nativa" das forças rebeldes (possivel excepção - a guerrilha que o Che tentou fazer na Bolívia); pelo contrário, numa intervenção estatal, o exército estrangeiros costuma ser a parte mais forte do conflito (as intervenções do Ruanda no Congo/Zaire, primeiro para colocar Kabila no poder e depois para o tentar derrubar, teriam todas as condições para ser excepções, não fosse o estado de degradação do Estado zairense/congolês). O resultado disso é que, no primeiro caso, a vitória dos rebeldes não colocará os voluntários internacionais como os novos governantes, enquanto no segundo o exército "invasor"/"libertador" (devido a ser a mais forte força militar) têm condições para decidir quem vai governar o país (é verdade que em Cuba o argentino Che chegou a governante, mas não pelo seu poderio militar, mas sim porque os líderes rebeldes locais engraçaram com ele).

c) aceitar as intervenções de estados estrangeiros abre caminho a aceitar uma ordem internacional imperialista, em que alguns estados (os com poder militar para derrubar governos alheios) acabam por ter de facto o poder de decidir que tipo de regime politico os outros países devem ter (ou seja, mesmo que em nome da democracia dentro de fronteiras, está-se na prática a instituir a oligarquia nas relações entre Estados); pelo contrário, as "brigadas voluntárias internacionais" não levam a nenhuma desigualdade entre países "fracos" e "poderosos", já que temos pessoas de qualquer país do mundo a se poderem juntar a um movimento revolucionário de qualquer outro país (podemos ter franceses a "intervirem" ao lado de bolivianos, mas também palestinianos a "intervirem" ao lado de alemães).

d) o pensamento de esquerda anda muito à volta do tema "o povo unido nunca mais será vencido" (ou, para quem preferir poesia oriental, "todos os reaccionários são tigres de papel; o povo é quem é verdadeiramente poderoso"): de que o poder das classes dominantes só se mantém porque o povo não se revolta, e que quando as massas ganharem "consciência" e "coragem" para se revoltarem, o domínio dos "poderosos" cairá como um castelo de cartas. Ora, o intervencionismo é frequentemente defendido com o argumento "sem a intervenção da comunidade internacional, aquele tirano vai continuar a massacrar o seu povo", mas aceitar tal argumento implicaria aceitar que as massas populares não têm capacidade para, sozinhas, destruir/neutralizar o aparelho repressivo do Estado. Pelo contrário, o papel de voluntários estrangeiros é mais fácil de compatibilizar com o modelo "quando o povo se revoltar, o poder cai" - os voluntários podem ser vistos, simplesmente, como elementos que vão ajudar a revolta a atingir a massa crítica acima da qual o povo perde o medo e sai à rua e a revolução triunfa

Todos estes argumentos (para ser contra as "invasões humanitárias" mas a favor das "brigadas internacionais") parecem-me fazer sentido, mas admito que talvez esteja a cair naquilo a que alguém chamou "a arte de procurar motivos racionais para aquilo em que se acredita instintivamente".

5 comentários:

Anónimo disse...

Mais um corajoso artigo do Miguel Madeira: curiosa a forma oblíqua e capciosa como tenta também( ou maioritariamente?) discutir a questão da intervenção da NATO na Líbia, que não pode deixar de nos perturbar. Tudo leva a crer, no entanto, que a " carnificina " praticada pela Aliança atingiu proporções de genocídio cientificamente orientado. Por acréscimo e, no estilo de poker político sádico e bluffista parece que a famigerada dupla Sarko/Camero " humilhou " Obama ao dar luz verde aos USA para " usarem " parte dos fundos libio/kadafinescos congelados em bancos ocidentais para pagarem salários de funcionários e militares yankees...Niet

Anónimo disse...

Voltemos à Líbia e à santa hipocrisia aqui manifestada neste blogue pelos cruzados da «democracia». Mais lúcido é Pacheco Pereira!!!!


UM MONUMENTO À HIPOCRISIA OCIDENTAL: OS AVIÕES DA OTAN NÃO VOARÃO SOBRE DAMASCO


Com as forças da OTAN do lado dos revoltosos, que recebem hoje todos os apoios necessários, consultores no terreno, armas, logística, suporte diplomático, tudo isto complementado pela melhor força aérea do mundo, é natural que a queda de Kadhafi seja uma questão de tempo. Não deixará saudades, mas o modo como foi derrubado, – por uma decisão política de regime change europeia –, permanecerá como um monumento à hipocrisia ocidental. Basta ler o texto da resolução das Nações Unidas para saber que a intervenção da OTAN vai muito para além dos termos internacionalmente acordados. Basta compreender o terreno para se perceber que, diferentemente do que aconteceu em muitos países árabes, não há uma insurreição vagamente democrática, mas uma guerra civil tribal. Basta olhar para a indiferença com que a comunidade internacional actua com a Síria, para se perceber que se se estiver noutra geografia, e noutra geopolítica, pode-se “atacar o seu próprio povo”, de forma violenta, continuada, sangrenta, muito mais sangrenta do que Kadafi fez antes da intervenção ocidental, sem nenhumas consequências. Os aviões da OTAN não voarão sobre Damasco.
http://abrupto.blogspot.com/

20 de Agosto de 2011 18:18

ASMO LUNDGREN disse...

implicaria aceitar que as massas populares não têm capacidade para, sozinhas, destruir/neutralizar o aparelho repressivo do Estado.

o aparelho repressivo não é constituido por essas mesmas massas?

a guardia civil que era parte do aparelho repressivo não auxiliou a república contra o exército e a falange?

o exército não se revoltou contra o rei ?

e rei pode ser qualquer um desde a revolta dos sargentos e praças d'outubro de 1910
aqueles regimentos que fugiam de frentes várias etc etc etc

ou os militares que abandonaram kadahfi e os (oligarcas?) tunisinos

ASMO LUNDGREN disse...

curiosamente tal como no pós 25 de Abril os deserdados de 500 mil no desemprego passaram para 700 mil

e a indústria de fosfatos
(uma super-quimigal com menos nitratação) anda de greve permanennte em perrrmanente greve

e o turismo tal como em 74.....

felizmente só devem 48% do PIB
(56% em2012) e se tiverem um Soares ô Sokras de jêto chegam aos 70 antes de 2013

Anónimo disse...

Desde a meia-noite de ontem que os Média mundiais anunciavam a prisão de dois filhos de Kadaphi pelos guerrilheiros da CNT, no decorrer de combates travados em Tripoli. Ao mesmo tempo, corriam boatos sobre a fuga precipitada de Khadafi para Argel. Hoje, o NY Times assinala que o ex- ditador libio se barricou no seu quartel-general na capital e, tudo o leva a crer, parece estar iminente o fim do regime ditatorial. A NATO efectuou 75oo missões de bombardeamento durante os 180 dias da guerra; pormenor importante prende-se com a ajuda decisiva de " comandos especiais " dos exércitos na Aliança para o cerco de Tripoli. Niet